Hora da Verdade

Reforma da AIMA “provavelmente” podia ter sido feita de outra maneira

24 mai, 2024 - 07:00 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Maria Lopes (Público)

A cabeça de lista do PS às eleições europeias diz que o envio de tropas da NATO para a Ucrânia “significa que estaríamos no fim quase que do mundo”. E defende o reconhecimento da Palestina como Estado. “Cada dia é, provavelmente, mais necessário que se tome essa decisão”, diz a ex-ministra da Saúde.

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A três dias do arranque oficial da campanha das eleições europeias, Marta Temido aborda o tema das migrações na Europa e, em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal Público, admite que, “provavelmente”, a reforma da Agência de Integração, Migrantes e Asilo poderia ter sido feita de outra maneira.

A ex-ministra da Saúde do PS considera ainda que a “cada dia é, provavelmente, mais necessário que se tome a decisão” de reconhecer a Palestina como um Estado, mas que é algo que cabe agora ao Governo da AD.

Nesta entrevista, Marta Temido defende que a União Europeia deve ter um plano de financiamento de Habitação pública, que poderia funcionar como um PRR permanente para esta área. A cabeça de lista do PS às europeias deixa ainda uma crítica à AD pela proposta europeia sobre Habitação: “É uma cortina de fumo, não é uma resposta”.

O Governo português não acompanhou a Espanha, a Noruega e a Irlanda no reconhecimento da Palestina como Estado. Considera que o Governo português esteve bem?

A situação relativamente ao reconhecimento da Palestina tem evoluído. E não é novo que havia um caminho que vinha sendo preparado por vários países e alguns estão agora a avançar para esse reconhecimento.

Há duas vias que estão em causa. De um reconhecimento mais alargado, de a União Europeia falar a uma voz única e univocamente utilizar esse reconhecimento e torná-lo, portanto, mais forte. E essa é uma linha discursiva que compreendemos. Mas há uma fragilidade nessa abordagem: há Estados-membros em que será muito difícil essa decisão de avançar, como a Hungria ou a República Checa.

Reforma da AIMA “provavelmente” podia ter sido feita de outra maneira
Veja a entrevista completa de Marta Temido ao Hora da Verdade. Foto: Rui Gaudêncio/Público

Portugal só deve tomar uma posição se for concertada a nível da UE?

Essa foi a leitura durante bastante tempo. Mas o 7 de outubro marcou uma diferença. E Israel não aceitará a solução dos dois Estados. Nós somos pela solução dos dois Estados. Havia trabalho que vinha sendo feito nesse sentido. Agora, cabe ao Governo decidir qual é a melhor opção. Há vantagens de um lado e de outro.

Mas isso é um bocadinho ambíguo.

A situação é muito difícil. O importante é que seja dado eco e consequências às palavras do secretário-geral das Nações Unidas: cessar-fogo imediato, entrada da ajuda humanitária, aplicação das regras de direito internacional humanitário.

Sánchez foi, durante muito tempo, parceiro de António Costa e há aqui uma decisão. Portugal ainda não a tomou. Devia ter tomado, ou deve pensar nisso a breve trecho?

Penso que é isso que está indiciado em todas as palavras. Todos os atores dizem que ainda não chegou o momento. Parece que ele vai chegar. Não é o PS que tem essa possibilidade. Quando muito, poderá ter intervenção se o Governo entender fazer essa auscultação.

Quando é que é o momento adequado?

Cada dia é, provavelmente, mais necessário que se tome essa decisão.

Em relação à guerra da Ucrânia, num debate desta semana, disse que era preciso cautela na análise de envio de tropas para o terreno. Isso não é um não. Pode vir a ser preciso?

Penso que não, porque nós sabemos o que é que isso significaria: que aceitaríamos uma terceira guerra mundial.

Mas esse debate vai ter de se fazer mais tarde ou mais cedo se este impasse continuar, ou não?

Aquilo que a União Europeia tem feito desde o primeiro momento é um apoio incondicional e irrenunciável à Ucrânia nas mais diversas áreas: apoio institucional, político, humanitário, financeiro, militar, a questão das sanções à Rússia, a possibilidade de utilizar os resultados financeiros dessas sanções para apoio à Ucrânia.

Este não é um cenário que se possa prolongar indefinidamente.

A alternativa a este cenário de guerra está muito nas mãos daquilo que é a aceitação da Rússia das condições que a Ucrânia lhe põe para poder ser assinada a paz.

