OE 2022

Como vai o Governo combater a subida dos preços sem criar uma espiral recessiva?

13 abr, 2022 - 06:57 • João Carlos Malta

A economista Susana Peralta diz que em economia de guerra, como a vivemos, o Estado não pode chegar a todos. Já Ricardo Cabral, professor do ISEG, diz que se o Governo não aumentar salários o efeito recessivo alastrará por toda a economia.

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A inflação e o combate aos efeitos da subida de preços serão, com pouca margem para dúvidas, o tema forte do Orçamento do Estado (OE) que será apresentado, na tarde desta quarta-feira, pelo novo ministro das Finanças, Fernando Medina.

A forma como o Governo vai resolver o problema levanta ainda algumas dúvidas. A Renascença ouviu dois economistas especializados em economia pública, e se o diagnóstico até o mesmo − há que reforçar o rendimento das famílias. No entanto, a dose e extensão desse aumento separam-nos em absoluto.

A professora da Nova School of Business and Economics Susana Peralta não tem dúvidas em afirmar que o Governo tem de “aliviar a conta das famílias com menores rendimentos, que estão numa situação mais carenciada, para que esse aumento de preços não as leve a prescindir de consumos essenciais”.

No entanto, é perentória em esclarecer que o Estado não pode chegar a todo o lado. “Não são as famílias todas, tem que ser concentrado nas famílias de baixo rendimento. Num cenário de estrangulamento e escassez, de economia de guerra, não há para todos”, concretiza.

E alerta para que se o Governo tentar distribuir dinheiro de forma generalizada, para todos manterem o nível de consumo, “a única coisa que vai causar é mais inflação”.

“Há muitas pessoas com consumos supérfluos, o que devemos fazer é ajudar as famílias de menor rendimento para elas poderem manter o nível de consumo do que são os alimentos básicos”, sintetiza.

O economista do ISEG, Ricardo Cabral, não concorda com esta tese. Segundo este especialista em economia pública, não resta alternativa ao Governo senão assegurar que os rendimentos sejam ajustados para compensar a subida da inflação que venha a ocorrer em 2022.

Só isso, acredita, evitaria que o choque inflacionista que estamos a sentir “tenha um impacto recessivo na economia”.

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Não são as famílias todas, tem que ser concentrado nas famílias de baixo rendimento. Num cenário de estrangulamento e escassez, de economia de guerra, não há para todos.

Cabral diz que há várias soluções possíveis, que estão a ser adotadas noutros países. Uma delas seria fazer uma previsão da inflação para o ano, e, posteriormente, “um ajuste salarial maior agora que sabemos que esta vai ficar mais alta”.

O economista diz que chegaremos ao fim do ano com uma taxa de inflação de 5%, e que, portanto, “não é aceitável deixar os salários crescer 0,9% e sobretudo as pensões”. “Todas as pensões têm de ser aumentadas pelo menos à taxa de inflação ou um pedacinho acima. E o mesmo para os funcionários públicos”, acrescenta.

“Todos um bocadinho mais pobres”

Susana Peralta olha para o cenário macroeconómico e diz que a “economia mundial e europeia está estrangulada”, e “vamos ter todos de nos habituar à ideia de que vamos ficar um bocadinho mais pobres”.

Ainda assim, crê que essa perda de riqueza pode ser distribuída de forma a que “quem já é bastante pobre tenha um impacto menor, ou nenhum impacto, e que quem tem mais possa absorver essa pobreza adicional”.

Ricardo Cabral, por outro lado, não podia estar em maior desacordo com os que defendem que o aumento de salários e rendimentos das famílias pode levar a uma espiral recessiva.

“Não acho, porque o que estamos a sofrer é um choque muito pontual, em setores específicos. É um choque de oferta, no setor energético, e o impacto é muito significativo. A União Europeia está a gastar uma percentagem muito grande do seu rendimento com energia aos preços atuais”, começa por explicar.

Um segundo choque, esclarece, é no valor dos bens alimentares e dos fertilizantes. “São bens utilizados na cadeia produtiva e que são muito importantes para a atividade económica. São bens sobre os quais as famílias têm pouca flexibilidade, porque são essenciais. Se o preço aumentar muito, as famílias vão passar a gastar uma parte significativa do rendimento nesses bens. Se isso acontece vão ficar com menos rendimentos para gastar noutros bens e serviços produzidos na economia portuguesa”, conclui.

