Entrevista a João Ferro Rodrigues

"Vamos ter menos dinheiro no bolso no próximo ano"

26 out, 2022 - 18:49 • João Carlos Malta (entrevista), Ricardo Fortunato (fotos)

João Ferro Rodrigues defende, ainda assim, a lógica do Governo de não aumentar os salários ao nível da inflação. O economista argumenta também que a esquerda moderna tem de ter as contas certas como uma prioridade.

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João Ferro Rodrigues é um economista que gosta de pensar além da economia. O também gestor, de 46 anos, licenciado na Universidade Católica e que fez o MBA pela Harvard Business School, tem dedicado a carreira às áreas de consultoria estratégica, energia e tecnologia.

Filho do ex-presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, pai de quatro filhas, não se cansou de dizer, nesta entrevista à Renascença, que é um otimista. É por isso que defende que o país não está estagnado, socorrendo-se do número de licenciados com entre 18 e 34 anos, que subiu de 13% para 50% em cerca de 20 anos.

Olhando para o Orçamento do Estado de 2023 (OE 2023), defende as opções tomadas pelo Governo, que diz não ter querido "jogar já as cartas todas". Acredita que o documento é propositadamente conservador, para poder responder à incerteza do próximo ano. Uma coisa, contudo, é certa: os portugueses vão viver com menos euros na carteira já a partir de janeiro, diz Ferro Rodrigues.

Define-se como um homem de esquerda, mas nem por isso é menos adepto de contas certas. Defende mesmo que é um condição para esquerda moderna governar. Só com um défice controlado, argumenta, se pode reforçar os serviços públicos e não dar munições à direita para destruir o estado social.

Por fim, fala do mito da meritocracia e da necessidade de rebentarmos as bolhas em que vivemos. Autor do livro "A Era do Nós", acredita que temos à porta o comunitarismo, que tomará o espaço do individualismo.

Vivemos num país em que a maior parte da população se queixa constantemente do Estado, seja o cidadão comum ou os empresários. No entanto, nas horas de crise olhamos sempre para o Estado como a entidade que vai resolver os nossos problemas. A que é que se deve esta atitude aparentemente antagónica?

Bem, penso que é a prova de que falta aqui um nível intermédio, mais comunitário, para resolver alguns dos problemas. Nós temos a sensação de que a nível individual há coisas que nos escapam e que precisamos de uma força coletiva para os resolver. Mas outras vezes sentimos que o Estado, enquanto poder central, se calhar é uma força demasiado opressora para esses mesmos problemas.

Acho que falta ao nosso país um pouco mais de capital social, mais capacidade de organização coletiva, quase de bairro a bairro, a nível do associativismo. Para podermos resolver as questões face às quais, muitas vezes, sentimos impotência a nível individual e opressão a nível do Estado.

"Chegámos a uma estagnação económica que é perigosa, porque cria um desânimo em relação ao que a democracia pode trazer. Isto tem perigos muito grandes e evidentes; quando uma pessoa já não tem nada a perder, muito mais facilmente abraça propostas mais radicais, em que na realidade tem muito mais a perder, mas nem imagina."

Portanto, diria que é esse “layer” intermédio que, enquanto sociedade civil, é necessário cada vez mais organizar.

Essa é uma das críticas que se aponta à sociedade portuguesa, a fraca participação na vida comunitária. Isso deve-se a quê?

Tem raízes históricas. Antes de mais, a nossa história sempre foi um bocado centralizadora a nível do poder político e, portanto, foi tarde que começámos a criar relações mais horizontais, relações mais normais, mais transversais, que não dependem de alguém que é o nosso superior a nível hierárquico ou de poder.

Mas eu sou otimista por natureza. Acho que temos feito um caminho muito interessante. Muitas das críticas que referiu inicialmente da sociedade civil a rebelar-se contra aquilo que acha que são serviços que não têm qualidade, há quem veja a parte negativa disso, que é o facto de estar a ser criticado.

Mas também podemos ver a face positiva, que é a de já haver sociedade civil organizada para refilar, porque exige mais e, muitas vezes, já a organizar-se para trazer soluções também.

