02 nov, 2023 - 18:00 • Rui Miguel Tovar
Costinha chega à Rádio Renascença e desmarca-se como se fosse um extremo para a cafetaria. Quando chegamos à recepção, o homem já está em amena cavaqueira com o Rodrigo Gomes. A palavra chave da conversa é Gundogan. Adiante, temos estúdio marcado para as 11 horas e o assistente de informação Rui Glória está à nossa espera para carregar no botão do rec. Três, dois, um, cá vai disto.
Grande carreira, a tua: em sete anos, da 2.ª divisão B para as finais de Liga dos Campeões e Europeu no mesmo ano. Começaste no Oriental, e como lateral-esquerdo.
Isso, com o Sintrense, em Sintra. Era um miúdo, tinha feito toda a formação no Oriental e estava já nos seniores, mas sem jogar. A meio da época, havia a possibilidade de ser emprestado ao Operário, dos distritais. O treinador do Oriental achava que eu não tinha experiência e perguntei-lhe onde se podia comprar experiência. Porque jogar, não jogava. Se não jogo, não há experiência para ninguém. Fui persistente, atirei-me ao trabalho e houve uma mudança de treinador. E foi o José Moniz quem apostou em mim. Lembro-me da cara de aflição dos dirigentes quando souberam que ia jogar a lateral-esquerdo.
E que tal?
Era um jogo em que tínhamos de ganhar para fugir à descida de divisão. E ganhámos 2:1. É difícil não me lembrar desse dia e da equipa, que era boa, forte e unida.
Dois-um, boa.
Bis do Serralha. Mas havia mais: Carlos Ferreira, Luís Carlos, Careca, Lourenço, Brito, Manaca, Orlanda, Renato. Ainda falta um, espera. Era o Tarzan.
E desses, quantos vieram das camadas jovens como tu?
Renato e Luís Carlos, que depois chegou a jogar no Salgueiros e Benfica. O Oriental foi um clube que produziu muita matéria jovem de qualidade. Estou a lembrar-me do João Manuel Pinto, por exemplo.
Foste sempre um adepto do Oriental. Acompanhavas a equipa ao vivo e a cores?
Sempre, ia com o meu pai e o meu tio. Como nunca foram pessoas de sair do estádio antes do apito final para fugir ao trânsito ou à confusão, e ainda bem, ficava lá até ao fim e absorvia tudo, até pedia autógrafos. É impossível ficar indiferente ao Quim, o Cruijff de Marvila. Aprendia com esses craques. E ainda me recordo que as minhas primeiras chuteiras, da Adidas? da Nike?, foi o José Couceiro quem mas deu. Ele já era sénior, eu ainda iniciado. As botas estavam rasgadas lá à frente, mas meti um tape [fita-cola] e duraram a época toda.
Entrevistei-te para o Record ali no Centro Comercial dos Olivais entre a saída do Valencia e a entrada no Monaco.
Assinei cinco anos pelo Valencia, só que ia ser emprestado ao Villarreal. Treinei três ou quatro dias no Valencia e o Valdano, treinador, apreciava a minha maneira de jogar, só que o presidente queria uma coisa e o treinador outra. Então não ia lá ficar a fazer nada e foi quando pedi ao Jorge [Mendes] para rescindir o contrato. Ele fez um autêntico milagre nesse dia e fiquei livre, de novo. Nessa semana, apareceu-me com o Monaco, que precisava de um médio defensivo. E eu reagi à vedeta ‘estás maluco? Aquilo nem público tem no estádio’. Os meus amigos é que me deram uma chapada de realidade, porque o Monaco era o campeão francês e porque era uma aventura lá fora, melhor do que estar aqui em Portugal. Atenção, o FC Porto também tinha manifestado interesse em mim, só que tinha grandes jogadores e até me podia emprestar. Então decidi-me pelos treinos à experiência no Monaco. Com nome falso, Pintos. E era de nacionalidade argentina para o FC Porto não desconfiar.
Correu bem, já percebi.
