Macron quer limitar salários milionários. Faz sentido fazê-lo em Portugal?

22 abr, 2022 - 16:20 • João Carlos Malta

Dois economistas e um gestor ajudam a aprofundar o debate que foi reavivado em França, quando foi conhecida a remuneração do português Carlos Tavares, CEO do gigante automóvel Stellantis. Se há quem considere as diferenças de remuneração chocantes, há quem não veja aí o principal problema.

A+ / A-

O salário de um português tornou-se tema de campanha nas muito disputadas eleições presidenciais francesas, e pôs, novamente, na ordem do dia a possibilidade de colocar tetos salariais aos gestores das grandes empresas, de forma a evitar o aumento da, cada vez maior, desigualdade entre ricos e pobres. Mas se a disparidade nas remunerações é aceite por todos como nefasta, há quem ache que a receita não é a de impor limites aos salários de quem mais ganha.

O economista Ricardo Paes Mamede faz parte do grupo dos que defendem que faz todo o sentido a discussão. “Essa proposta já foi posta em cima da mesa por partidos políticos de todas as cores. No tempo de Cameron [ex-primeiro-ministro britânico] chegou a fazer parte da discussão interna do Partido Conservador. Foi tema de debate em diversos partidos, quer em França, quer na Alemanha”, explica em declarações à Renascença.

O professor do ISCTE − especialista em Políticas Públicas − acredita que “não há nada de particularmente absurdo na ideia de que deve haver equilíbrio salarial dentro das empresas”.

“As empresas são instituições que são reguladas por leis, que concedem um conjunto de direitos aos seus proprietários”, explica.

Paes Mamede explica que o Estado já regula muitos aspetos da vida interna das empresas. “Não vejo nenhum problema de princípio que impeça que se possa regular também aquilo que são as discrepâncias salariais”, defende.

Ou é para todos ou não é para nenhum

A tese não é comprada por Luís Aguiar-Conraria. O economista defende que a medida ou se aplica a todos, ou então pode gerar situações absurdas.

Dá um exemplo prático: “Imaginemos que temos um teto salarial na Sonae. Querem pagar cinco milhões de euros por ano, mas que apenas é legal pagar um milhão de euros. Então, a Sonae pode fingir que tem uma equipa de futebol que joga nas regionais do Porto, e paga ao CEO quatro milhões de euros”.

O diretor do Departamento de Economia e professor catedrático na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho repete que a discussão lhe parece “um pouco absurda”, se só se aplicar a gestores de topo das empresas.

“Se queremos falar de limites salariais para todas as profissões tudo bem, para uma só profissão parece-me inconstitucional”, concretiza.

"Não há nada de particularmente absurdo na ideia de que deve haver equilíbrio salarial dentro das empresas", Ricardo Paes Mamede

Em França, no fim de semana passado, o Presidente francês, Emmanuel Macron, considerou "chocante e excessivo" o valor "astronómico" do salário do presidente executivo do grupo automóvel Stellantis, o português Carlos Tavares, e afirmou-se a favor de "tetos" de remuneração ao nível da União Europeia.

"Devemos liderar o combate [ao nível] europeu para que tenhamos uma remuneração que não possa ser abusiva”, disse Emmanuel Macron, que é candidato à reeleição no cargo, na segunda volta das eleições presidenciais em 24 de abril.

Em declarações à rádio France Info, o Presidente francês defendeu que é preciso avançar no estabelecimento de “tetos” de remuneração salarial, através de uma governança ao nível da Europa “que torne as coisas aceitáveis, caso contrário, a sociedade, em algum momento, explode”.

Em causa está o aumento da remuneração de 2021 do presidente executivo do grupo automóvel Stellantis, o português Carlos Tavares, para 19,1 milhões de euros, um tema polémico que entrou na política francesa.

Um valor que é superior ao auferido pelos 14 presidentes executivos do PSI (são 15 empresas mas a EDP Renováveis e a EDP partilham o mesmo CEO, Miguel Stilwell de Andrade), que, segundo o Expresso noticiou no início deste mês, receberam no ano passado 15,5 milhões de euros brutos. Mais de metade desta despesa foi feita por seis empresas que remuneraram cada CEO com mais de um milhão de euros brutos.

"Se queremos falar de limites salariais para todas as profissões tudo bem, para uma só profissão parece-me inconstitucional", Luís Aguiar-Conraria

A lista de empresas que melhor remuneram os seus presidentes executivos é encabeçada pela EDP, seguida da Semapa e da Sonae.

Contra a imposição de limites

O CEO da Endesa em Portugal, Nuno Ribeiro da Silva, diz que não é partidário da imposição de limites aos salários. Ressalva que não o diz por ele mesmo “ganhar relativamente bem”.

O ex-secretário de Estado da Energia não acredita que é por os gestores ganharem 500 mil ou de 600 mil euros que os salários mais baixos não vão aumentar.

“Francamente, a mim não me choca de princípio, e isto pode parecer um bocado violento, mas não me choca que possa haver uma diferença que seja muito significativa do salário máximo para o salário mínimo”, afiança em declarações à Renascença.

