Entrevista a Nuno Ribeiro da Silva

CEO da Endesa: "Estados habituaram-se a ir pastar na seara da energia para ter uma coleta fiscal brutal"

23 mar, 2022 - 07:33 • João Carlos Malta

Nesta entrevista, o presidente da Endesa, companhia do setor energético, fala sobre como a guerra acentuará as mudanças que já se viviam no setor e como a Europa deve evitar os erros que levaram à situação de dependência em que o continente se encontra. Pelo meio, rejeita falar de especulação quando o tema é a subida do preços dos combustíveis.

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O CEO da Endesa, Nuno Ribeiro da Silva, acredita que a guerra da Ucrânia contribuirá para um maior peso da eletricidade no consumo em detrimento do gás e petróleo.

O líder da companhia elétrica, ao contrário do que muitos advogam, não crê que o conflito a Leste coloque em risco as metas colocadas pela emergência climática, e acredita que até ajudará o continente a rumar na direção das renováveis para fugir à dependência de fontes de energia mais difíceis de aceder e de comprar.

Para que o impacto dos custos não caia com estrondo sobre os cidadãos, o também professor universitário e ex-secretário de Estado da Energia lança um alerta: chegou o momento para os estados deixarem de ver o setor da energia como um jackpot fiscal.

O que vai mudar no mercado de energia europeu e na forma como os europeus consomem energia com esta guerra na Ucrânia?

Vai haver uma situação em que os cidadãos europeus e as empresas europeias vão ter uma preocupação recentrada na forma como usam a energia, em termos de eficiência energética, mas também nas opções que escolhem para a satisfação das suas necessidades. Reforça o apelo a uma crescente eletrificação dos consumos, e acelerarmos, dentro do possível, a saída do gás natural e derivados do petróleo do consumo final.

Ao nível das políticas energéticas europeias teremos outros impactos a desenvolver a médio e longo prazo decorrentes de termos recordado a necessidade de acautelar a segurança e a fiabilidade do abastecimento energético da Europa.

Põe a tónica na necessidade de recorrer mais à eletricidade e menos ao gás natural e petróleo, mas essa transição ocorrerá a tempo de que não haver disrupções?

Ela tem sido feita, mas Roma e Pavia não se fizeram num dia. Estamos num desafio já decorrente da transição energética e descarbonização. Estamos numa trajetória de redirecionar os consumos para a eletricidade, veja-se a importância e dimensão da questão da mobilidade.

Veja-se ainda para a ênfase que a União Europeia faz no documento que publicou no passado dia 8 de março, no qual dá prioridade a climatizar as casas com recurso a bombas de calor, ao invés dos aquecimentos a gás.

O processo está em curso, vai prosseguir, tenderá a acelerar e intensificar e há um acompanhamento gradual que cabe aos responsáveis políticos e às empresas de que esta mudança seja suportada tecnicamente e de forma gradual, com o reforço de redes elétricas, no colocar mais flexibilidade e inteligência na forma como as redes elétricas são operadas e aproveitadas.

É um puzzle que não se ajusta de um dia para o outro, demorará bastante tempo, mas é claramente a tendência.

A possibilidade de colapso no abastecimento de energia na Europa é real com o conflito a Leste?

Temos Europa e temos Europa. Para países como as repúblicas bálticas, a Alemanha, a Polónia, a Roménia, a Hungria, a Bulgária − que estão mais penduradas no gás proveniente da Rússia − há um melindre maior em termos de risco de alguma perturbação física e escassez do que países como nós ou a Espanha que temos a possibilidade de receber gás natural de múltiplas fontes, através dos terminais de regaseificação.

Em geral, com a tendência para as temperaturas se moderarem com o fim do Inverno e o início da Primavera que tem muito reflexo no consumo de gás natural, e se não tivermos mais um acontecimento qualquer disruptivo e muito radical...

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"Há várias maneiras de diminuir essa dependência. Não só o produzirmos mais no nosso espaço europeu. Podíamos ter um processo mais acelerado de energias renováveis. Podíamos não ser tão radicais quando se coloca a questão de prospetar a disponibilidade de haver petróleo e gás"

O que aconteceria se a Rússia fechasse unilateralmente o abastecimento de gás natural?

Haveria um problema de abastecimento elétrico na Alemanha. Os governos e os operadores de sistema têm medidas técnicas que podem fazer a interrupção temporária aos chamados grandes consumidores, uma maneira de mitigar o dano que essa situação de corte unilateral provocaria.

