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Conferência "Portugal: Um país condenado a ser pobre?"

"Sociedade portuguesa é demasiado condescendente com a pobreza"

13 dez, 2023 - 11:15 • Inês Braga Sampaio , Isabel Pacheco

Carvalho da Silva alerta para as várias dimensões da pobreza. José Manuel Fernandes salienta a importância de evitar a "política de biscates" e António Castro pede que se comece pela trotinete em vez de partir logo para o Rolls Royce.

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Portugal é "condescendente" com a pobreza e não sabe considerar todas as suas dimensões, denuncia Manuel Carvalho da Silva, coordenador do Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLABOR).

Declarações no primeiro painel da conferência Renascença/Câmara Municipal de Gaia "Portugal: um país condenado à pobreza?", em Vila Nova de Gaia, intitulado "Produtividade: As empresas podem fazer mais?".

O coordenador do CoLABOR refere que há "dois ou três aspetos" importantes a ter em conta, na discussão da pobreza em Portugal.

"Somos um país muito, muito pobre. Pior que isso: a sociedade portuguesa é demasiado condescendente com a pobreza. Quase só nos soa a pobreza material e a pobreza é muito mais do que isso. Não se vê a pobreza nas suas dimensões todas", lamenta.

Carvalho da Silva entende que "o trabalho e os trabalhadores estão no centro destes problemas" e cita o Papa Francisco, que disse que "a solidariedade só o é, efetivamente, quando é transformadora".

"Nós só temos crianças pobres porque há famílias pobres. E a maior parte dos membros das famílias pobres trabalham", vinca Manuel Carvalho da Silva, acrescentando que "a produção da riqueza não é só crescimento económico e a economia e as empresas não podem ser só negócio".

António Castro, do centro empresarial INOVAGAIA, declara que o primeiro passo para contrariar a pobreza é saber começar por baixo.

"Não devíamos pensar em começar por fazer um Rolls Royce, mas sim uma trotinete, isto é, o mínimo produto viável, para que as nossas empresas sejam mais produtivas. É um processo que exige muita qualificação dos nossos empresários, dos nossos recursos humanos, que hoje em dia são já muito valorizados. Começamos com uma trotinete, depois se calhar passamos para a bicicleta, da bicicleta para a mota, da mota para o carro e por aí fora. Planeando, tendo políticas públicas estáveis e flexíveis", afirma, numa curta intervenção por videochamada.

Qual é o verdadeiro valor do salário mínimo nacional?

O primeiro tema de debate centra-se nos salários, nomeadamente no salário mínimo nacional (SMN), e como impactam a produtividade nas empresas.

José Manuel Fernandes, presidente do Conselho Geral da Associação Empresarial de Portugal (AEP), lembra que os salários são condicionados vários fatores e considera que é mais importante ter pessoas felizes do que fixar o SMN.

"Não me revejo de forma nenhuma na fixação de salário mínimo. É um valor referencial. As empresas têm de adotar uma política de ter pessoas felizes no ambiente de trabalho, de ter pessoas equilibradas e de fixação das pessoas nas empresas com estabilidade. Hoje, cada vez mais cada trabalhador na empresa e de qualquer empresa é detentor do 'know-how' da própria empresa. O que estava na mão do empresário cada vez mais está a ser transferido pelas tecnologias para os colaboradores, mesmo ao nível daqueles que ganham menos. Urge a valorização das pessoas e da componente da produtividade e estratégia intrínseca da empresa", afirma.

Nesse sentido, o empresário considera que Portugal tem um problema de "forma de estar no trabalho" e que urge formar os líderes das empresas "para valores mais altos:

"Há atividades que, por serem menosprezadas, paga-se o SMN. Como empresário, sempre defendi que cada pessoa dentro da organização é uma pessoa importante. Cada um de nós seja quem for é uma pessoa importante. A empresa tem de valorizar. Não acontece mais vezes por um problema de cultura dos líderes e de cultura do empresário."

Para Manuel Carvalho da Silva, Portugal precisa de "produzir mais, vender aquilo que produz por mais valor e distribuir melhor".

"Temos má distribuição em relação à riqueza que temos. Isso não é só ir ao socorro dos pobres e muito pobres em situações de crise. O primeiro instrumento para uma melhor distribuição é a melhoria dos salários. E o segundo elemento é a existência de direitos sociais fundamentais com qualidade", sublinha.

Saber redimensionar passa por saber valorizar todos e cada um


José Manuel Fernandes reforça que "todos os elementos que estão dentro da empresa são importantes".