O Presidente francês também veio pôr um bocadinho de sal na ferida, falando da possibilidade de envio de tropas, e sendo a França uma potência nuclear...

Nós já temos mecanismos de cooperação em termos dos vários Estados, forças de intervenção rápida, respostas variadas. Temos de reforçar a política comum de segurança e defesa da União Europeia. E isso passa por continuar a investir na nossa autonomia estratégica, no desenvolvimento e aquisição conjunta de equipamento militar. Envio de tropas é algo que significa que estaríamos no fim quase que do mundo.

E da coesão da União Europeia?

Essas palavras do Presidente francês fizeram espoletar uma discussão que não está a acontecer, nem tem condições para acontecer, face ao que significaria uma opção desse tipo. E, portanto, é um não assunto.

No manifesto eleitoral do Partido Socialista lê-se que a União Europeia deve assumir uma maior responsabilidade pela sua própria defesa, em articulação com a Aliança Transatlântica, sem nela se diluir, afirmando-se como o pilar europeu da NATO. Isto significa a criação de um exército europeu comum?

Também não. Significa partilha de responsabilidades e a complementaridade da ação nessa lógica de que esta é uma área onde as competências dos Estados-membros se mantêm, onde se avançou para a utilização do mecanismo de cooperação estruturada permanente entre diversos Estados, onde neste momento o contexto geopolítico recomenda uma estratégia de reforço da política de Segurança e Defesa, ser mais autónoma na capacidade de resposta. Mas há um ponto final em relação a isto. E a Defesa, sendo uma matéria muito importante, não pode afastar a permanência de outras respostas que a Europa também precisa.

O manifesto eleitoral do PS defende um instrumento de investimento permanente em habitação pública. É uma espécie de linha de financiamento da Habitação na União Europeia?

Eventualmente, sim. No PS entendemos que a crise de Habitação não é um problema exclusivo do país. Outros países da UE confrontam-se com o mesmo. Jovens e classe média têm enorme dificuldade em terem os seus projetos de vida, em sustentarem com os seus rendimentos aquilo que é ou uma renda ou uma aquisição.

Um PRR permanente para a habitação?

Para um objetivo específico: aumentar o parque público de Habitação. Portugal tem um parque público de Habitação abaixo dos 2%. A média da UE é de cerca de 11%. Há países que estão acima dos 20% ou na casa dos 30%.

Por que tem de ser a União Europeia a financiar a habitação pública?

Porque é um problema europeu. E a União Europeia tem tido a capacidade de responder aos desejos dos europeus. Esta não é uma perspetiva só nossa, é dos socialistas europeus.

Não é também é um pouco o espelho do falhanço de políticas de habitação, por exemplo, do PS, nos últimos 8 anos?

Não. É o espelho da compreensão que as políticas de habitação demoram tempo a produzir efeitos. Que houve um processo que começou pelo reconhecimento do direito à habitação e começámos a investir em habitação pública. Por alguma razão, o Programa de Recuperação e Resiliência tem uma linha para a habitação e o português é o segundo com maior volume de resposta financeira para a habitação. O que é que acontece ao PRR? Acaba em 2026.

Seria uma linha de financiamento posterior.

É isso que queremos discutir. É evidente que isso compete com outras necessidades da Europa – Defesa, políticas de coesão, Política Agrícola Comum, alargamento. Falámos da habitação, mas poderíamos falar dos jovens. Quem é que é contra os estágios não remunerados? Somos nós. Quem é que é a favor do reforço da garantia jovem? Somos nós. Quem é que é a favor do reforço de uma economia mais competitiva que permita criar melhores postos de trabalho, mais especializados para melhorar os salários? Somos nós. É mais vasto do que parece: não desistir da Europa social.

O PS quer programas de habitação de emergência para pessoas em situação de sem-abrigo, que infelizmente é uma realidade que tem aumentado muito nos últimos anos. Mas isso é algo que as próprias câmaras municipais podiam e deviam fazer. É um conselho que deixa a Carlos Moedas, que aposte nesse acolhimento de emergência?

Lembro-me de que o dr. [Paulo] Rangel criticar o dr. António Costa por ter escrito uma carta [a Ursula Von Der Leyen] e disse que isso mostrava a sua incapacidade de resolver problemas. O dr. Carlos Moedas vai bater à porta do Governo. O que é que isso mostrará?

