Antevisão 2023

"Falta de ideias para desenvolver o país mostra que a melhor é a de reduzir a dívida pública"

01 jan, 2023 - 11:21 • João Carlos Malta

O economista Gonçalo Pina acredita que os preços da energia poderão não aumentar muito, sobretudo se a metereologia ajudar e o inverno não for tão rigoroso.Em Portugal, o desemprego até agora com números historicamente baixos pode crescer se o turismo for afetado pela retração da atividade económica.

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O economista Gonçalo Pina é especialista em finanças internacionais, macroeconomia e economia comportamental. Desde 2019, é professor da Bussiness School de Berlim. Mas desde há vários anos que está fora do país com passagens por países como os EUA, na Leavey School of Business in Santa Clara, da California. Ainda assim, mantém um olhar bastante atento em relação à realidade portuguesa.

Defende que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é uma oportunidade perdida para encontrar num novo modelo de crescimento económico. E crítica a falta de ideias do Governo para o desenvolvimento do país, de que resulta uma única opção: a de reduzir a dívida pública.

Para 2023, Pina diz que a inflação permanecerá (mas menos alta), a recessão pode ser uma hipótese, e a nível internacional sinaliza o futuro da China como a determinante mais importante para condicionar o que acontecerá.

Já a globalização, tal como a conhecemos, deverá levar mais uma machadada.

Em termos económicos, quais os acontecimentos mais importantes que poderemos esperar em 2023?

Vivemos um ano com taxas de juro mais elevadas do que nos anos mais recentes. Esperamos que o Banco Central Europeu suba as taxas de juro novamente.

Será viver num modelo económico muito diferente, com juros mais altos, que faz com que o custo da dívida suba, seja para o Estado, seja para as pessoas com o crédito à habitação.

Isso vai acontecer juntamente com o abrandamento económico, tivemos apenas

um pequeno crescimento em 2022. Para o ano, esperamos um abrandamento da economia bastante significativo e que é uma má combinação com as subidas da taxa de juro.

Essas coisas estão claramente ligadas. Mas será um ano com pouco crescimento económico, talvez uma recessão não sabemos. Depende como correrem as coisas ao nível de preços dos combustíveis.

E no resto do mundo?

Do ponto de vista global, será também as subidas da taxa de juro, mas não só. Vai afetar as economias da zona euro e dos Estados Unidos.

Eu acho que o mais importante é o que vai acontecer na China, porque estamos a receber notícias de que vão abrir as restrições relativas ao Covid. Um dos fatores que tem causado um aumento da inflação e o aumento dos preços dos bens, tem sido as políticas de Covid na China. Se libertarem um bocadinho mais a economia chinesa, isso poderá aumentar a procura e aumentar também a oferta de produtos na economia mundial. Poderá retirar um bocadinho de pressão inflacionária, e ajudar a não se tenha de subir as taxas de juro tão alto como esperamos que aconteça.

Ao mesmo tempo, há uma grande incerteza sobre o como é que a China vai voltar à economia mundial.

Se vai voltar nos mesmos moldes de antes da pandemia, uma economia que comprava muito das economias europeias, mas também vendia muito. Ou se será uma economia mais num silo, mais fechada, com um bloco diferente.

É uma questão geopolítica que não sabemos como vai ser resolvida. Está relacionada com a guerra, está relacionado com Rússia, e para que lado é que a China tenderá do ponto de vista económico. Será, porventura, a coisa mais importante a minha perspetiva para 2023.

Em relação à inflação, que bateu este ano recordes de décadas, o que podemos esperar este ano?

Eu penso que inflação vai descer um bocado. A taxa de crescimento da inflação estava já a baixar, os preços vão continuar a aumentar, mas será a um nível mais baixo do que antes.

Portanto, eu penso que já atingimos o pico da inflação no final de 2022, e 2023 terá um período de inflação mais elevada do que nos últimos anos. Mas mais controlada, seja sete ou seis por cento. Nesse aspeto estou mais otimista em relação à inflação.

Mas que será a juntar à inflação que aconteceu este ano e que não será acompanhada pela subida de salários. Isso aumentará ainda mais o custo de vida e as dificuldades?

Isto claramente, claramente. Os salários estão a subir, mas estão a subir menos do que a inflação. Ao mesmo tempo isso é bom, é parte da política de estabilização, porque criámos um crescimento de salários reais durante vários anos.