A verificar-se este cenário, terá como consequência que muitas atividades económicas do país enfrentarão uma quebra de negócio. “Além do choque da oferta, teremos um choque da procura”, conclui.

Para aumentar os rendimentos, o professor do ISEG aponta uma outra medida que pode ser usada de forma complementar ou alternativa à subida dos salários. Uma prestação única, que teria a vantagem de poder ser aplicada num ano e retirada no seguinte se os pressupostos inflacionários não se verifiquem.

“Imaginemos que a decisão era de um aumento de 30 euros por mês, ou seja, 360 euros num ano. Tinha a vantagem de ser dado este ano apenas, face ao aumento da energia e para o ano ser retirado se a inflação voltasse a diminuir. Seria uma forma de não aumentar os salários, mas fazer crescer ainda assim os rendimentos. Isto está a ser feito noutros países, na Alemanha, por exemplo, está a ser discutido entre sindicatos e empregadores. Tem ainda a vantagem de ser progressivo, ajuda mais as famílias com menores rendimentos”, concretiza.

60 euros, chega?

Neste âmbito, o Governo recentemente apresentou um conjunto de medidas para combater o impacto da inflação. Uma delas a de dar uma prestação adicional de 60 euros para famílias que recebem o RSI. Susana Peralta diz que é uma ideia que vai no bom sentido, mas “é muito pouco provável que seja suficiente”.

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São bens sobre os quais as famílias têm pouca flexibilidade, porque são bens essenciais. Se o preço aumentar muito, as famílias vão passar a gastar uma parte significativa do rendimento nesses bens. Se isso acontece vão ficar com menos rendimentos para gastar noutros bens e serviços produzidos na economia portuguesa.

“Não sei quanto é que as pessoas gastam em comida, mas é pouco provável que 60 euros cheguem. As pessoas que recebem RSI são 3%, não sei bem os números do ano passado, mas são margens muitos pequenas da população. Estamos a chegar com pouco, a margens muito, muito fragilizadas. Há gente muito fragilizada que não vai ter nada”, reflete.

Quando questionada sobre o valor em que deveria ser feito o corte entre os que receberiam e não receberiam os apoios que defende para os mais carenciados, a professora da Nova School of Business and Economics explica que o limiar de pobreza em Portugal tem diversas caras.

O INE e Eurostat coloca em risco de pobreza em quem recebe 600 euros por mês por pessoa. Mas para atribuição de isenção de taxas moderadoras no SNS, o valor já é outro. Para aceder ao RSI a fórmula de cálculo também é diferente. “São mais baixos do que é utilizado para o cálculo de pobreza. Estamos a tentar chegar a menos pessoas para a fatura das ajudas ser menor”, conclui.

Peralta defende que o apoio público deveria chegar aos 22% da população que estão em risco de pobreza, mas não acredita que tal acontecerá neste orçamento. “A maior parte das políticas públicas usa um cálculo de limiar de pobreza abaixo do que se usa para calcular a taxa oficial de pobreza”, lamenta.

Divergências

Por fim, o professor do ISEG Ricardo Cabral critica o Governo por evitar definir os preços máximos e regular os preços. “Neste contexto de escassez, o produtor não tem de passar estas reduções para os consumidores. Não tem e até pode absorvê-las todas. Ou se limitam as margens ou se limitam os preços máximos. Tem de haver outra política económica para limitar o aumento”, conclui.

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Não sei quanto é que as pessoas gastam em comida, mas é pouco provável que 60 euros cheguem. As pessoas que recebem RSI são 3%, são margens muitos pequenas da população. Estamos a chegar com pouco, a margens muito, muito fragilizadas.

Susana Peralta discorda desta ideia e soma ainda que “aumentar os rendimentos de forma generalizada não vai fazer nascer o trigo, nem fazer aparecer o petróleo nem o gás”.

A economista diz que, em tese, não é apreciadora de maiorias absolutas, mas que a atual “pode ajudar a conter a tendência natural e legitima de todas as pessoas que querem ser compensadas pela perda de poder de compra. Isso não vai ajudar a nascer trigo nos vasos aqui em casa”.

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