A AD também defende uma resposta da habitação a nível europeu.

Mas é uma cortina de fumo, não é uma resposta. Aquilo que a AD quer fazer é a consagração de um direito na Carta de Direitos Fundamentais e abstraindo da questão formal de como é que isso se conseguiria. Era preciso, desde logo, unanimidade. Tenho muitas dúvidas que se conseguisse essa unanimidade. Esse foi o caminho que nós já fizemos com o "1º direito" e depois demos o passo do investimento.

As respostas de que precisamos para responder a estes problemas têm de ser sempre articuladas entre o nível local, nacional e, na nossa perspetiva, também europeu. As políticas europeias podem ser ótimas, mas se não tivermos quem as implemente no terreno, não acontecerá nada.

Vamos falar de migrações. Em princípio, a AIMA, a Agência de Integração, Migrantes e Asilo, não será extinta. O Governo diz que há “asneiras” do PS que têm de ser corrigidas. A situação dos imigrantes em Portugal não é um péssimo cartão de visita do PS quando se fala de migrações na Europa?

A situação do país em matéria de migrações é um espelho daquilo que é a complexidade deste fenómeno. Nós seremos, provavelmente, um dos países onde, apesar de tudo, a dimensão do problema é menos complexa.

Quem está à espera do cartão de legalização não dirá isso…

Tornámo-nos um país de receção a um ritmo muito rápido. A questão que vem agarrada ao tema das questões europeias sobre as migrações é a da reestruturação de serviços que aconteceu no nosso país. Mas, apesar de tudo, são duas dimensões distintas do mesmo tema.

Fizemos uma segregação de funções entre função policial de controle de fronteiras e função administrativa de reconhecimento documental e de integração. No bom sentido.

Olhando para trás, essa reforma não podia ter sido feita de outra maneira?

Provavelmente. Houve coisas no processo que não terão sido tão conseguidas, designadamente o acumular de processos na pendência da implementação da reforma. Claro que os processos já existiam. Mas isso não quer dizer que os processos não fossem sendo despachados, digo eu.

O que é importante é olhar para a resposta: uma nova agência que começou a trabalhar em outubro, e que tem um calendário para apresentar resultados, no sentido de ultrapassar as pendências e entrar em velocidade cruzeiro, é cumprido.

A ex-ministra que criou, que tutelava a AIMA, é a número 3 da lista do PS. Isso não demonstra aqui alguma impreparação para lidar com o assunto?

Aquilo que é a experiência portuguesa pode até ser muito importante para alimentar as questões das melhorias que precisamos de fazer ao nível europeu.

Mostrar como é que não se faz?

Vou ser muito franca, e se calhar muito dura, mas evidentemente que ninguém fica indiferente às filas de migrantes que reclamam, que protestam e que sentem que os seus direitos não são a ser respeitados. Todos nós ficamos preocupados e magoados com essa situação. Mas prefiro essa situação, apesar de tudo, a situações de campos de refugiados ou em que as pessoas não são devidamente sequer recebidas, a situações de eventual não assistência a barcos no Mediterrâneo. Ou quando olhamos para países que dizem que vão colocar as pessoas que chegarem às suas fronteiras em outros países.

Como o Reino Unido.

O problema é que não é só. O Partido Popular Europeu tem essa solução escrita no seu manifesto. Podemos estar aqui a discutir a AIMA até o final da campanha e certamente é importante. Sem desresponsabilizar o Governo anterior, essa é uma responsabilidade que agora é deste Governo.

Esta semana, o Governo reuniu-se com os partidos para recolher contributos para um plano de ação das migrações. O que é que deve constar obrigatoriamente desse plano e o que é que não pode constar de todo?

Meios e calendário. Meios para que as pendências sejam recuperadas e para que, num horizonte o mais curto possível, a AIMA entre em velocidade de cruzeiro na resposta documental, mas sobretudo na vertente da integração - língua, trabalho, integração social.

Precisamos deixar esta discussão da documentação - crítica, não estou a menorizar - e passemos para a outra fase. Porque precisamos de imigração. Temos 6% de taxa de desemprego, as pequenas e médias empresas, ao nível europeu, dizem que o seu maior drama, o seu principal problema, é a falta de mão-de-obra.


Há por aí quem fale de necessidade de atrair mão-de-obra qualificada. Com certeza. Mas não podemos esquecer que parte do que é o funcionamento de base das nossas sociedades, seja em Portugal, seja em outros países da Europa, é feito como mão-de-obra imigrante.