Ribeiro da Silva diz que não é por aí que se resolve a questão, o problema é o de os salários mais baixos, serem mesmo muito baixos. E dentro deste universo, destaca os jovens.

O CEO da empresa de energia sublinha que o preocupa menos que haja um gestor que tenha um prémio de 100 mil euros, do que a existência de colaboradores que não tenham uma remuneração adequada às funções.

“Se ele tiver um aumento de 50 mil ou 100 mil euros, não é isso que está a canibalizar a indisponibilidade da empresa para remunerar condignamente os seus colaboradores, e em particular os que têm remunerações mais baixas”, sublinha.

Teria impacto?

Ricardo Paes Mamede discorda e acredita que em Portugal tabelar os salários dos que mais ganham deve ser um instrumento colocado em cima da mesa. Ainda assim desconfia do impacto que teria na economia nacional.

"Não me choca que possa haver uma diferença que seja muito significativa do salário máximo para o salário mínimo", Nuno Ribeiro da Silva

“No caso português há uma limitação. Nós temos uma economia baseada em empresas de muito pequena dimensão, onde essa questão tende a ser pouco relevante e o impacto que isto poderia ter não seria tão grande como noutros países em que a proporção da população que trabalha em empresas de grandes dimensões é maior do que aquela que existe em Portugal”, ilustra.

Em relação à eficácia, Paes Mamede também tem dúvidas. “Agora, em qualquer caso, também não seria eficaz, se não houvesse outras medidas que fossem tomadas para a acompanhar. A tendência natural seria a de que aqueles que auferem rendimentos de grandes montantes, tipicamente gestores de topo de empresas, encontrassem outras formas de procurar compensar eventuais perdas de rendimento”, antevê.

Também Aguiar-Conraria não acredita muito que a ideia tenha reflexos práticos. “Se os impostos não são eficazes, os tetos salariais muito menos. Se as pessoas impuserem um teto salarial de um milhão de euros em França, simplesmente o CEO português irá para a Irlanda”, argumenta.

Fácil de aplicar

Já em relação à aplicação concreta de regras, Paes Mamede explica que a mesma não seria muito complicada.

“Em termos práticos, não há dificuldade de conceber diferentes modelos. A questão é saber qual é o nível de eficácia que teriam. A forma mais simples é determinar, simplesmente determinar, que dentro de uma empresa a diferença entre o salário mais baixo e o salário mais alto não pode ser superior a X, ou que entre o salário mediano e o salário mais alto não pode ser superior a X”, exemplifica.

Ou seja, da mesma forma que o Estado regula o salário mínimo poderia fazê-lo com o salário máximo. “A questão é o enquadramento geral que isso teria, e a garantia de que é uma regra dessa natureza, não seria contornada por outras vias”, sintetiza.

Já Ribeiro da Silva tem dificuldade em conceber “critérios administrativos de intervenção a dizer: não pode ganhar mais do que isso”. Alerta para que já há mecanismos dentro das empresas para avaliar se os salários “realmente impressionantes” têm justificação e, sobretudo, se são “à custa do sangue de outros colaboradores da empresa”.

Quando se fala de limites às remunerações, os jogadores de futebol são com frequência chamados à discussão. Aguiar-Conraria diz que a comparação faz sentido, mas que é um facto que as pessoas aceitam melhor que seja Cristiano Ronaldo a ganhar um salário de luxo do que um empresário. “As pessoas são fãs de um clube, mas não são fãs de uma marca de automóvel”, afirma.

"A forma mais simples é determinar, simplesmente determinar, que dentro de uma empresa a diferença entre o salário mais baixo e o salário mais alto não pode ser superior a X, ou que entre o salário mediano e o salário mais alto não pode ser superior a X", Ricardo Paes Mamede.

O economista do Minho diz que esta é uma questão que o preocupa e não tem dúvidas em dizer que apesar de não defender a imposição de tetos, que há salários realmente muito elevados.

Argumenta que se, por exemplo, Ronaldo e Messi ganhassem metade do que auferem, o seu desempenho seria igual. O mesmo acontece no mundo automóvel com Carlos Tavares. “Se recebesse dois ou três milhões de euros, o incentivo para ter o mesmo desempenho era o mesmo”, reflete.

Paes Mamede diz que esta não é uma discussão para se ter à escala nacional.

“É uma questão do mundo. Nós estamos a viver com níveis de desigualdade na distribuição dos rendimentos e, em particular, dos rendimentos do trabalho que se está a aproximar do início do século XX, e isso é insustentável”, remata.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • António dos Santos
    23 abr, 2022 Coimbra 10:22
    Concerteza absoluta. Os gestores em Portugal são os mais bem pagas da Europa, mas a sua qualidade é substancialmente inferior, por um lado, por outro, o nível de salários em Portugal é muito abaixo da média europeia.
  • samypoker samypoker
    22 abr, 2022 porto 17:34
    Aqui é pouco provável derivado aos interesses dos políticos
  • Joaquim Correto
    22 abr, 2022 Paços 16:20
    Em Portugal faz Super sentido! A diferença de ordenados entre administradores e operários, em Portugal é pornográfica!

Destaques V+