O treino do último dia foi o mais dramático, porque tinha acabado a época em meados de Junho, pela participação do Nacional na liguilha de campeão da 2.ª B, juntamente com Maia e Torreense, e, dois dias depois, fui logo para o Monaco. Não descansei e estava com uma dor no adutor. Ainda fiz o treino dessa manhã, mas já não queria à tarde. O Collins [escocês] e o Benarbia [argelino] apareceram no meu quarto a chamar-me para o treino e disse-lhes que não ia. Tinha uma boa relação com os dois, mais com o Collins, porque tomava conta de mim e obrigava-me a jantar todos os dias na casa dele, na ausência da minha mulher nos primeiros meses.
E então?
O Collins saiu de cena e disse ao Benarbia ‘vamos embora, este é mais um turista’. Fiquei na cama, vi o Djetou [colega de quarto] a arrumar a mala para ir treinar e comecei a pensar ‘não vim aqui para fazer turismo’. Fui ao posto médico, pedi ao nosso fisioterapeuta para me dar uma injeção com analgésico e treinei. Por acaso, treinei bem e o Tigana ofereceu-me um contrato de quatro anos, além de querer que fosse a Portugal para tratar da minha vida e voltasse a tempo de jogar a Supertaça francesa, com o Nice.
E jogaste?
O Tigana disse-me que possivelmente poderia jogar. Fui para o banco e entrei aos seis minutos, porque um colega meu lesionou-se [Diawara]. O futebol tem destas coisas engraçadas: saí do Valencia, não queria ir para o Monaco, chamam-me turista, treino-me lesionado, assino por quatro anos e estreio-me com um título, 5:2 ao Nice.
Lembro-me de me encontrar contigo dois meses depois, na porta 10-A, na ressaca de um 3:0 do Sporting ao Monaco na Liga dos Campeões. E disseste-me que ainda não tinhas arcaboiço / bagagem para aquilo.
A parte mais difícil do ser humano é a autocrítica. É ter a coragem para dizer onde é bom e onde não é bom. Aprendi essa táctica desde muito cedo porque é um choque passar da 2.ª divisão B para o campeão francês. Passei de marcar o Fary, no União de Montemor, a marcar o Papin, do Bordéus, no meu primeiro jogo do campeonato francês. Quando o Tigana me disse que ia marcar o Papin, tremi como varas verdes. Percebi rapidamente que tinha de aumentar o meu nível. E o xeque-mate foi esse jogo com o Sporting. E porquê? Sou titular com o Bordéus, passo para suplente utilizado, e nesse jogo até faço uma cueca ao Cocard [internacional francês] à entrada da área, depois passo a convocado sem direito ao banco de suplentes e regresso ao onze com o Sporting, em Alvalade. Entrei em campo um bocadinho nervoso e lembro-me de ser assobiado no aquecimento. Foi um coro de assobios por ser o português? e isso afectou-me. Mas tive a felicidade de ver o Oceano ir ao nosso balneário para dar-me a sua camisola e reconfortar-me. ‘É o início da carreira e as coisas nem sempre correm bem. Tens de trabalhar no duro; se trabalhas o dobro, trabalha o triplo e não te deixes abater.’
Grande Oceano.
Até final da época, quis aprender o francês para me adaptar bem, porque há vários dialectos dentro do francês, e fui sempre convocado. Nem sempre jogava, mas estava lá. Se soubesse que não ia jogar, fazia por jogar no campeonato CFA [reservas]. Ainda fiz uns 20 jogos, joguei com o Manchester United e a Juventus.
Marcaste, não foi?
À Juventus, foi. Mas eles não davam hipótese, os anos 90 foram dos italianos. Essa Juventus era Zidane, Del Piero, Montero, Ferrara, Di Livio.
E apareces na selecção nacional sem nunca teres feito um jogo na 1.ª divisão.
Sou chamado para o duplo confronto de apuramento para o Euro-2000, perdemos 1:0 nas Antas com a Roménia e estreio-me num 3:0 na Eslováquia, a substituir o Rui Costa aos 70 minutos. O Tigana recebeu a convocatória do Humberto Coelho e entregou-me a carta a dizer ‘os deuses estão loucos, os deuses estão loucos, Costinha na selecção portuguesa’.