E o que é que não pode constar? O sistema de quotas está completamente de parte?

Na minha perspetiva, sim. Seria um recuo. Não são as quotas, os muros, que nos defendem. Quem tem necessidade de sobreviver, não é por esse tipo de resposta que é inibido. E só aumenta o tráfico ilegal.

O PS aprovou o Pacto das Migrações e Asilo. Em que pode ser aperfeiçoado?

O pacto que foi aprovado não é o nosso pacto. Houve vários eurodeputados da nossa família política e da delegação portuguesa que não votaram favoravelmente todos os atos legislativos que fazem parte do pacto. Achámos, genericamente, que seria a solução de compromisso possível perante visões muito, muito distintas. É dos temas que mais dividem os europeus.

Tem alguns aspetos positivos: um mecanismo de acompanhamento das pessoas nas entradas, do ponto de vista do cumprimento dos direitos fundamentais, a garantia de apoio jurídico aos requerentes.

E tem outros aspetos que nos preocupam. Os menores não-acompanhados continuam a ter uma solução de passagem. Aqueles que estão com as famílias podem ser colocados em situação que pode ser considerada como uma separação. Há aspetos muito preocupantes sobretudo na forma como depois os Estados os podem implementar. Há um aspeto muito positivo, que é a cláusula de solidariedade entre os vários Estados-membros.

No próximo mandato europeu não será possível a habitual aliança técnica entre PPE, socialistas, democratas, liberais e verdes? Ou a campanha é a campanha e depois, mais à frente, logo se vê?

Bom, nós temos para candidato à presidência da Comissão Europeia, Nicolas Schmit, atualmente comissário do Trabalho. As negociações dos designados "top jobs" são parte das primeiras tarefas que têm de ser realizadas. Se me pergunta qual é o apoio a outras soluções, isso depende também daquilo que sejam os resultados eleitorais, mas nunca nos podemos distanciar nem aliar a soluções nas quais não nos revemos.

Está a falar de quê?

Dos compromissos que, alegadamente, a atual presidente da Comissão Europeia estaria disponível para fazer com os conservadores de direita, que nos preocupam enormemente.

A fronteira entre direita e extrema-direita poderá ficar diluída no próximo mandato?

É um dos pontos de preocupação. Neste momento, há três famílias de direita no Parlamento Europeu. Uma direita dita tradicional, o Partido Popular Europeu (PPE); uma direita um pouco mais à direita, os Conservadores e Reformistas (ECR); e depois a ID, a extrema-direita, a direita radical.

O que me parece que estamos a verificar é que, em lugar de ser o PPE a força de alavancagem daquilo que são os outros grupos, estão a ser os extremistas a conseguir ganhar terreno e a marcar e impor a sua agenda. E depois vamos verificando vontade do resto da direita tradicional, por óbvio taticismo político, de estender entendimentos a soluções absolutamente inaceitáveis.

Há esse risco de as forças extremistas “engordarem”. É também um voto de protesto aos partidos tradicionais?

Penso que é uma incompreensão, ainda, daquilo que está em risco. Uma guerra é algo muito visível e compreensível; uma transformação social, que é o que pode estar em causa, que tem na base partidos que querem o fim do projeto europeu e que renegam a maioria dos seus valores, é uma transformação sub-reptícia.

Está a dizer que a família dos Socialistas e Democratas pode tornar-se irrelevante ou menos necessária para uma grande coligação?

Muito pelo contrário. O que eu estou a dizer é que o voto nos socialistas europeus e nesta família política é a única solução que responde a essa radicalização. Mas, francamente, não é a sobrevivência política que é o valor que deve ser determinante destas análises. É o bem-estar geral. É o projeto europeu. Não é uma questão de politiquice ou de projetos pessoais ou do que quer que seja. São mesmo dois modelos que estão em confronto na habitação, nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, nas migrações, no trabalho.

Há o risco de os partidos de esquerda e, sobretudo, os Socialistas e Democratas, ficarem com uma base de apoio que não lhes dá força e influência no Parlamento Europeu?

Não creio que isso seja um risco real. Efetivamente, nós percebemos que há risco, mas estamos a fazer o nosso caminho, estamos a fazer o nosso trabalho e os números, aquilo que se indicia, não é essa realidade. Mas o risco existe sempre. Aliás, a democracia está sempre em risco.

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