Para o presidente do Conselho Geral da AEP, "a partir de uma certa dimensão as empresas e o empresário têm de ter uma cultura de preparar continuamente as pessoas e de partilha de responsabilidade".

"Precisamos de ter nas nossas empresas jovens a mais, em termos de licenciados. Isto associado a uma política de incentivos fiscais. Podemos até ter funções duplicadas, mas isso permite descobrir os talentos e identificar os melhores e direcionar os talentos de cada um. Se os recursos estão dentro da empresa, eles são aplicados e ajustados. Se tenho alguém a mais, tenho resposta, porque tenho alguém que está a ser preparado. Excedente de jovens permite empurrão para o redimensionamento empresarial. As médias empresas precisam de passar a grandes, as pequenas a médias, as micro a pequenas", assinala.

Fernandes realça, contudo, que os mobilizadores da decisão de crescimento da empresa é, e tem de ser, o decisor: "O acionista, o empresário, o gestor de topo."

Manuel Carvalho da Silva concorda que "as empresas passam de micro a médias e 'et cetera' através de os gestores terem formação e visão estratégica" e que isso "implica que as pessoas façam formação e que tenham conhecimento do contexto e em que mundo vivemos".

"Em Portugal, é uma lacuna enorme. Neste momento, as dinâmicas geopolíticas alteram fatores e variáveis de atuação do dia a dia muito mais do que quaisquer outras alterações que estão a acontecer à escala global. É preciso uma noção de como é que se podem situar bem nas cadeias de produção e distribuição. Utilização dos nossos recursos naturais. O negócio vai dar, a questão é da utilização que vai ser feita o que é que fica para o país", destaca.

António Castro realça que tem sentido, da parte da atividade económica, mais concretamente nas "startups" e nas "skill-ups","uma enorme ambição de fazer diferente, de ter propósito no que se está a fazer, de não reduzir a escala que se está a fazer à escala nacional ou local".

"Antes contar-se-iam o número de empresas exportadoras, hoje em dia uma pequena empresa já procura isso", enaltece o representante da INOVAGAIA.

"Precisamos de profissões. Não se crie a ideia de que vão ser todos trabalhadores por conta própria"

Na lógica da formação de quem lidera, o coordenador do CoLABOR devolve a discussão aos jovens. Diz que, hoje em dia, temos uma juventude sobrequalificada, ainda que não se deva dizer que fazem formações universitárias "em áreas que não interessam".

"A formação escolar não é por si formação profissional, mas é a base que potencia a qualificação profissional. Temos de utilizar as formações que os nossos jovens fizeram. Existe um potencial para qualificar os portugueses muito grande. De 2009 a 2023, alterou-se a composição do emprego. O componente que mais cresceu foram os trabalhadores por conta de outrem: aumentou 900 mil. Preparemos as pessoas para o trabalho concreto que elas vão ter. Vamos continuar a precisar de serralheiros, de eletricistas, de estocadores, de técnicos de programação. Vamos ter outras novas, mas também vamos ter estas. Prepare-se as pessoas. Isto não significa que os trabalhadores nestas profissões não possam ser licenciados até noutras áreas. Aproveitemos o potencial que temos."

Manuel Carvalho da Silva assinala, ainda, que a discussão sobre a evolução qualificativa "arrasta, também, a questão dos problemas territoriais e migratórios".

"Estamos com um cenário de dimensão enorme de migração os imigrantes são bem-vindos, mas tenhamos a noção de que a constituição da sociedade com grande percentagem de imigrantes tem implicações estruturais muito complexas. Dizem aos jovens: 'Agora são todos colaboradores ou empreendedores'. Precisamos de profissões. Não se crie a ideia de que vão ser todos trabalhadores por conta própria", reitera.

Carvalho da Silva mostra-se, ainda, contra o desenho de "cenários catastrofistas" relativamente aos avanços tecnológicos: "A tecnologia é positiva, leva-nos a desafios."

"Não há terceira e quarta idade positivas se as pessoas não tiverem condições nas primeira e segunda idades"

Uma das formas de contrariar a pobreza, no entender dos intervenientes, é proporcionar às pessoas uma vida de trabalho saudável, para que a reforma seja mais positiva.

"Assistimos à discussão de políticas de envelhecimento ativo. Temos quatro idades, a terceira a partir dos 65 e a quarta a partir dos 80. Não há condições de chegar aos 65 anos e ter uma terceira e quarta idade positivas e com atividades interessantes se as pessoas não tiveram condições na primeira e na segunda idades. Há aqui necessidade de uma reformulação profunda", aponta Manuel Carvalho da Silva.