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"Depende muito da meteorologia, porque nós temos neste momento o preço do gás natural muito baixo, mais baixo do que antes da segunda invasão russa da Ucrânia. Tem sido por diferentes razões, uma delas é na Alemanha estar calor."

Em parte de 2022 também o tivémos, antes da inflação crescer. É normal que agora numa situação em que é preciso e é desejável reduzir a procura devido às pressões inflacionárias.

Por isso, convém não subir os salários ao nível da inflação se queremos baixar um bocado a inflação.

O BCE tem combatido este fenómeno com o aumento das taxas de juro. Está a funcionar?

Ainda é cedo para o saber. A inflação tem estado alta, mas não sabemos qual é o contrafactual, não é? Qual é que seria a inflação noutro mundo em que as taxas juro se tivessem mantido baixas? O Banco Central Europeu está basicamente a corrigir um período em que as taxas de juro estiveram baixas demasiado tempo, porque mesmo antes da guerra, em 2021, já se pensava que as taxas estavam demasiado altas, já se falava na inflação, pensava-se que era transitória, que se ia embora, que era só uma questão de ajustamento da oferta por causa da pandemia.

A verdade é que houve transferência de rendimento para as pessoas, durante vários anos, incluindo taxas de juro relativamente baixas, que acaba por funcionar da mesma forma.

Se olharmos para um modelo económico muito básico com dados históricos, já teria previsto um aumento da taxa de juro mais cedo do que realmente aconteceu.

Esperava-se um pouco de normalização, mas depois houve choques que ainda aumentaram a inflação mais do que o esperado, como a guerra na Ucrânia. E de repente os bancos centrais tinham perdido o comboio da inflação. Há causas da inflação que são do lado da oferta, há causas da inflação que são do lado da procura.

Não há razão nenhuma para o Banco Central não combater a parte que vem da procura, que é a componente podem controlar.

Há quem diga inequivocamente que aumentar os salários faz crescer a inflação e há quem contraponha dizendo que isso é um dogma. Na sua opinião, em que é que é que ficamos?

Crescer os salários por si só, com tudo o resto igual, aumenta os custos das empresas. Se aumenta os custos das empresas, se as empresas têm a capacidade de transferir esse aumento dos custos para os consumidores, teremos efeito na inflação.

Mas as empresas podem aumentar os salários, e reduzir os lucros. Se não houvesse a transferência dos custos para os bens finais, então não teríamos inflação.

Depende muito de quanto é que este aumento dos salários é transferido para o preço aos consumidores. E o que é que determina isso? Há várias coisas, uma delas é o ambiente competitivo.

O BCE está preocupado com o aumento dos lucros excessivos das empresas que, argumenta, podem aumentar a espiral inflacionista. De que forma é que isto acontece?

Se aumentamos o preço dos bens finais, mantendo os custos constantes, eu aumento os lucros das empresas. A inflação é medida com os preços dos bens consumidos. Há várias coisas que determinam esses preços, há custos, há as margens de lucro que afetam os lucros e, portanto, qualquer coisa que aumente os preços aumenta a inflação.

Se eu acabasse com os lucros das empresas durante um ano, se conseguisse comprometer-me que é só neste ano que não há lucros, para o ano já podem ter lucros outra vez, a inflação medida este ano provavelmente seria mais baixa.

Mas agora não é tão fácil saber quanto é que cada uma dessas coisas afeta a inflação.

A questão dos lucros contribuiu para a inflação ou não? Contribui se forem à base do aumento dos preços. Se for na base de reduzir os custos, não.

Lucros não é necessariamente mau, porque uma empresa pode reduzir os custos e aumentar os lucros. É uma maneira muito, muito eficiente para todos de obter lucros que não gera inflação.

Sobre os lucros excessivos que temos visto, é difícil saber o que é que é excessivo. Mas pode-se medir, posso olhar para 2019 e ver se estão a crescer muito em relação a esse ano. Mas ao mesmo tempo é complicado saber o que fazer sobre isso. Não podemos proibir os lucros.

Não sei se vai contribuir muito para reduzir a inflação, porque na verdade pode traduzir-se numa falta de produtos que acaba por reduzir a oferta e aumentar mais os preços. Por isso não é nenhuma panaceia.

Em relação à questão da energia, a guerra da Ucrânia fez aumentar os problemas. Podemos esperar um aumento do preço este ano?

Depende muito da meteorologia, porque nós temos neste momento o preço do gás natural muito baixo, mais baixo do que antes da segunda invasão russa da Ucrânia. Tem sido por diferentes razões, uma delas é na Alemanha estar calor.

