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Macau proíbe vigília para assinalar massacre de Tiananmen. Isso significa menos liberdade?

04 jun, 2020 - 06:04 • João Carlos Malta

O Corpo da Polícia de Segurança Pública proibiu a vigília organizada há décadas pelos democratas de Macau. O Tribunal de Última Instância (equivalente ao Tribunal Constitucional) deu razão às forças de segurança e aos argumentos de saúde pública invocados. Mas há quem veja mais um ataque à liberdade de expressão e de manifestação no território governado por Portugal, até 1999.

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Macau e Hong Kong foram durante as últimas décadas os únicos locais em que o massacre de Tiananmen era assinalado na China. Este ano o território que foi administrado pelos portugueses até 1999 deixará de ser a exceção e passará a ser a regra. Ao invocar razões de saúde pública, motivadas pela Covid-19, o Corpo da Polícia de Segurança Pública (CPSP) proibiu a vigília organizada pelos deputados democratas locais. O Tribunal de Última Instância validou a decisão. Será a primeira vez em 30 anos que a data não será assinalada.

No entanto, há quem olhe para os argumentos sanitários como uma cortina de fumo para as verdadeiras razões: as de índole política. A cidade do sul da China teve 45 casos, numa população de quase 700 mil habitantes, e neste momento não há casos ativos de Covid-19.

Um dos contestatários é o professor associado da Universidade de Macau, Eilo Yu, que é um estudioso da evolução política local e também da vizinha Hong Kong. O académico diz que não tem dúvidas de que este é “um exemplo de que Pequim tenta endurecer a política de Macau em nome da pandemia”.

O politólogo diz que esta decisão parece corresponder à recente política que a China delineou para as duas regiões administrativas especiais: Macau e Hong Kong.

Yu até concede que “o povo de Macau possa não ter uma oposição forte contra esta decisão”, isto porque “não quer enfrentar as autoridades”. No entanto, o professor pensa que a medida pode ter efeitos contraproducentes a longo prazo. E faz uma leitura em que o governo central entra na equação dos responsáveis por esta proibição.

Isso vai criar um sentimento de que a cooperação do povo de Macau com Pequim não recompensa com mais liberdade civil e autonomia”, soma.

O mesmo defende que se a mesma atitude continuar, e as autoridades de Pequim mantiverem a mão pesada sobre a 'bem-comportada' Macau, o povo “pode responder como os vizinhos de Hong Kong”.

Trinta anos interrompidos

Todos os anos durante as últimas três décadas, a 4 de junho, os deputados Ng Kuok Cheong e Au Kam San promovem uma vigília para assinalar a morte dos estudantes chineses na Praça de Tiananmen. Até que, este ano, a comunicação que fizeram à CPSP teve um parecer negativo, que recusava a realização do evento − que no ano passado juntou 300 pessoas na Praça do Leal Senado − bem no centro da cidade.

Não se contentaram com a decisão e recorreram para o TUI, mas obtiveram a mesma resposta. Os juízes corroboraram a ideia defendida pelas autoridades policiais e disseram que não só a proibição da CPSP é legal, como uma eventual autorização para a realização da vigília violaria a lei.

No parecer feito pelas autoridades de Saúde locais para a CPSP fundamentar a decisão assume-se não ter surgido um “fenómeno óbvio de transmissão comunitária em Macau”. Ainda assim, dizem, “não é possível ter a certeza de que não há nenhuma pessoa infetada na comunidade”.

O TUI escreve na decisão judicial que mesmo o direito de reunião, sendo um direito fundamental de que gozam os residentes de Macau, “o seu exercício não é absoluto nem de todo ilimitado”.

Jorge Menezes, um advogado português há vários anos no território, pensa que a Covid-19 não é a justificação que valida a não realização da vigília. “Só há um cidadão infetado, a quarentena é obrigatória para quem entra em Macau desde março e há 50 dias que não há novos casos”. A isso soma-se que “as escolas estão abertas”, e “haverá um grande festival em junho”. “A vida regressou praticamente à normalidade”, resume.

Menezes diz estar chocado com a decisão do TUI. “É violado o direito de reunião, que é um direito fundamental em Macau, com base numa lei praticamente igual à de Portugal. As leis em causa são de tal modo violadas que é difícil não questionar se terão sido exercidas pressões políticas, de Macau ou de Pequim, a que nenhum tribunal é completamente imune”, resume.

O jurista não poupa também nas palavras que direciona ao Governo português e à sua diplomacia. “Perante crescentes violações da autonomia, dos direitos fundamentais e do Estado de Direito em Macau, o Governo de Portugal continua a vender a ideia de que Macau é um exemplo de sucesso”, avalia.