Fala-se muito que o país está estagnado. Eu não concordo, acho que o patamar de exigência que temos enquanto cidadãos é muito superior hoje em dia do que era há 20 anos.

Isso tem a ver com a qualificação média das pessoas. Ainda recentemente estava a ver um estudo que dizia que, neste momento, entre os 18 e os 34 anos já quase 50% da população tem o Ensino Superior. Em 2000 era 13%.

Ou seja, isto não é um país estagnado, isto é um país muito diferente nos últimos 20 anos. E isso reflete-se na participação coletiva. As pessoas com mais educação, com mais cultura, também participam um pouco mais.

Alguém que tenha nascido no início da década de 1980 e tenha começado a sua carreira profissional algures em meados de 2000 ainda não lidou com outra realidade que não a de um país em crise. Que efeitos tem isso sobre a sociedade e sobre estas pessoas?

Acho que não é bom. Eu comecei um bocadinho antes desse exemplo que deu. A verdade é que mesmo pessoas da minha geração, muitas delas em termos reais ganham absolutamente o mesmo que ganhavam quando começaram a trabalhar, e agora têm filhos e vidas muito mais complicadas. Têm muito mais custos e têm os mesmos rendimentos.

A consequência principal é que nós fomos uma geração que viu os nossos pais a melhorar a qualidade de vida. De repente acreditámos que íamos ter o mesmo percurso. E a verdade é que não.

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"Vamos ter menos dinheiro no bolso no próximo ano. Penso que os aumentos salariais não vão acompanhar o aumento da inflação (...) como economista não sei se a melhor política é os aumentos salariais serem exatamente no valor da inflação, porque isso cria o que se chama uma espécie de uma espiral inflacionista que dá um incentivo para que os preços subam mais, e depois voltamos a ter que fazer aumentos salariais"

Chegámos a uma estagnação económica que é perigosa, porque cria um desânimo em relação ao que a democracia pode trazer. Isto tem perigos muito grandes e evidentes; quando uma pessoa já não tem nada a perder, muito mais facilmente abraça propostas mais radicais, em que na realidade tem muito mais a perder, mas nem imagina.

No fundo, penso que é muito perigoso e que, aliás, é uma das causas dos políticos extremistas e do seu apelo, tem muito a ver com o desânimo que muitas pessoas sentem.

É mesmo preciso a economia voltar a crescer um pouco mais, as pessoas sentirem que estão a progredir a nível material, e com isso criar condições melhores para os seus filhos, e assim afastar modelos de sociedade que podem ser apelativos, mas que são muitíssimo perigosos.

Mudando um bocadinho a agulha para abordarmos aquilo de que se tem falado nas últimas semanas, que é o Orçamento do Estado. Uma das grandes discussões é se os aumentos que o Governo anunciou são nominais ou aumentos reais. Fugindo aqui um bocadinho ao 'economês', os portugueses vão viver melhor ou pior em 2023?

Não sei. Penso que é um orçamento equilibrado. Ou seja, eu percebo a preocupação com a incerteza que está à nossa frente, e o Governo não ter desde já posto todas as cartas na mesa, e ter ficado com alguma almofada para ir respondendo à evolução das circunstâncias ao longo do ano que vem. A sensação é a de que este orçamento permite isso.

É um orçamento um bocadinho conservador, e se calhar houve quem ficasse iludido a achar que o Governo poderia ter ido mais longe. Mas o Governo preferiu ficar com algumas cartas na mão para jogar mais tarde, ao longo do ano, conforme a economia evolua.

Pode evoluir para muito pior ou até podemos ter uma surpresa positiva e algumas dessas medidas acabarem por não se justificar. Agora, o orçamento em si mesmo, eu não sei se a consequência líquida é a de melhorar ou piorar a vida das pessoas. Agora acho que é consensual que vamos ter um ano de 2023 mais difícil.

Vamos ter menos dinheiro?