Há alguma incerteza. Pode ainda correr mal se vier um inverno muito, muito frio. Se continuar uma temperatura amena, não temos grandes efeitos porque temos reservatórios bastante cheios de gás natural. Temos descoberto que é possível reduzir o consumo de energia a nível industrial, nos agregados familiares, sem se afetar a economia demasiado.

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"Um dos fatores que tem causado um aumento da inflação e o aumento dos preços dos bens, tem sido as políticas de Covid na China. Se libertarem um bocadinho mais a economia chinesa, isso poderá aumentar a procura e aumentar também a oferta de produtos na economia mundial."

Por isso, estou um bocado mais otimista em relação ao preço da energia do que estava há seis meses. Penso que o preço energia ainda poderá aumentar, mas não tanto como se esperava.

Fala-se também do risco de iniciarmos um período de recessão. É uma possibilidade real?

Sim, sim, sem dúvida. Se houver um período de preços energéticos muito, muito altos, isso vai criar uma pressão, especialmente nos custos. Estes são custos que não dá para obter lucros. Vai reduzir a atividade económica.

Há o risco de as taxas de juro subirem, subirem e não haver um mecanismo para aterrar a economia suavemente, criando talvez no sistema um mecanismo de default, de falta de pagamento, de ajustamento económico desorganizado que reduz dramaticamente a procura. Porque quando se começarem a ter notícias dessas, as pessoas vão parar de consumir, vão parar de investir e as empresas também.

Isso não é desejável. Nós queremos um abrandamento da procura, mas não queremos um desastre. Mas isso é um risco que temos. Porque, primeiro que tudo, é difícil saber qual é o efeito da subida de taxas de juro nestas variáveis, até acontecerem. É difícil saber o que é que se pode fazer para impedir que os efeitos negativos se materializem.

E lá está, como falei, temos de ver o que vai acontecer na guerra e também na posição geopolítica da China, porque é um parceiro económico muito importante para muitos países. É o maior mercado de exportação da Alemanha, por exemplo.

Portanto, temos de saber o que é que vai acontecer nesta parte gigantesca da economia mundial, se vai continuar a procurar comprar produtos a países da zona euro ou se se vai isolar e estabelecer um mundo bipolar que levaria a uma recessão.

A Alemanha, para dar um exemplo, perdia imediatamente o maior mercado que tem. Isso reduz a procura, reduz as encomendas e reduz a atividade económica dramaticamente.

Uma possível recessão implica o aumento do desemprego?

Até agora o desemprego tem estado bastante baixo. Mas se houver um abrandamento da atividade económica, é expectável que aconteça.

Já em 2023?

Sim, depende. Depende do que acontecer no crescimento, que vai abrandar dramaticamente em Portugal. A taxa de desemprego é baixa, mas há muita gente que deixou de contar para este número porque deixou de procurar emprego.

Nós temos uma economia em que o emprego está relacionado com o turismo. Basta o turismo abrandar significativamente, e é normal que isso aconteça se houver uma queda de rendimento dramática.

Por isso, é esperado que aconteça um aumento do desemprego no próximo ano em Portugal.

Os últimos anos têm sido marcados por machadadas no processo de globalização. A guerra na Ucrânia é o golpe fatal neste processo?

É um golpe. A globalização dos últimos 30 anos foi na base o incorporar na economia mundial da China e dos países de Leste, ou seja, os países do antigo bloco soviético. Esses são os grandes contribuintes para o aumento do comércio internacional.

Se isso mudar agora, ou uma parte significativa mudar, por exemplo a Rússia ou a China, isso levará a uma redução do comércio internacional, que poderá traduzir-se numa numa questão da globalização.

Ao mesmo tempo, este discurso de resiliência que temos ouvido falar da economia, sobre ter produção energética doméstica, produção de bens de vacinas, produção de bens essenciais à saúde, isso é tudo antiglobalização.

Ou seja, passamos de um mundo de custos baixos, mas com muitas trocas comerciais, com muita interdependência, para um mundo em que os países são mais independentes ou mais resilientes. Isso é um mundo com muito menos globalização.

Ao mesmo tempo, isto gera um desafio aos países que querem estar mais ligados, ligarem-se ainda mais, porque isso pode contrabalançar um bocadinho os efeitos negativos da guerra e da pandemia.

Há uma oportunidade de resolver a guerra comercial entre os EUA e a UE, de voltar a um mundo em que ao menos os países que são aliados em termos geoestratégicos e militares voltem a ser aliados em termos de comércio internacional.

