Guerra na Ucrânia

As incógnitas de uma nova Guerra Fria aquecida pela falta de gás

26 fev, 2022 - 01:55 • José Pedro Frazão

​Das várias questões levantadas pela invasão russa da Ucrânia, algumas podem ter respostas nos próximos dias. Mas há cartadas mais complicadas de solucionar em poucas semanas. Diversos analistas militares olham para os primeiros dias de guerra para tentar perceber como se liga geografia, economia, poderio militar e capacidade política num dos terrenos mais férteis do Leste Europeu.

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Vai a Rússia conquistar Kiev? É a principal incerteza a desfazer nas próximas horas e dias. Moscovo sabe bem o que é batalhar em Kiev. Há 80 anos e seis meses as tropas soviéticas foram cercadas por Hitler, o "exército vermelho" resistiu arduamente até capitular e perderam-se 600 mil vidas nesse Verão de 1941.

Arnaut Moreira, major-general na reserva, lembra que o poder aéreo russo desiquilibra a balança e expõe o exército ucraniano às agressões inimigas. Mas a esperança pode residir em cidades como Kiev.

"Há apenas um factor equilibrador quando existe um desiquilibrio potencial imenso de forças: são as cidades. Grande parte do poder militare terrestre sofre um atrito imenso em contacto com as cidades. Os campos de tiro são muito reduzidos. Há muitas possibilidades de criar armadilhas dentro de uma cidade. Há muitos esconderijos de onde se podem fazer ataques com mísseis anti-carro. Em último caso, a resistência ucraniana terá que passar para dentro das cidades. Esse é o elemento nivelador de potenciais entre antagonistas com potencial de combate muito desigual numa guerra actual", explica este especialista em geoestratégia.

Existem outros precedentes históricos na mente de um militar. Nuno Pereira da Silva, coronel de infantaria na reserva, foi assessor militar da NATO no Iraque e conhece bem o contexto de uma situação volátil de conquista de cidades, ainda que por vezes a capital seja paradoxalmente mais fácil de controlar.

"Isto depende da resistência dos civis e exército. Se for como em Madrid na Guerra Civil demorará muitos anos. Se a resistência armada for como em Bagdad , onde estive, vai ser uma tomada fácil. Penso que os ucranianos vão vender cara a sua pele e vai ser difícil controlar Kiev. Se cair Kiev, é provável que venham a surgir bolsas de resistência no país. Portugal também resistiu às Invasões Francesas sempre com acções de guerrilha", exemplifica este antigo assessor do Instituto de Defesa Nacional.

O diálogo é possível num contexto de bombas?

Chegados os russos aos arredores da capital, começou uma "dança de possíveis diálogos" para possiveis negociações de paz. Putin propõs um encontro na Bielorrússia, país aliado de Moscovo e por onde entraram forças russas no caminho mais próximo para Kiev. Convencido que a Ucrânia conta apenas com as suas forças regulares, o Kremlin poderá estar ancorado numa superioridade militar que lhe permita negociar em superioridade face a Kiev. O passo alternativo é a remoção pela força do poder constituído na Ucrânia.

Quem pode mediar o conflito?

Não há um mediador relevante ("honest broker" na aceção tradicional) à vista, nem mesmo nas organização multilaterais. António Guterres tem oferecido os seus préstimos mas sem impacto. A Organização para a Segurança e Cooperação para a Europa tem estado ausente,denunciava esta semana o próprio antigo Presidente da Assembleia Parlamentar da OSCE, João Soares.

A União Europeia e os seus principais países estão a apoiar a Ucrânia e a confrontar Moscovo com sanções, depois de uma sequência de visitas a Moscovo que não evitaram a ofenisva russa. Ao leme da Presidência do Conselho Europeu, Emmanuel Macron ainda pegou no telefone numa das últimas noites, a pedido de Kiev, que alegava não conseguir ligação com Putin. A conversa foi descrita como "franca, rápida e direta". A Alemanha, no seu primeiro grande teste pós-Merkel, nada conseguiu. A crise ucraniana beliscou a imagem de Olaf Scholz, inevitavelmente comparado a uma chanceler respeitada em Moscovo onde fluência russa não é um pormenor.

Nas últimas horas, emergiu um aliado de Putin, com os mesmos problemas para ligar o esquentador. A Hungria, de Viktor Orbán, oferece os seus préstimos para uma mediação.

Qual a importância da cartada energética?

A dependência do gás russo é um factor central na relação de Putin com a Europa. A Rússia é a origem de um terço do gás que abastece a Europa, agravando-se para metade na Alemanha. Berlim foi sempre o principal interlocutor de Moscovo e a presença do antigo chanceler Gehard Schoeder na liderança do projecto Nord Stream 2 é um lembrete simbólico dos negócios entre a Rússia e a Alemanha.

Ao suspender a certificação do gasoduto 2, Olaf Scholz - que sucede a Schroeder pelo SPD na chancelaria, mesmo em coligação - deu sobretudo um sinal político. Fechar o gás à Europa é a ameaça velada russa, como lembrou esta sexta-feira António Costa Silva, gestor de longa data na área energética e mentor do PRR. Assumir o confronto é o risco subjacente a um endurecimento de sanções pela exclusão da Rússia do sistema SWIFT de transações bancárias.

"As dependências económicas que se toleram transformam-se tarde ou cedo em dependência políticas e até em dependências estratégicas", afirmou esta semana o Ministro Português dos Negócios Estrangeiros no Parlamento. Augusto Santos Silva diz que a Europa não pode continuar a contornar a questão da excessiva dependência em que se encontra face à Rússia em matéria de energia "que dá uma alavanca à Rússia e uma debilidade à Europa que só contribuem para um desequilíbrio estratégico e político".

Que outras incógnitas subsistem para os próximos dias?

No plano militar e geo-estratégico, os próximos dias vão clarificar até que ponto os russos vão dominar a Ucrânia ao ponto de se aproximarem decisivamente das fronteiras com países NATO. O reforço das forças aliadas, anunciado pelo Secretário Geral da Aliança Atlântica, confirma apenas o que já estava nos planos de contingência.

" Não se trata apenas de posicionar forças quando nada vai acontecer. Os serviços de informações da NATO conseguem ver muito longe. As manobras de natureza militar demoram tempo. Não podemos correr o risco de chegarmos atrasados em relação a movimentos que vemos a acontecer bastante longe", acentua o major-general Arnaut Moreira.

Este reforço é dramatizado pela invasão russa e pelas ameaças deixadas a países como a Suécia e sobretudo a Finlândia, ocupada pelos russos por diversas vezes na História. Arnaut Moreira diz que é preciso posicionar bem as forças antes que o mal esteja feito,

"Se há países como a Polónia que têm um enorme território e com capacidade de amortecimento perante eventual ataque russo, existem também territórios do Báltico onde não existe profundidade estratégica", acrescenta o especialista em geoestratégia.

Sobram incertezas múltiplas, incluindo o posicionamento de Pequim face á decisão de Putin. Como pano de fundo estão também eventuais modificações na relação global de forças, esperando-se uma clarificação da posição chinesa sobre a invasão russa. Mais tarde ou mais cedo, o foco de tensão EUA/China poderá voltar a sentir-se de forma evidente, incluindo em disputas territoriais como Taiwan.

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