Ahahahahah.
Lembro-me de chegar ao Jamor e ver todos aqueles craques, campeões mundiais de Riade, campeões mundiais em Lisboa. Todos me receberam bem.
E vais ao Euro-2000.
Estava a fazer ginásio numa sala de musculação ali na Encarnação quando saiu a convocatória pela televisão. Fiquei contente.
Tu, campeão pelo Monaco. Pauleta, campeão pelo Deportivo. Dois jogadores na convocatória sem nunca terem feito carreira na 1.ª divisão.
Verdade. Mas o Pauleta ainda fez jogos pelas camadas jovens da selecção, eu nem isso. Apareci, simplesmente apareci.
E és o primeiro a ir aquecer no primeiro jogo, com a Inglaterra, não és?
É um episódio engraçado, sim. Sou o primeiro a aquecer, durante o intervalo, com 2:2 no marcador, e nunca saio dali. Entra o primeiro. Entra o segundo. Entra o terceiro. Fiquei sempre a treinar. Paciência, o treinador é que sabe o que quer para ganhar. E ganhámos 3:2. No jogo seguinte, entrei e tive a felicidade de fazer o golo da vitória nos descontos [vs. Roménia]. E, se calhar, esse golo também me deu a oportunidade de me manter na equipa. Depois ganhámos à Alemanha e à Turquia. Infelizmente, com a França, perdemos 2:1.
Conhecias muito bem alguns jogadores dessa França dos tempos do Monaco.
Barthez, Henry, Trezeguet. Fiquei com as camisolas deles desse jogo.
Nesses jogos de máxima tensão, como é que relacionas com essa malta?
No aquecimento e no túnel de acesso ao relvado, falamos, brincamos, sorrimos. Dentro do campo, mudas o chip e cada um defende o seu país. EU nquero ganhar, eles querem ganhar.
No ano seguinte, em 2001, vais finalmente para o FC Porto e és expulso na estreia, com o Sporting, no José Alvalade.
Duplo amarelo. A primeira falta nem fui eu, foi no meio-campo, à molhada, sobre o Diogo, acho, e o árbitro manda-me amarelo. Depois faço falta sobre o João Vieira Pinto e apanho o segundo amarelo.
Aos 37 minutos.
Ainda na primeira parte, sim. Perdemos 1:0 com um Sporting muito bom, o Quaresma parecia o diabo à solta. Curiosidade, joguei na jornada seguinte, com o Boavista, porque despenalizaram o primeiro amarelo, a tal falta que não fiz.
O Sporting é campeão nessa época 2001-02.
Nós tínhamos jogadores para fazer melhor, mas não conseguimos ser aquela equipa sólida, agressiva, ambiciosa, com fome de vitória. Na época seguinte, o mister Octávio acabou por sair em Janeiro e entrou o Mourinho para preparar a equipa das conquistas europeias em 2003 e 2004.
Qual era a mais valia?
Éramos fortíssimos em todos os aspectos: mental, técnico, táctico.
Entre a conquista da Taça UEFA 2003 e a da Liga dos Campeões 2004, os adeptos do futebol preferem a primeira. Incluo-me nessa ideia, o FC Porto era mais alegre. E tu, que te parece?
Compreendo, o FC Porto da Taça UEFA joga mais solto e à vontade porque a Liga dos Campeões é outra louça. O FC Porto da Taça UEFA joga em 4-3-3, o da Liga dos Campeões em 4-4-2. O FC Porto da Taça UEFA tem três adversários acessíveis a abrir e só depois começam as dificuldades, com Panathinaikos, Lazio e Celtic. O FC Porto da Liga dos Campeões sente dificuldades desde a primeira jornada, com o Real Madrid. O FC Porto da Taça UEFA joga de olhos fechados, futebol alegre, bonito, rápido, com profundidade. À minha frente, tinha Maniche e Deco mais Capucho à direita, Derlei à esquerda e Postiga no meio. Todos eles com capacidade física e qualidade técnica para baralhar qualquer um. E, no banco, Alenitchev, um dos melhores jogadores com quem já partilhei balneário, craque. O FC Porto da Liga dos Campeões passa a jogar em losango e lembro-me de perguntar ao Zé [Mourinho] o porquê. E ele explicou ‘temos bons médios e, se controlar o meio-campo, conseguimos controlar o jogo’. Entrou o Pedro Mendes, outro craque. E, pronto, é isso.
