Entrevista

Presidente da Agros: "Paradigma do leite excessivamente barato acabou"

31 ago, 2022 - 06:10 • João Carlos Malta (texto), Pedro Valente Lima (fotos)

Idalino Leão diz que não há outra hipótese: os portugueses vão ter de pagar mais pelo leite que consomem. Os preços já subiram 11% num ano, mas vão continuar a aumentar. Todas as semanas fecham explorações e, se nada for feito, "pode faltar leite nacional nas prateleiras", alerta o presidente da Agros.

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O presidente da Agros bate constantemente na mesma tecla: se nada for feito, o processo de desaparecimento do setor leiteiro em Portugal, como o conhecemos, pode ser uma realidade a curto/médio prazo.

A Agros é uma união de cooperativas leiteiras e o rosto de 44 cooperativas de Entre o Douro, Minho e Trás-os-Montes, com aproximadamente 900 produtores de leite. Nos últimos dois anos, Idalino Leão diz que quase 300 explorações foram encerradas. E a erosão continua.

O risco de Portugal não ter leite nacional nas prateleiras dos supermercados é real, mas, para que isso não suceda, o líder da Agros diz que os preços têm de subir. Para o consumidor também. Isto porque, acredita, o tempo do leite barato chegou ao fim.

"O preço do litro de leite, que dá para alimentar uma família média de quatro pessoas por dia, é mais barato do que um café. E, em média, os portugueses tomam dois ou três cafés por dia. Eu acho que isso nos devia fazer pensar a todos", crítica Idalino Leão.

Que impacto está a ter a inflação na produção de leite em Portugal?

Mais do que a inflação, que está a ter um impacto negativo sobre a produção leite nacional, são as sucessivas crises que a fileira está a ter nos últimos dois anos, nomeadamente a seca, alguma especulação associada também com o aumento geral dos custos e fatores de produção, e para terminar a guerra e todas as consequências que daí advieram.

De tal forma que os principais fatores de produção do nosso setor, os adubos, as rações, o gasóleo, a eletricidade, estão completamente descontrolados numa escala muito, muito acelerada e que está a causar o desespero no setor primário, em particular no setor leiteiro, porque apesar do preço pago ao produtor ter subido, não tem acompanhado o mesmo ritmo do preço destes fatores de produção.

Portanto, segundo o que diz, não é só a questão da inflação que que está a pesar sobre os produtores de leite, mas um conjunto diverso de fatores... Se compararmos com o período antes do início da guerra na Ucrânia, ou seja, fevereiro deste ano, quão mais caro é agora produzir o litro de leite?

Posso dizer que, neste momento, é mais caro em cerca de 50% produzir um litro de leite do que era no período homólogo. O preço do leite subiu à volta de 18 a 20%. Como é fácil de perceber, nós temos aqui um défice que não foi colmatado e obviamente que o preço do leite vai ter que subir ao produtor de forma a ser sustentável.

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"Neste momento, é mais caro em cerca de 50% produzir um litro de leite do que era no período homólogo"

Mas também tem que ser sustentável nos elos da cadeia seguintes, ou seja, na indústria e na distribuição. E é com essa expetativa que encaro as mexidas no mercado do leite nos últimos dias, no sentido de que o preço suba também nas prateleiras do consumidor.

Porque o paradigma do leite barato, excessivamente barato ao consumidor, acabou. Não há forma de dizer isto doutra forma. Acabou.

O consumidor hoje percebe isso perfeitamente, porque facilmente percebe que todos os fatores de produção subiram, em todos os setores da economia, e o setor leiteiro não é exceção.

Portanto, estou convencido de que os consumidores aceitarão de uma forma natural a subida do preço do leite para consumo nas prateleiras.

Disse que aumentou 18% neste período, refere-se ao preço ao consumidor?

Ao produtor, ao produtor.

E ao consumidor qual foi o aumento?

Segundo os dados de julho do INE, posso dizer que quando comparados os períodos homólogos de julho, o preço da categoria leite/queijos subiu ao consumidor 11%.

Os aumentos que foram anunciados na segunda-feira aos produtores de três cêntimos, em média, sendo que o Pingo Doce disse que ia dar mais oito cêntimos extra, que repercussão vão ter no consumidor final?

Eu acho o aumento tem de ser acompanhado no consumidor final, porque se não, não é sustentável. Seria impensável para a sustentabilidade de toda a fileira.

Portanto, a distribuição não pode aqui amortecer esta subida?

Eu acho que não pode, nem deve. Doutra forma estaria a desvirtuar todo um negócio, toda uma fileira. Eu vejo estas subidas nos últimos dias com expectativa exatamente de corrigir o que já estava desequilibrado.

Eu quero aqui recordar o relatório da PARCA (Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Agroalimentar), no início deste ano, em que apontava claramente que era importante no último elo da cadeia, ou seja, na distribuição, que os preços fossem produzidos para cima.