José Manuel Fernandes, o mais velho do painel, pega no tema abordado pelo coordenador do CoLABOR e frisa que a legislação em torno do trabalho "tem de ser ajustada à forma de pensar e de organização da sociedade".

Dá um exemplo: "A minha geração começou a trabalhar com 14 anos. Quarenta anos depois, tínhamos pessoas com 54 anos dentro das empresas que começaram jovens, com aprendizagem contínua e especializada. As empresas estavam a contar com eles, porque ainda estavam longe da reforma. Surge então uma legislação que quem tivesse 40 anos de atividade estava livre. Empresas com responsabilidades tremendas que tinham acabado de investir nesses trabalhadores com 54 anos em posições avançadas de um momento para o outro viram-se com a possibilidade de, em dois ou três meses, eles irem para a reforma e deixarem um vazio para a qual a empresa não estava preparada. Isto levou a um desajustamento brutal."

O presidente do Conselho Geral da AEP denuncia que "há situações que são contranatura e outras que são fáceis de implementar e até não se lembram delas".

"Por exemplo, a questão da política pública em relação aos casais que trabalham. Surge agora o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] com as creches. Identificou-se aqui uma coisa muito simples: não é com meia dúzia de creches que vêm de um apontamento no PRR que se resolve o problema do país. As famílias têm de ter um apoio em relação aos filhos e para que se sintam produtores, logo a família cresça. Essas políticas são imprescindíveis", refere.

Manuel Carvalho da Silva intervém, salientando que não é a favor do aumento da idade da reforma, mas sim da "revisão profunda do conceito de vida ativa, de redução de horários de trabalho, de políticas de adaptação e conciliação da vida familiar com trabalho e até outras formas de encarar a vida para além da vida ativa".

"Estamos a assistir a uma destruição dos sistemas de relações de trabalho"

António Castro assinala que "não há crescimento económico sem população e sem planeta", pelo que "o tema da sustentabilidade é muito importante".

"Estamos com uma base de partida complexa, temos cinco mega tendências a nível mundial que nos condicionam: o crescimento demográfico, os riscos e o envelhecimento, a disrupção tecnológica e a rápida urbanização. Cinco mega tendências que tocam as nossas cidades e o nosso país e afeta a forma como as empresas podem olhar para a sua produtividade", adverte o empresário da INOVAGAIA.

José Manuel Fernandes considera que Portugal é capaz de desenhar soluções contra a pobreza.

"A nossa história aponta-nos que fomos sempre um povo que encontrou soluções criativas e temos capacidade para ultrapassar todas as situações negativas", frisa.

Contudo, aponta igualmente que "não podemos estar preocupados só com a coesão social, que tem tendência a fazer só a paridade por baixo".

Manuel Carvalho da Silva não discorda, mas corrige: "Conceito de estado social não é nivelamento por baixo. As políticas que têm sido feitas em nome do estado social é que se têm virado para os mínimos, na proteção dos pobres dos pobres em cada crise. Isto não dá. Se o foco é proteger os mais pobres dos pobres apenas em situação de extrema necessidade e não há direitos fundamentais assegurados, isto não dá."

"Estamos a assistir a uma destruição dos sistemas de relações de trabalho, apresenta-se o conflito como algo exterior à sociedade quando a coisa não é assim. A democracia é uma experimentação contínua e dentro do trabalho ainda mais", acrescenta.

A importância de evitar "políticos biscateiros"


No entender de António Castro, "nem tudo é negativo".

"Há capacidade hoje em dia para sermos mais produtivos. Temos uma lei das 'startups' que nos vem ajudar a criar um ambiente de negócios mais favorável, ou seja, criar as soluções de base para que no futuro a economia possa ser diferente", realça.

Questionado se uma das formas de aumentar a produtividade das empresas é a redução do Imposto ao Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), José Manuel Fernandes aposta noutra perspetiva.

"O IRC tem de ser abrangente e transversal a toda a sociedade económica, mas tem de ser ajustado e tem de ser um incentivo. Tem de ser enquadrado numa política, inclusivamente, de captação de investimento direto estrangeiro imprescindível em relação ao crescimento económico do país", salienta.

O presidente do Conselho Geral da AEP termina com um recado aos partidos e um pedido de reformulação do contexto político nacional.

"Temos potencial e, se formos bem conduzidos e tivermos os melhores a governar o nosso país, teremos soluções alavancadas com resultados muito mais rápidos. O nosso sistema político e representação não é adequado. Precisamos de ter políticos bem remunerados, bem escolhidos, que se sintam confortáveis na sua missão de dar o melhor pelo país. Se isso não acontecer, teremos sempre o biscate na política", remata.

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