Ahahahah.
Não quer dizer que não jogássemos bem, a questão é que não era tão vistoso com o FC Porto da Taça UEFA. Basta ver o nosso grupo da Liga dos Campeões: Real Madrid dos galácticos, Marselha do Drogba e Partizan. Depois apanhámos o Manchester United, Lyon de Essien, Malouda e Juninho Pernambucano, mais o Deportivo. As pessoas é que pensam ‘ah não apanharam o Milan e é caminho aberto’. Nada disso, todas as equipas eram bem complicadas.
E o Milan foi eliminado pelo Deportivo.
Exacto. O mister [Mourinho] decidiu mudar de estratégia e nós passámos a ser mais práticos. Nos jogos de campeonato, só queríamos marcar o primeiro para segurar o jogo, já a pensar na quarta-feira europeia. Não fomos tão espectaculares, mas interpretámos a época consoante o nível dos adversários.
E qual foi o jogo mais tenso dessa Liga dos Campeões?
Deportivo no Dragão. Se me perguntares se beneficiámos das ausências de Mauro Silva e Jorge Andrade na segunda mão, beneficiámos, sim. Revi há pouco o nosso primeiro jogo da fase de grupos, com o Real Madrid do Queiroz. Perdemos 3:1, eu até marco o primeiro golo do jogo. Perdemos e jogámos bem. Só que eles aproveitaram todas as oportunidades.
Solari, lembro-me.
O Vítor Baía já não o podia ver à frente. A gente até brincava, ‘ó Vítor, está solari?’. Com o Manchester em casa, ganhámos 2:1. Se vires o jogo, devia ser 4:1. Depois vais a Old Trafford, sofres o 1:0, anulam-lhes um golo, mal anulado, diga-se de passagem, e fazes o 1:1 no último minuto. Com o Lyon, ganhas 2:0 em casa e empatas 2:2 lá, com dois golos a abrir cada parte. Com o Deportivo, foi um jogo repartido, sem ocasiões clamorosas e 0:0 no Dragão. Saí ao intervalo, o Jorge Andrade quase me partiu um dedo do pé. Não me conseguia manter em pé e o Zé [Mourinho] insistia para me aguentar até ao intervalo. Como já tínhamos o campeonato bem orientado, dava para fazer essa gestão.
E na Corunha?
Vamos para lá com cinco ou seis jogadores em risco de perder a final, caso víssemos um amarelo. Ainda me lembro de sofrer uma falta à entrada da área, refilar com o Collina e ele só me perguntar ‘Señor Costinha, usted quiere jugar la final?’
Eischhhhh.
Ele sabia que estava amarelado e podia falhar a final.
Antes do sorteio da ½ final, havia preferência entre Deportivo, Monaco e Chelsea?
Nunca, em tantos anos de Porto, me recordo de preferirmos esta ou aquela equipa.
Antes da final europeia com o Monaco, o FC Porto perde a final da Taça de Portugal com o Benfica. Lembro-me de ver o Mourinho a olhar para a festa do Benfica como quem diz ‘perdi mesmo esta final?’
É verdade, também hoje penso nisso. Como é que é possível? Fomos superiores. Marcámos primeiro, pelo Derlei, que também atira ao poste, já na segunda parte. Seria o 2:0. De repente, o bicho [Jorge Costa] é expulso, eles fazem o empate e o jogo muda. No prolongamento, o Benfica acaba por vencer. O FC Porto, já se sabe, não pode perder nunca. É proibido pensar em perder naquele clube. Nem com a equipa dos CTT. Só que o Mourinho desviou o foco, ainda na azia. ‘Mas vocês estão preocupados com esta taça quando temos uma taça mais importante para vencer daqui a uns dias; não quero ver aqui ninguém preocupado’. Ele teve de engolir o orgulho.
