08 jan, 2020 - 20:38 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA
Nos anos 1990, ficou célebre a frase do presidente Clinton quando quis chamar a atenção para aquilo que era mais importante para o país e para a decisão dos eleitores, aquilo que afinal explicava o voto da maioria das pessoas: “é a economia, estúpido!”.
Pois bem, a comunicação de Donald Trump esta quarta-feira presta-se a uma paráfrase de Clinton: “é o nuclear, estúpido!”.
Depois de uma escalada de tensão entre EUA e Irão e da moderada reação iraniana ao assassinato do seu general mais venerado, o presidente americano veio dar as hostilidades por findas e o regresso ao “business as usual”. E o business é o programa nuclear iraniano, de longe o assunto mais sério e delicado do Médio Oriente.
Foi por aí que Trump começou: enquanto for presidente, o Irão jamais terá uma arma nuclear, disse. Uma frase que soou inadequada para iniciar um discurso, mas que deixa claros os objetivos. Trump tomou à letra as declarações dos responsáveis iranianos sobre a “conclusão” da retaliação à morte do general Soleimani e como que deu por findas as hostilidades bélicas com o Irão.
Ao recentrar o problema naquilo que é a maior preocupação de todos, o programa nuclear iraniano, retoma a estratégia que definiu há dois anos: aplicar sanções ao Irão de modo a pôr a economia iraniana de rastos e obrigar Teerão a negociar um novo acordo. E pediu aos outros signatários do acordo de 2015 para também o abandonarem. O recado direto à Rússia, China, França, Reino Unido e Alemanha vem acompanhado do anúncio de novas sanções que criarão ainda maiores dificuldades ao regime dos ayatolahs.
Para os aliados europeus dos Estados Unidos não são boas notícias porque o seu empenho em salvar o acordo de 2015 assenta na tentativa de mitigar os efeitos das sanções americanas na economia do Irão. Uma tentativa que não está a resultar, já que a economia iraniana passa por enormes dificuldades com os obstáculos à exportação de petróleo e as sanções a qualquer empresa que faça negócios com Teerão. Daí as manifestações de descontentamento e contestação ao regime que tomaram conta das ruas de várias cidades no fim do ano passado e que desencadearam uma repressão brutal que terá feito centenas de mortos.
Mas a estratégia de Trump parece assentar em dois paradoxos. O primeiro é pensar que Teerão aceita negociar com Washington depois de tudo o que se passou e sobretudo depois do assassinato de Soleimani. O segundo é a tentativa de travar o programa nuclear iraniano depois de o ter “descongelado” ao denunciar o acordo de 2015. Não por acaso, o Irão anunciou esta semana que ia retomar a construção de centrifugadoras e o enriquecimento de urânio.
Embora pudesse ter vulnerabilidades, o acordo negociado pela administração Obama travou, de facto, o programa nuclear iraniano e esse era o objetivo principal. Com inspeções no terreno e garantias de que, pelo menos nos próximos 15 anos, o Irão não avançaria nada na sua concretização, o acordo permitia respirar fundo e afastar um pesadelo por um longo período de tempo. Ao apostar nos moderados do regime, o acordo abria ainda caminho para a integração lenta do Irão na comunidade internacional e para a recuperação da sua economia.
Trump denunciou-o argumentando que ele não obrigava o Irão a desistir do seu programa de construção de mísseis balísticos (não nucleares) e da política de apoio a grupos terroristas xiitas, bem como descongelava fundos financeiros iranianos e levantava parte das sanções em vigor. O argumento é verdadeiro, mas não colhe, porquanto um acordo é sempre um compromisso entre duas partes em que ambas têm de ceder alguma coisa para obter um consenso. E além disso porque o objetivo principal do acordo era travar o programa nuclear iraniano e não reverter toda a política externa de Teerão.
Querer misturar num acordo sobre um programa nuclear todas as outras questões sensíveis que envolvem Teerão equivaleria a exigir uma mudança de regime aos ayatolahs, o que seria irrealista e condenaria as negociações ao fracasso. Ou seja, manteria intacto o programa nuclear iraniano. A administração Obama — e as restantes seis potências que assinaram o acordo — deixaram, por isso, de lado o acessório e concentraram-se no essencial. Com sucesso, como se verificou.
Ao pretender incluir todas as outras questões em novas conversações com o Irão, Trump revela que não quer um compromisso entre duas partes, não quer uma negociação mas um diktat, uma rendição de Teerão à sua vontade “imperial”. Na comunicação desta quarta-feira, o presidente voltou a criticar duramente o acordo de 2015, chamou-lhe mesmo “tonto” e queixou-se do dinheiro que entretanto o Irão recebeu por via do descongelamento parcial das sanções. Pareceu, a certa altura, mais uma comunicação para consumo interno, visando atacar os democratas que apoiaram Obama e o acordo pensando nas eleições presidenciais de novembro deste ano.
Após quase duas semanas de ataques militares recíprocos em que cada um ameaçou o outro sobre as mais catastróficas consequências, as hostilidades parecem estar suspensas com cada um dos contendores a salvar a face publicamente e a vangloriar-se da sua atuação bélica.
O que fica então? A mesma situação que tínhamos desde 2018, embora mais extremada. Trump a tentar congelar um programa nuclear que ele próprio “descongelou” ao denunciar o acordo feito por Obama. Teerão a retomar o seu programa nuclear por se sentir desvinculado desse compromisso e mais longe de qualquer hipótese de negociação com o “Grande Satã” americano.
Ou seja, um quadro político em que a ameaça de um Irão nuclear no Médio Oriente se mantém intacta — e até talvez mais provável — o que evidencia o falhanço dissuasor da ação militar e da retórica do presidente americano. E enquanto a dissuasão falhar, o fantasma da guerra não desaparecerá.