Penso que sim. Penso que vamos ter menos dinheiro no bolso no próximo ano. Penso que os aumentos salariais não vão acompanhar o aumento da inflação e agora este orçamento tentou assegurar que as pessoas que têm menos dinheiro no bolso, tradicionalmente, por terem salários mais baixos, sejam mais protegidas desse choque. E nesse sentido, pareceu-me correto.

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"A esquerda tem o dever ético e político de ter contas certas, porque se não tiver as contas certas, quando a direita chega ao Governo, usa esse argumento para basicamente dar cabo do Estado Social em diversas vertentes"

E também digo, como economista não sei se a melhor política é os aumentos salariais serem exatamente no valor da inflação, porque isso cria o que se chama uma espécie de espiral inflacionista que dá um incentivo para que os preços subam mais, e depois voltamos a ter de fazer aumentos salariais.

Há quem conteste essa ideia...

A raiz do processo inflacionário foi de oferta, concordo, mas neste momento eu acho que já passámos esse nível e há aqui uma questão de gestão das expectativas que tem de ser cuidada.

Sou crítico de muitas coisas da economia mais tradicional, mas aqui confesso que adiro a essa versão da história e acho que, neste momento, há uma necessidade de controlo de expectativas.

Muitos atores falam do OE 2023 como a continuação de uma lógica de austeridade que vem do passado, apenas emoldurada por uma narrativa diferente. Este é um orçamento de austeridade?

Eu acho que há uma crítica que é justa e outra que é injusta. A crítica justa, mas que já vem de trás, do Governo da chamada geringonça, é a de que uma coisa foi o Orçamento e outra foi a prática orçamental com as chamadas cativações.

O Governo da geringonça sempre teve uma política orçamental mais restritiva do que o Orçamento supunha. O que eu acho injusto é dizerem que isto mudou agora. Portanto, eu acho que vai continuar a acontecer. Agora, se me perguntar se eu acho bem ou mal, eu acho bem.

Eu sou de esquerda e sou uma pessoa que vota à esquerda. E penso que a esquerda tem o dever ético e político de ter contas certas, porque se não tiver as contas certas, quando a direita chega ao Governo, usa esse argumento para basicamente dar cabo do Estado Social em diversas vertentes.

Se as contas estiverem certas, não podem usar esse argumento e, portanto, quem tem que ter a preocupação das contas certas é quem quer um Estado Social mais forte.

O que eu acho irresponsável é quem acha que quer mais Estado, e quer mais políticas de redistribuição, e ao mesmo tempo não se preocupa com esta questão das contas certas, porque mais uma vez é a diferença de pensar no curto prazo ou no médio e no longo prazo.

Eu gosto do papel do Estado e da redistribuição, mas não é só este ano, é daqui a 10 ou 20 anos, tal como na Segurança Social.

Este Governo e o António Costa têm esse mérito, não é um demérito: o de perceber que uma esquerda moderna tem de ser o principal defensor das contas certas.

Olhando para a experiência mais recente destes últimos sete anos de governação PS, podemos dizer que temos um Estado Social mais forte do que o que tínhamos?

Penso que temos sem dúvida nenhuma um Estado Social mais forte do que tínhamos em 2013 ou 2014. Não tenho nenhuma dúvida. Agora se temos o que gostaríamos de ter, não temos.

Há justas críticas a serem feitas, e eu faço-as, há cativações que poderão ter sido exageradas, por exemplo. Não sou militante de nenhum partido e, portanto, tenho muita facilidade em perceber isso. E não estou sempre muito satisfeito com o desempenho governativo em algumas dessas áreas.

Houve quem achasse que se podia ter percorrido mais caminho, mas dizerem que se andou para trás acho que é inteiramente injusto.

A questão da habitação tem hoje em dia uma centralidade cada vez maior. Ainda assim, no OE 2023 não há medidas robustas para fazer face, por exemplo, ao aumento das prestações das casas, que têm a ver com a subida em flecha das taxas Euribor. Como é que será possível para as famílias viverem com esta pressão?