E o FC Porto ganha claramente ao Monaco por 3:0. Ao teu Monaco, que coincidência.
Muitos pensavam numa final com o Real Madrid, Milan ou assim. E eu atenção ao Monaco. Mesmo quanto o Real Madrid ganhou 4:2 ao Monaco no Bernabéu, disse aos meus colegas ‘cuidado com o Monaco’. O Deco gozava comigo e dizia-me ‘liga ao Giuly, liga ao Giuly’. Na volta, 3:1 do Monaco e Real Madrid eliminado.
Conhecias muitos jogadores desse Monaco?
Muitos, sim. O avançado era o Prso, por exemplo. Tenho uma história com ele, ainda no Monaco. Fiz um lançamento lateral, ele pediu-me a bola. Não lhe dei e ainda lhe dei uma dura. Era o capitão nesse dia e tudo. Quando vamos para o balneário, o Prso chama-me e era alto, forte. Pensei logo ‘vai rebentar comigo’ e vou apanhar uma chapada.
E ele?
‘José, amigo, desculpa, vou explicar-te: tu jogas 90 minutos e eu só jogo cinco. Quero aproveitar todos os segundos.’ Foi uma chapada de luva branca, gostei da mentalidade dele. E percebi-o: se ele jogasse bem cinco minutos, se calhar jogaria dez no jogo seguinte, depois vinte e por aí adiante.
Nesse ano 2004, ainda jogas a final do Euro e estás no lance do golo da Grécia na final.
Sempre fui um jogador forte no jogo aéreo e porquê? Tinha uma táctica que consistia em saltar primeiro que o adversário. Ganhava o momento da antecipação, colocava o corpo junto a ele e o que acontecia? Quando ele saltar, vai pôr o braço por cima e fazer-me falta. Só meço 1,80 e fiz isso com jogadores mais altos que eu uns 18 centímetros. Na final, o Ricardo Carvalho marcava o Vryzas e eu o Charisteas. Quando se marca o canto, o Vryzas foi mais rápido, o Ricardo Carvalho dá-lhe um toque, o Vryzas empurra o Charisteas, que ganha mais altura ainda e mete-me o cotovelo por cima. Quando vou a saltar, já tenho o Charisteas em cima de mim e, se vires bem o lance, não salto direito. O meu pescoço está contraído. Perdemos a final em casa, mas felizmente os rapazes de 2016 já vingaram essa derrota.
Dois anos depois, em 2006, Portugal cai na ½ final do Mundial com a França.
Lembro-me tão bem, o Figo veio ter comigo a dizer ‘Costa, cuidado com o Zidane; se ele fizer assim, fazes assim’. O problema é que, às vezes, até podes condicionar o Zidane e, pum pum pum, dá-te a volta pelo outro lado. Jogadores como Zidane, Ronaldinho, Maradona, Ronaldo, Messi conseguem sempre sair do único sítio possível, até dentro de uma cabina telefónica. Tiram sempre o coelho da cartola, porque eles têm algo de diferente.
E o jogo de 3.º e 4.º lugares, com a Alemanha, na Alemanha?
Foi meio esquisito. Acho que os alemães não estavam à espera de não ir à final. Quando chegámos ao balneário, havia galhardetes a dizer Alemanha, terceira classificada. Ao intervalo, o árbitro [Kamikawa, do Japão] diz ao Scolari que ia expulsar-me se jogasse na segunda parte.
Hein?
Isso mesmo, o Klose passou a primeira parte a queixar-se de que não chegava a nenhuma bola por minha culpa. Ainda por cima um árbitro que não tinha apitado nesse Mundial, ou então só um jogo [Inglaterra vs Trinidade e Tobago]. A Alemanha queria salvar a honra do convento e nós entrámos para o jogo meio desiludidos por ter perdido com a França na ½ final.