Há várias dimensões em que se pode aprofundar a globalização que não se têm feito, não só em comércio de bens, pode-se reduzir as taxas alfandegárias em diferentes produtos, mas principalmente comércio e serviços, que é uma parte muito grande das economias desenvolvidas que não está sujeita ao comércio internacional, não está sujeita à competição, nem mesmo dentro da zona euro.

Há diferentes barreiras que fazem com que seja difícil. Por isso eu penso que há uma oportunidade para aprofundar ainda mais ligações comerciais. Se acontecer o pior cenário, o de haver um mundo bipolar, acho que vamos ter uma redução de comércio com o outro polo, mas poderá haver aprofundamento de relações comerciais no chamado Oeste.

Em relação à China, depois da draconiana política Covid zero, há agora uma reabertura abrupta da sociedade. O que acha que estes movimentos poderão trazer para a economia global?

Se se confirmar a abertura económica são boas notícias, porque nós tínhamos fábricas fechadas, tínhamos a falta de atividade económica. Isso vai ser tudo resolvido, o que permitirá fornecer bens ao resto do mundo e aumentará a procura por parte da China de bens produzidos no resto do mundo.

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"Será um ano muito difícil com o abrandamento económico, a subida das taxas de juro, com o aumento das desigualdades, com um vácuo de política económica para Portugal e não só."

E isso são boas notícias para todos. É um país que não vacinou como outros países, há um risco do custo de saúde ser demasiado alto e as coisas andarem para trás e para frente. O que provavelmente será pior. Uma coisa que seria muito importante ter em 2023 era alguma certeza, alguma confiança de quais são os ventos económicos, porque as empresas, as famílias têm de fazer decisões com base em expectativas.

Se não sabe o que é que vai acontecer, não se tomam decisões. E isso faz com que não se invista, não se criem empresas, não se façam reformas de gestão, reformas dentro das empresas, o que seria desejável para uma economia vibrante. Portanto, se essa questão de saúde for possível de gerir sem afetar a parte económica, são ótimas notícias.

Perante isto tudo, está otimista ou pessimista em relação a este ano que agora começa?

Parto de uma base muito baixa. Eu estava muito pessimista há seis meses e agora estou mais otimista. Mas claramente será um ano muito difícil com o abrandamento económico, a subida das taxas de juro, com o aumento das desigualdades, com um vácuo de política económica para Portugal e não só.

Há uma falta de ideias sobre o que fazer para gerar crescimento a longo prazo. Por isso, eu diria que na conjuntura estou um bocado mais otimista, porque penso que será um bocado mais fácil do que esperado. Ou seja, teremos a inflação um bocado mais baixa, temos o abrandamento económico, mas não uma recessão.

Eu já esperava uma recessão no último trimestre que não aconteceu, por exemplo, na Alemanha.

Acho que vamos ter uma economia um bocadinho melhor do que era esperado, mas claramente muito diferente do que foi em 2022. Menos inflação, mas também menos crescimento económico.

A longo prazo, estou mais pessimista, porque foi um ano, no pós-pandemia, em que se podia ter usado este ímpeto reformista para fazer diferente, até para discutir diferentes opções estratégicas sobre onde investir o dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), sobre o modelo de desenvolvimento económico do país. Não se tem visto essa discussão, e muito menos resultados.

Acha que será uma oportunidade perdida? O PRR?

Sim, sim, completamente. Acho que vamos ter efeitos na procura no curto prazo, mas vamos ter poucos efeitos a longo prazo. Não antecipo uma mudança da trajetória do país. Não seria fácil de acontecer, não é. Mas podia ser tentado, e acho que nem sequer se tentou fazer isso.

A falta de ideias sobre o desenvolvimento estratégico do país, mostra que a melhor ideia que se tem é reduzir a dívida pública. E faz sentido quando não se tem grandes projetos, é melhor usar o PRR para pagar algumas contas que não são investimentos e, do outro lado, reduzir a dívida pública, que é o que se tem visto.

Mas isso traduz basicamente uma falta de perspetiva para o crescimento económico.

É uma política que faz sentido quando não há bons investimentos, mas parece não se procurou muito por esses bons investimentos. Não aconteceu essa discussão como poderia ter acontecido.

Perdeu-se claramente uma oportunidade aí, em que as pessoas estavam em casa com tempo para ler e para pensar, o que é que seria um modelo de desenvolvimento para o país.

Portanto, sim, foi uma oportunidade perdida.

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