Eu concordo que o Orçamento não responde a essa questão. Não tenho a certeza se teria que responder completamente. A verdade é que há aqui uma geração que não é minha, que é mais nova, que não conheceu outra realidade além desta e que vai sofrer uma perda de poder de compra clara com o aumento das prestações do crédito à habitação.

Isto é um território novo. Lá está, é uma daquelas almofadas que o Governo poderá estar a querer guardar. É um problema que está a acontecer em toda a Europa, porque as taxas de juro foram historicamente baixas nos últimos 15 anos e há pessoas que basicamente podiam pagar uma casa nesse mundo, e neste mundo de inflação alta e taxas de juro mais altas vão ter dificuldade com aumentos de duas e três vezes a sua prestação.

No meu livro abordo o tema de um ponto de vista mais estrutural e não conjuntural, tem mais a ver com assegurar que nos mesmos bairros podemos ter pessoas de diferentes estratos sociais. E que tipo de políticas é que são necessárias para que isso aconteça? O arrendamento acessível, mas também quotas de rendas controladas dentro dos novos empreendimentos. Isto é uma coisa comum em muitos países da Europa, aumentar a oferta de casas e de habitação pública, que é essencial.

Temos um número ridículo, uma percentagem ridícula, de oferta pública de casas em relação aos outros países. Sem haver dogmas, temos de controlar as questões do alojamento local e dos AirBnB. Porque não vale a pena esconder que isso mexe nos preços do mercado da habitação.

A habitação é uma área que não se pode deixar à mercê da lógica do mercado puro e duro. A habitação é que é o bem, não é o mercado que é o bem.

O mercado deve ser regulado e deve ser utilizado para que as pessoas tenham direito a uma casa digna e vivam em comunidades que são diversas e não em silos, sejam eles pobres ou ricos.

Escreveu "A Era do Nós" na ressaca da pandemia, no final de 2021. Nessa altura, falou-se muito das mudanças que a Covid-19 ia trazer em termos económicos e em termos sociais. Essas transformações, essas grandes transformações, um ano depois, acha que se efetivaram? Ou a vida continua igual?

Não penso que seja uma coisa nem outra. Penso que em algumas áreas as pessoas foram demasiado otimistas sobre o impacto que a pandemia teria a longo prazo, e que rapidamente não se materializaram em alterações.

Mas houve outras áreas, como o trabalho, principalmente nos serviços, em já não vai voltar atrás.

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"Estamos a recrutar pessoas, temos gente muito nova, programadores, a perguntar se não podem trabalhar a 100% remotamente e nós dizemos que não"

Ou seja, na hibridização do trabalho, no trabalho remoto, na redução do dia e das idas ao escritório. Penso que é algo que veio para ficar.

Essa transformação não prejudica aquilo que defende, o reforço da ideia de comunidade? A diminuição da presença das pessoas no local de trabalho, que além de um espaço laboral é um espaço de convivência, não é um risco?

É, sem dúvida. Eu refiro isso no livro, numa lógica individual ficarmos em casa é óptimo e parece ser bom no dia-a-dia. Cada dia é confortável. Não fazemos o tal “commuting” em transportes públicos, duas horas para o escritório e até somos mais produtivos a trabalhar.

Mas é como pormos uma rã numa panela com água quente, e ela não está a perceber que vai haver um momento em que explode. Somos animais sociais e esse tipo de compartimentalização das nossas vidas, atomização, e solidão adicional que estamos a criar, faz-nos mal psicologicamente e fisicamente.

Está demonstrado que as pessoas que têm mais interações sociais têm vidas mais saudáveis e mais longas.

Penso que me agrada um paradigma que tem ainda muito escritório, porque eu sinto falta dessas interações, mas também me agrada a possibilidade de quando necessitar, poder ficar a trabalhar em casa. E eu sei que para quem vive fora do centro de Lisboa, isto é um valor acrescentado.

É importante esta possibilidade de ficar dois ou três dias por semana em casa, acrescenta valor. Agora quem trabalha de uma maneira remota permanentemente, pergunto-me se saberão bem o que estão a fazer do ponto de vista da sua qualidade de vida.