Volto atrás, 2004. Não sais do FC Porto, porquê? Lembro-me que Ricardo Carvalho e Paulo Ferreira seguem Mourinho para o Chelsea e Deco assina pelo Barcelona.
Primeiro, tinha contrato e assinei de livre e espontânea vontade. Depois, não sou daqueles jogadores que recebem propostas e vão bater à porta do presidente.
Mas recebeste propostas?
Sim, sim.
De quais clubes?
Aí em Fevereiro / Março 2004, vejo nos rodapés da televisão que Mourinho tem convites de Inter e Juventus. Estávamos em estágio e o Zé liga-me a pedir que passe no quarto dele.
E?
Diz-me isto: ‘vamos ganhar o campeonato nacional e depois a Liga dos Campeões. Depois vens comigo? Tenho dois clubes de dois países.’ Disse-lhe que ia, claro. E ele ‘Agora concentra-te no campeonato nacional e na Liga dos Campeões, deixa comigo o resto e esquece lá os rodapés da televisão.’
Chelsea?
O problema é que o Makelele decide ficar e ele [Mourinho] ficaria com a gestão de dois internacionais para o mesmo lugar. Depois também se diz que o Camacho me queria no Real Madrid, ele já me conhecia dos tempos do Benfica. Diz-se, só. Nunca me chegou nada. Por isso, fiquei no FC Porto.
E ainda foste campeão mundial.
Tóquio, com o Once Caldas.
Uma final incaracterística por causa do problema físico do Vítor. Como é que vocês lidaram com essa ausência em campo?
Sentimo-nos mal, claro. Mas, lá está, o FC Porto habituou-nos a ultrapassar o nome. Saiu o Vítor, entrou o Nuno e tudo continua como dantes. Okay, tu reconheces a capacidade de um e do outro, mas a dinâmica de vitória é a mais importante, seja à baliza, seja o lateral-direito, seja o médio centro. Portanto, o Nuno entrou e acabou o trabalho do Vítor.
Muito superior, o FC Porto.
Sim, dois golos anulados ao McCarthy, uma bola ao poste do McCarthy e outra do Derlei, se não me engano. Eles ficaram quase sempre lá atrás e levaram para os penáltis. Ganhámos e estivemos na eminência de perder essa competição.
Segue-se a aventura no Dínamo Moscovo.
Nem tive férias decentes, porque a liga portuguesa acabou em Maio e entrei logo no campeonato russo, que se disputava de Fevereiro até Novembro. Em Janeiro 2006, estou muito bem no aeroporto, a caminho da Rússia, e liga-me um agente a perguntar-me se me podia pôr em contacto com o professor. E eu disse que sim, sem me aperceber que o professor era o Carlos Queiroz.
Então o que era?
Um convite para jogar no Manchester United, o professor Carlos Queiroz era o adjunto do Alex Ferguson.
Esse era o teu sonho, sempre admiraste o Bryan Robson [capitão do Manchester United].
Eles queriam-me por seis meses e o Jorge [Mendes] insistiu em seis meses mais dois anos de contrato. O problema é que o Dìnamo Moscovo não me libertou, disse que eu fazia parte do projecto blá blá blá blá.
Que galo. Última pergunta é mais familiar que nunca. O teu filho mais novo joga no Oriental, o teu pai também jogou futebol. Sensações?