Num período em que os portugueses são de alguma forma apanhados nesta avalanche de inflação, do crescimento de preços em todas as dimensões e em todos os produtos, têm capacidade para absorver esse aumento?

Acho que tem e que é inevitável que o tenham, por uma razão muito simples.

Eu quero recordar que ainda recentemente o Estado português pediu a todos os portugueses, aos consumidores, para ficarem em casa por duas vezes, em dois confinamentos. Mas isso só foi possível porque houve toda uma fileira agroalimentar − desde o campo, à indústria, à distribuição − que teve de produzir alimentos e levá-los para todos poderem ficar em casa com os frigoríficos e os despensa cheias.

De tal forma que, em setembro do ano passado, o senhor primeiro-ministro, num evento agrícola, reconheceu que o país tinha uma dívida de gratidão para com os agricultores. São palavras que acolhemos com agrado, mas gostávamos de ver essas palavras traduzidas em medidas concretas que ajudassem o setor.

Não podem ser os agricultores a pagar os efeitos da guerra, até porque o setor em concreto, o setor leiteiro, tem sido muito sacrificado no último ano e meio, desapareceram mais de 300 explorações neste país e é a capacidade produtiva que desaparece de Portugal e soberania alimentar desaparece de Portugal.

Não há memória de uma exploração que encerra, que volte a abrir. Portanto, este é o ponto de assumirmos se queremos ou não queremos ter este tipo de soberania alimentar.

Ela está em risco?

Neste momento, sim. Neste momento, a curto prazo, se o preço não acompanhar a subida nos três elos da cadeia, não tenho a menor dúvida que a curto/médio prazo poderá não haver leite nacional para abastecer as necessidades dos portugueses.

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"Se nada acontecer a curto prazo, acredito que pode faltar leite nacional nas prateleiras dos consumidores, e por isso achamos que isto tem que ser corrigido já".

Muitos produtores começam a dizer que a produção de leite é um mau negócio, em que a atividade pode deixar de fazer sentido. É uma ideia que partilha?

Qualquer negócio se não gerar riqueza é um mau negócio.

E não está a gerar?

Se não fosse preciso aumentar o preço, significava que os preços seriam sustentáveis para todos e, neste momento, não é verdade. Neste momento, a produção primária precisa que se aumente o preço do leite. É inevitável que isso aconteça. Mas para isto também acontecer, é importante que isto passe em todos os elos da cadeia.

Quando estamos a falar de um aumento de custos do leite ao consumidor, estamos a falar de 7, 8, 9, 10 cêntimos por litro. Não estamos a falar de nenhuma enormidade. Eu gosto de fazer sempre esta paralelo de comparação. O preço do litro de leite, que dá para alimentar uma família média de quatro pessoas por dia, é mais barato do que um café. E, em média, os portugueses tomam dois ou três cafés por dia. Eu acho que isso nos devia fazer pensar a todos.

Esse aumento vai acontecer sem que haja uma repercussão no consumo, ou seja, se este aumento não vai levar a uma diminuição das vendas de leite?

Isso não sabemos. Os padrões de consumo são sempre difíceis de prever. Se fossem fáceis, todos nós hoje estávamos antecipadamente a prever esses padrões. O que eu posso assumir é que o preço do leite ao produtor tem que subir rapidamente para acompanhar as tendências atuais, porque se não for desta forma, o que vai acontecer é o encerramento das explorações.

E, com certeza, a curto prazo vamos começar a comprar leite vindo de fora, com mais pegada de carbono, com todos os maiores custos para um país do que o que temos hoje. Portanto, colocando os pratos na balança, parece-me muito mais eficiente e muito mais prático fazê-lo nós portugueses, e que sejam os nossos concidadãos a consumir o nosso produto.

Aliás, isto vai de encontro às premissas de Bruxelas da redução da pegada carbónica e da economia circular.

Disse que não conseguiria prever aquilo que vai acontecer. Mas o que é que já aconteceu até aqui? Ao nível do consumo, houve alguma variação?

Eu não tenho dados objetivos.

Hoje em dia dá prejuízo produzir leite ou estamos muito perto disso?

Neste momento, em média, a maioria das explorações estão a ter prejuízo, porque os custos de produção estão a ser muito elevados exponencialmente. Por isso é que é importante haver esta correção nos preços e haver esta correção de forma sustentável.

Toda esta fileira fez muito por este país, é importante também que se diga que não é só toda a riqueza que este setor gera de forma direta através dos postos de trabalho, mas também os ganhos indiretos, através da sustentabilidade ambiental, económica e social dos territórios, mantendo os terrenos agrícolas cultivados, produtivos, ativos, mantendo uma paisagem humanizada, quer pelos homens quer pelos animais, e fazendo deste Portugal, onde normalmente existem estas bacias leiteiras e regiões verdes bonitas para serem potenciadas para o turismo.