Sobretudo também para quem entra no mercado de trabalho, logo dessa forma....

Eu sou gestor de uma empresa tecnológica, estamos a recrutar pessoas, temos gente muito nova, programadores, a perguntar se não podem trabalhar 100% remotamente e nós dizemos que não. E perdemos alguns candidatos excelentes com isso.

Penso que há uma utopia destes jovens que estão a sair para o mercado de trabalho, que não percebem como o trabalho presencial poderia valorizar a sua progressão de carreira, as suas aprendizagens.

Aos 46 anos, grande parte das alterações que tive profissionais foram por convite de pessoas com quem tinha trabalhado anteriormente. É assim que as coisas funcionam. Uma pessoa em casa, remotamente, não cria essas raízes, não cria essas relações e então as pessoas mais novas ainda são as que têm mais a perder se ficarem em casa a trabalhar.

E, portanto, o ponto de vista económico é um bom exemplo daquilo que parece ser uma poupança no curto prazo, que se traduz em menos rendimentos no futuro.

As sociedades ocidentais capitalistas têm vivido nos últimos anos assentes na ideia da meritocracia. Defende que este conceito pode ser enganador. Porquê?

Bem, em primeiro lugar, porque estamos muito longe de uma meritocracia pura e, portanto, normalmente quem eu vejo a defender a meritocracia, e até os partidos políticos que mais falam dessa palavra, se vamos ver os seus eleitores são pessoas que tiveram muito apoio para chegar onde chegaram.

Só que se calhar não conseguem admiti-lo como eu, que tive, consigo. Já nasceram em boas famílias ou em famílias em que os pais já tinham uma educação, muitas vezes, mais elevada e, portanto não foram eles a fazer essa escalada social. Chegaram a profissões como médico ou gestores e atribuem apenas ao seu mérito esse percurso, quando, na realidade, se calhar andaram em escolas que os prepararam muito mais, porque os pais podiam, e tiveram explicadores. E, portanto, tiveram todo um conjunto de fatores de suporte à sua progressão que outros não tiveram.

Depois olham para esses outros e dizem “estudasses, esforçasses-te”. Sabemos que não é assim e sabemos que cada um de nós tem um ponto de partida que pode ser favorável ou desfavorável para esse percurso.

O que me incomoda na questão do mérito, antes de mais, é que muitas das pessoas que usam essa palavra no discurso político em Portugal deveriam ser as primeiras a dizer: "OK, mas eu reconheço que pessoalmente sou daqueles em que há um fator de sorte no berço em que nasci, e no que a minha família pôde permitir, que outros não tiveram".

Mas normalmente eles recusam esse discurso porque são um bocado cegos e míopes à sua própria vivência e àquilo que os distingue. Penso que não tem mal nenhum reconhecer, há umas coisas em que sou bom, mas também tive outras em que tive sorte.

O mérito é um conceito muito pobre.

É uma fábula?

Não sei se é uma fábula, porque eu acho que como princípio não é errado. A partir do momento em que eu com mais alguém tivemos o mesmo tipo de oportunidades na vida, aí eu acho que o mérito é um fator diferenciador, há quem se esforce mais do que o outro e tenha mais proveito por isso.

Agora é raro as duas pessoas terem o mesmo ponto de partida ou terem as mesmas circunstâncias.

E, nesse sentido, quando começamos a avaliar o mérito de uma pessoa que contra todas as circunstâncias chegou a uma determinada posição, face a outra pessoa cujo pai já estava nessa posição, acho que é uma fábula e concordo com a sua palavra.

Quem fala da meritocracia como um ideal neste país são os eleitores de um determinado partido que está a emergir. Eles deviam avaliar o seu mérito com algum cuidado (risos).

Arrasando este conceito, como está a fazer, o que propõe em substituição para nos podermos organizar enquanto sociedade, definindo princípios de mobilidade e de organização social?

Penso que pode ser o mérito, mas é o conceito de mérito que tem de ser diferente e, portanto, tem de ser um conceito de mérito que é, em primeiro lugar, relativizado com as circunstâncias de cada um e, em segundo lugar, que incorpora a ideia de contributo comunitário.