“Esta tentativa de branqueamento do que se está a passar numa terra onde vivem quase 200 mil cidadãos de nacionalidade portuguesa é lamentável. Há um acordo entre a China e Portugal que obriga a China a respeitar direitos que não estão a ser respeitados”, acrescenta.

Para este advogado português, “a impressão que fica é que o Governo de Portugal se preocupa, somente, em não ferir as relações comerciais de Portugal com a China, lavando as suas mãos das suas obrigações históricas, jurídicas e éticas para com Macau”. “Há uma certa sensação de abandono”, conclui.

Diplomacia portuguesa aprova governo local

A meio do mês de maio, o cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong, Paulo Cunha Alves, pronunciou-se sobre o tema e ficou ao lado das autoridades locais. Afirmou que o “contexto extraordinário” da pandemia da Covid-19 pode justificar a decisão.

“Na minha opinião pessoal”, dado “o contexto extraordinário, as regras não podem ser as mesmas, devem ser adaptadas às circunstâncias”, disse Paulo Cunha Alves.

Também o diretor do jornal de língua portuguesa "Hoje Macau", Carlos Morais José, afirma que é prematuro para que se possam tirar conclusões sobre a decisão do Governo e dos tribunais.

O jornalista não crê que a mesma “tenha violado a lei ou mesmo o Pacto dos Direitos Humanos da ONU que Macau assinou”. Ainda assim, prefere esperar para ver e aí poder aferir o verdadeiro significado do que se vai passar esta quinta-feira.

Resta saber o que se vai passar para o ano. Aí sim, ficaremos a saber se determinado tipo de manifestação política ficou ou não a ser proibido em Macau ou se o segundo sistema continua a vigorar plenamente”, argumenta.

No fim do mês de maio, em entrevista à Televisão de Macau (TDM), também o presidente da Associação Portuguesa de Advogados, Jorge Neto Valente, se pronunciou sobre o caso. Ainda não era conhecida a decisão do TUI, mas já na altura Neto Valente dizia: “que eu saiba os juízes são seres humanos, têm os seus pensamentos, têm também um fundo patriótico”. “A questão é se são tão securitários como as entidades policiais que não haja a vigília”, referiu na altura.

Neto Valente falou ainda do impacto social da vigília, afirmando que a mesma é cada vez menor. “Foi feita durante anos e anos e anos, nunca houve problema nenhum. Até devo dizer que [os resultados] não têm sido muito animadores para os organizadores, porque de ano para ano o número de participantes não tem aumentado, pelo contrário tem diminuído”, ilustra.

E prosseguiu com uma comparação com o território do outro lado do rio das Pérolas. “Isto comparado com uma qualquer manifestaçãozinha em Hong Kong, não é nada. As pessoas que não vão lá, significa que não gostam do 4 de junho ou que aprovam o que aconteceu no 4 de junho? Não necessariamente. Os princípios são importantes, mas na vida tudo é relativo. E já lá se vão muitos anos”, relativizou.

Se não é na praça é no grupo do Telegram

No entanto, e apesar de todos os esforços para que este ano não se assinale a data, a União de Macau para o Desenvolvimento decidiu dar a volta. Se não se pode fazer presencialmente, poder-se-à fazer por meios digitais.

Num grupo da rede social Telegram, os democratas vão partilhar mensagens de áudio. Na antiga sede da Associação Novo Macau, haverá espaço para dez pessoas poderem estar a assistir ao que se passará na internet. E ainda querem chegar aos três mil visitantes virtuais.

Já a Associação Novo Macau também tentou desafiar a decisão. O método encontrado era o de grupos de cinco pessoas fazerem mini-vigílias para que pudessem em conjunto sinalizar o dia. A CPSP também proibiu.

O constitucionalista português e professor do Instituto Politécnico de Macau, António Katchi, em declarações ao jornal "Ponto Final", defende que “[o chefe do Executivo] é o único, nos termos da lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis, que tem competência para decretar precisamente a suspensão da liberdade de reunião e manifestação com base em razões de saúde pública”, frisando que “só o chefe do Executivo é que tem o direito de, ponderando os diversos valores, tomar essas medidas particularmente gravosas e excecionais, que impõem um sacrifício grande aos direitos fundamentais”.

A liberdade de manifestação e reunião em Macau estão a morrer”, afirma António Katchi, que acrescenta ao mesmo diário de língua portuguesa: “parece ser uma nova normalidade que eles pretendem impor”.

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