O meu pai era avançado, jogou no Pombal. Era muito habilidoso, dizem. Nunca o vi jogar. Depois do Pombal, foi para o Penafiel e teve uma lesão grave no joelho. Foi operado e nunca mais jogou. Por causa disso, ele não queria que fosse para o futebol e quis que eu acabasse a escola e tirasse um curso. Acabei a escola, mas não tirei um curso porque comecei a jogar futebol e fui por aí fora. Fiz o mesmo com os meus dois filhos, é impensável não acabarem a escola. Se depois se matriculam numa universidade ou não, é lá com eles. O que interessa é terem opções de carreira. O meu mais velho tentou o futebol, mas já foi operado dois vezes ao joelho e agora dedica-se a roupa, vá lá saber-se porquê [Costinha deixa escapar um sorriso malandro como quem diz ‘filho de peixe sabe nadar’], e o meu mais novo joga no Oriental. Nunca o obriguei a jogar a bola, foi por vontade própria. E estou sempre a dizer-lhe o mesmo: o futebol não é uma profissão, é uma paixão, um desejo. Porque, às vezes, há jogadores que gostam da vida de luxo e isto do futebol é sacrifício. É acordar cedo para o treino, é ir para o treino pelo seu próprio pé. Como se fazia no meu tempo de miúdo no Oriental. Na altura, não havia telemóveis. Acordava com o despertador e fazia-me à vida. Agora temos de bater à porta, chamar por ele, fazer-lhe o pequeno-almoço e levá-lo. Esse espírito de sacrífico, essa vontade, essa fome. Até acho que ele é mais técnico e hábil que eu naquela idade, e atenção que habilidade e talento são coisas diferentes. Tem capacidade, mas é escorpião, é de gancho. Ahahah.
Ahahahahah.
Agora tem de ter capacidade por ele, não é melhor nem pior do que ninguém. Desculpa alongar-me na resposta, mas o que se vê muito hoje em dia é os pais a quererem ser os jogadores, e não os filhos. Vivem a vida dos filhos e isso não é saudável.
Como é que se chama o teu filho do Oriental?
Diogo.
E joga a?
Gosto mais de o ver jogar a oito, mas está lá o Tuck para o orientar melhor e mete-o numa posição diferente, mais defensivo, porque ele tem uma boa saída de bola. Mas ele vai crescer e aproveitar as oportunidades ao longo da época. Tem de estar preparado. Mesmo a suplente, tens de estar preparado. Quando te chamam, tens de estar pronto para jogar. Está a fazer o caminho e oxalá possa fazer uma carreira melhor que a minha. Se não fizer melhor, que faça uma carreira igual. Desde que desfrute e seja feliz.
Melhor que a tua é quase impossível, repito-me: saíste da 2.ª B em 1997 para ganhar a Liga dos Campeões em 2004. É muito jogo. Muito obrigado por tudo, grande abraço.
Obrigado eu, e aproveito para contar a última história: quando estava a treinar o Nacional na 2.ª Liga, dizia sempre aos meus jogadores que o sonho é possível. É possível chegar ao topo e estar a jogar no Nacional, porque aconteceu comigo. Joguei no Nacional e cheguei ao FC Porto e à selecção nacional. Dizia-lhes muito ‘vim do mesmo sítio de onde vocês vieram’. Às vezes, as pessoas pensam em impossíveis, mas isso é só na cabeça delas. Lembro-me de ter essa conversa com eles num jogo com o Real, em Massamá. Estávamos a perder 1:0 ao intervalo e acabámos por ganhar 4:2. No final do jogo, disse ao presidente para o autocarro do clube levar-nos à minha casa, em Lisboa. Chegámos e entrámos no escritório, onde estão réplicas da Taça UEFA, da Liga dos Campeões, da Taça Intercontinental, juntamente com uns pósteres grandes de mim a jogar no Nacional, quando fui campeão da 2.ª B em 1997. Mostrei-lhes isso. ‘Vocês estão a ver o que está aqui? É aquilo que vos digo, estas taças estão ao alcance de todos; eu também tinha dúvidas e passava dificuldades, mas isso não me puxava para baixo, olhava sempre para cima no sentido de querer crescer e chegar lá acima. Isso pode acontecer-vos. Não a todos, claro, mas pode acontecer. Mas para acontecer, vocês têm que estar preparados e predispostos.’ A partir daí, nunca mais perdemos o primeiro lugar e, atenção, que a 2.ª Liga já tinha tido oito líderes até então nessa época. É para veres o que pode acontecer. Vejam lá o exemplo do Pauleta, do Operário para melhor marcador da selecção. Ou do Jaime Pacheco, do Aliados do Lordelo para o título de campeão europeu no FC Porto em 1987. É uma questão de mentalidade. Agora sim, obrigado.
Obrigado nós, grande abraço e até à próxima.