O conceito de bolha social é-lhe bastante caro, bem como a necessidade de rebentar essas bolhas. Aponta a escola pública como uma das maneiras mais eficazes de o fazer. Porquê?

É um sítio onde podemos conhecer pessoas com um 'background' económico, étnico, religioso diferente do nosso. Enquanto crianças, a nossa realidade é moldada pela nossa família, como é natural que seja, mas a partir de um determinado momento começamos a perceber melhor a comunidade que nos rodeia.

A escola é o lugar para o fazer por excelência. Para que isso aconteça, a escola pública diversa é a melhor forma de compreender a comunidade. Se formos para uma escola homogénea, seja homogénea-privada, só com meninos e meninas ricos, ou se infelizmente vivermos num bairro socioeconomicamente mais desfavorecido, em que toda a gente é pobre ou tem poucos meios, ficamos com uma visão reduzida da nossa comunidade e teremos menos oportunidades.

Há muitos estudos académicos que comprovam que as relações que criamos, as amizades que fazemos, são uma das maneiras de podemos escapar da armadilha da pobreza.

Em Portugal temos 20% dos nossos jovens nas escolas privadas. Mas eu diria, e não sei o número concreto, que 60% a 70% são das classes A e B. Isso faz com que a escola pública seja menos um lugar de mobilidade económica e social do que poderia ser.

E, portanto, como é que se pode resolver isto? Eu penso que a melhor maneira de resolver isto é transformar as nossas escolas públicas em escolas de excelência. Quando tenho as minhas filhas com algum problema de saúde grave, felizmente não acontece com muita frequência, vou ao SNS, só vou a hospitais privados para tratar de coisas menores.

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"Estamos muito longe de uma meritocracia pura"

Eu gostava muito que a escola pública também fosse vista assim, neste prisma em que ali está a excelência. Ali é que estão os melhores professores.

Para os professores hoje em dia é um desafio muitíssimo maior do que uma escola privada, olhando só para as línguas que se falam numa escola pública por abarcar os filhos de imigrantes. Os professores numa escola pública deviam ser muitíssimo mais bem pagos.

E se forem, eu tenho a sensação de que muitos pais da classe média alta e da classe alta vão começar a perceber que é uma boa aposta para os seus filhos irem para essas escolas, porque vão aprender e vão conhecer uma realidade mais diversa.

Apesar disso tudo, no seu livro assume que as suas filhas estudam em colégios privados....

Andam no Liceu Francês, que não é privado, mas é como se fosse. É uma escola pública francesa. Na vida de cada um de nós, as circunstâncias de com quem nos juntamos também ditam muito. Tenho uma mulher que viveu em França até aos nove anos e que também influenciou a escolha, tem uma família muito francófona.

E, nesse sentido, a escolha foi essa. Dito isto, a escolha foi feita quando elas eram pequenas e o livro foi escrito agora.

O livro também passa de uma maturação minha e por uma autocrítica. Eu faço parte da bolha que critico. O único mérito que eu poderei ter é que tento ver fora dessa bolha e perceber como é que escolhas como as que eu fiz influenciam o todo. Individualmente parecem as melhores, mas o agregado dessas escolhas pode não ser o mais desejado.

Ainda no tema da “bolha”, defende uma outra ideia que é a do serviço cívico obrigatório. Em que consiste e porque acha que é necessário em Portugal?

O capítulo do livro em que está essa ideia chama-se rebenta a bolha. Certamente recorda-se da expressão do rebentar a bolha, que usávamos quando um jogo não estava a correr bem no recreio e as regras estavam completamente viciadas. E, por essa razão, era preciso recomeçar o jogo.

Neste momento, as políticas que o livro propõe, para que tenhamos uma comunidade mais diversa, mais coesa e mais interessante, podem demorar tempo a produzir resultados.

Mas há um conjunto vastíssimo de jovens e crianças que podem chegar à idade de constituir famílias, de começar a trabalhar, sem terem tido muita diversidade nos contactos dentro da sua comunidade.