O Porto e o Norte, por exemplo, têm feito muito para potenciar este turismo. Aliás, basta ver que quando normalmente se fala do Minho, toda a gente gosta do verde do Minho, mas o verde do Minho só existe enquanto existirem agricultores que cultivam os campos.

No dia que os agricultores deixaram de cultivar os campos, o verde do Minho desaparece.

Estes três cêntimos de subida em média, para 45 cêntimos o quilo no território nacional e em 40 cêntimos nos Açores, são suficientes ou ficam muito aquém do que seria necessário?

Neste momento é preciso o preço subir mais, de forma a ser possível suster estes custos brutais que estamos a ter, por exemplo, aqueles que são fixos e associados à energia. É uma das grandes batalhas junto à nossa tutela, de que é importante que haja aqui pelo um equilíbrio ibérico, porque o mercado é no mínimo ibérico, e não se percebe como é que os custos fixos associados, nomeadamente ao gasóleo agrícola, têm o diferencial entre Portugal e Espanha na casa de quase 30 cêntimos.

Isto é impensável se queremos competir com os nossos congéneres espanhóis. É impossível.

Fala-se muito do fecho constante de explorações, entre os vossos parceiros, isso também tem acontecido?

Posso dizer que a Agros, nos últimos dois anos, perdeu muito próximo de 200 explorações.

Quanto é que isso representa no universo total?

Há dois anos éramos quase 1.200, neste momento somos menos de 900. Todas as semanas estão a fechar explorações. É uma tendência que, se nada for feito, como disse, continuará a agravar-se.

A grande distribuição tem um grande peso na venda de leite. É um parceiro e alguém que dificulta o negócio?

Eu diria que já tivemos várias fases na relação. Há momentos melhores e momentos piores, mas acredito que a grande distribuição veio para ficar. E obviamente que a grande distribuição também quer trabalhar com os parceiros locais, com os parceiros nacionais e com todos aqueles que lhe garantem produtos seguros e de qualidade.

E, nesse sentido, obviamente que terá que trabalhar com as cooperativas e, neste caso, com as cooperativas agrícolas associadas ao leite. O ponto de equilíbrio que tem que existir para todos serem sustentáveis. Esse é o grande desafio das negociações, mas acredito que começamos a ter aqui algumas janelas que se aproximam desse equilíbrio.

É ser alarmista ou corremos o risco de o país chegar a uma situação como aquela que se vive no Brasil hoje em dia, em que o preço do leite é superior ao da gasolina?

Se nada acontecer a curto prazo, que traga alguma sustentabilidade imediata e previsibilidade futura para o setor, acredito que a curto/médio prazo pode faltar leite nacional nas prateleiras dos consumidores e por isso achamos que isto tem que ser corrigido já.

O que é que tem que ser feito a curto médio prazo para que o setor seja viável e esta situação tão complicada, em que a seca, a inflação e a guerra contribuem para o aumento dos fatores de produção?

A minha dificuldade de apresentar números prende-se precisamente com os custos dos fatores de produção andarem a subir à semana. E eu posso dar um número hoje que pode estar completamente errado na sexta-feira.

A nossa dificuldade, no último ano e meio, tem sido esta. Nós não sabemos, eu não sei, enquanto agricultores, quanto é que nos vai custar a ração na próxima segunda-feira. Eu não sei quanto é que vou pagar de gasóleo agrícola na próxima segunda-feira. Isto é um drama para qualquer empresário. Não se consegue fazer nenhum plano de negócios com esta instabilidade semanal.

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  • Miguel Guilherme Fra
    28 nov, 2022 Almada 11:56
    engracado leite pingo doce custava 48 cent esta a 89 cent o mesmo litro e no artigo falam em 10 cent - quem sabe matematica sabe que 48 para 89 nao e 2% mas sim quase 100% de aumento. 48 48 96 isto e um roubo , mas vamos voltar a compra de leite espanhol chines etc e la se vai a mama destas cooperativas que este senhor fala fala mas so queria o ordenado e regalias deles para qualquer portugues.
  • Petervlg
    02 set, 2022 Trofa 07:32
    é fácil, compra-se leite estrangeiro.
  • Bruno
    31 ago, 2022 Aqui 17:41
    No início dos anos 90 os produtores de leite eram obrigados a reduzir a produção por causa da Política Agrícola Comum. Na altura, os produtores iam para as ruas em protesto deitar o leite ao chão. Entretanto, o sector foi desmantelado. Agora, vem este senhor a dizer que os preços têm de aumentar.
  • Joaquim Correto
    31 ago, 2022 Paços 14:35
    Por isso é que eu já deixei de beber leite Agros há muito tempo!

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