Este serviço nacional obrigatório poderia ser uma forma − três meses antes de começarem a universidade − de serem expostos a uma realidade diferente e conhecerem pessoas de todos os outros meios que se calhar não tiveram oportunidade de conhecer ao longo do seu trajeto, enquanto crianças e jovens adolescentes. Eu vejo vantagens nisso.

Pessoalmente, por exemplo, fiz Erasmus e beneficiei muito disso por entender que o resto dos europeus não era assim tão diferente de mim, com 20 anos transformei-me numa pessoa mais europeísta. Penso que quase todas as pessoas que terão feito Erasmus, hoje em dia, são europeístas nesse sentido, porque gostaram dessa experiência.

Penso que se podemos ter uma experiência parecida para os nossos jovens a nível nacional, em que pessoas vão para Vila Real de Santo António, vão fazer trabalho que pode ser de serviço social, pode ser relacionado com administração interna, de prevenção florestal. Pode ser trabalho também do serviço militar obrigatório.

As pessoas podiam escolher a área em que iriam trabalhar, mas depois seria um sorteio onde iriam parar e não podiam escolher com quem iriam.

A questão da obrigatoriedade é porque se não for obrigatório a experiência falha. Muitos não iriam aparecer, nomeadamente aqueles das classes mais favorecidas. Mas eu acho que são dos que têm mais a ganhar em verem o mundo fora das suas bolhas.

Numa sociedade em que a competitividade e o querer ser o melhor são os valores mais fortes e mais inculcados nas crianças e nos jovens, como é que poderemos entrar na "Era do Nós"?

Passa por ensinar outras coisas, em primeiro lugar. Pelo menos eu tento e conheço muita gente que quer fazer igual, e valorizar nos meus filhos comportamentos que sejam socialmente positivos. Se calhar até valorizo mais um exemplo de altruísmo ou de cooperação do que necessariamente um esforço individual que levou a uma boa nota.

Penso que se nós trabalharmos para que houvesse uma dimensão mais comunitária e mais forte da nossa sociedade, podemos olhar para uma série de diferentes medidas e iniciativas e, nenhuma sozinha vai revolucionar ou resolver o problema. Mas se fizermos essas 10, 20, 30 iniciativas de uma maneira sustentada, durante cinco ou seis anos, daqui a dez anos vamos estar num patamar completamente diferente.

Eu acredito muito nesta ótica incremental de melhoria e, acima de tudo, se todas as melhorias forem para o mesmo caminho, forem todas com o mesmo objetivo.

O que espero é que cada pessoa, a partir da leitura do livro, pense em mais cinco ou seis coisas que ela própria acha que também poderiam fazer sentido para alcançar este objetivo.

E voltamos aqui ao princípio da entrevista, que é o tal nível intermédio da comunidade, de intermediação local, que penso que é onde a maior parte destas medidas têm de ser tomadas.

Para finalizar: diz que esta nova era mais comunitária que, na sua ótica irá inevitavelmente acontecer, pode ser enquadrada de diferentes formas, ou num regime democrático ou num regime totalitário. Com os dados que temos, para onde penderá o pêndulo?

Eu sou um otimista, quero acreditar que vai prevalecer o bom senso e que vamos conseguir aprofundar o cooperativismo, comunitarismo e a sensação de participação cívica das pessoas sem cair em tentações ditatoriais.

A Constituição de 1933, que no fundo perpetuou depois o Estado Novo e Salazar no poder, falava do bem comum muitas vezes e portanto, o bem comum é uma palavra perigosa, porque também pode ser utilizada para supressão de direitos e liberdades individuais.

No livro eu quis deixar claro que não é nada disso que eu defendo, e que penso que o desafio é trabalharmos para o bem comum, mantendo os ganhos de inclusão e a participação democrática. É uma espécie de um caminho fino, que há que percorrer, mas desafiante.

Em Portugal, temos instituições muito sólidas e ainda vamos a tempo de, com estas medidas incrementais, arrepiar caminho, sem pôr em causa os fundamentos da democracia.

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