Na certeza de que não é possível haver da noite para o dia, uma alteração e uma substituição de uma logística que foi montada durante décadas. O Conselho Europeu, do próximo dia 25, por certo vai reforçar toda a lógica para começarmos a combater a dependência a que chegamos e mitigarmos recorrer a fontes de energia em grande escala da Rússia e de outras geografias, algumas delas de pouca fiabilidade.

A dependência energética da Europa sobretudo de países como a Alemanha e a Itália da Rússia era evitável? Podia ter sido seguido outro caminho?

Claro que podia. Há várias maneiras de diminuir essa dependência. Não só o produzirmos mais no nosso espaço europeu. Podíamos ter um processo mais acelerado de energias renováveis. Podíamos não ser tão radicais quando se coloca a questão de prospetar a disponibilidade de haver petróleo e gás no espaço europeu com todos os movimentos que não querem que se explore ou prospete a possibilidade de termos ou não temos reservatórios de petróleo aqui ou acolá. Veja-se o que aconteceu em Portugal.

Por outro lado, no consumo não mudamos de um dia para o outro e nem em muitos anos e estamos a expor-nos de forma crescente. Também é uma forma de mitigar a dependência se na Europa nos dotarmos de uma rede, de um parque de terminais de regaseificação, como temos em Espanha e em Portugal que possam receber, quando há um problema a num gasoduto, que possam receber o gás por via marítima vindo dos EUA, de Trinidad Tobago, Nigéria, ou a Austrália.

Um caso paradigmático é o da Alemanha, que com o gasoduto do Báltico, o célebre Nordstream 2, suspendeu o plano de construção de três terminais de regaseificação. Ficou dependente do abastecimento exclusivamente por tubo vindo da Rússia, atravessando a Ucrânia, a Bielorrússia e o Báltico. Agora com esta situação está a todo-o-vapor a dotar-se desses terminais, para se poder reabastecer com gás proveniente de outras geografias.

As negociações da Alemanha com o Qatar e do Reino Unido com a Arábia Saudita para o abastecimento de gás e petróleo não é os europeus a cometer de novo o mesmo erro?

É verdade. As grandes fontes de produção, exploração, de combustíveis fósseis em particular do petróleo e do gás, sendo que o carvão é mais diversificado geograficamente, a maior parte são geografias complicadas.

Veja-se a Venezuela, a Nigéria, a Argélia, veja-se alguns países da África subsariana e a Rússia. De qualquer forma não deixa de ser uma forma de diminuirmos o risco ao estarmos a ser abastecidos por quatro ou cinco produtores, mesmo que cada um deles seja complicado.

Isto tem de ser visto como medidas transitórias, que vão demorar alguns anos, mas não pode fazer esquecer os esforços de reforçarmos a resiliência energética da Europa com mais aproveitamento dos recursos endógenos: eólico no mar, eólico em terra, solar, hídrico, geotermia, e outras tecnológicas que a Europa domina e pode ser referência a nível global. Pode ser necessário durante bastante tempo alguma capacidade própria de produção de petróleo e gás.

Em paralelo, dotar-se de uma rede mais densa de interligações, para que quando haja um problema, seja climatérico, político, ou outro, facilmente exista uma infraestrutura de tubos e de linhas que possa ir a socorro dessa zona. Ter uma rede mais densa de terminais de gás natural liquefeito. Aumentar a capacidade das infraestruturas de armazenamento para ter reservas que lhe permitam uma dimensão mais cheia para reagir a situações de disrupção no mercado.

Há um perceber do calcanhar de Aquiles a que chegamos nesta matéria estratégica que é fundamental para a segurança e economia europeia.

Muitos têm apontado o regresso às energias fósseis, com a reativação das centrais a carvão, como o caminho único para colmatar os défices de abastecimento. Estamos condenados a deixar para trás a luta contra as alterações climáticas?

Pode acontecer em situações de seca que os sistemas elétricos tivessem de recorrer pontualmente a uma central a carvão. Mas não se perspetiva que tal venha a acontecer na Península ibérica. O carvão crescentemente não é competitivo face ao gás. O preço há um ano e pouco estava nos 15 euros por tonelada, hoje está nos 80 e aos 90 euros.

Mas em relação à pergunta de fundo, diria o contrário do que insinua, a questão da segurança energética na Europa, e se olharmos para o pilar das políticas energéticas, só vai tornar mais urgente o processo da produção energética e da descarbonização. Há uma felicidade na coincidência de objetivos.

Isso é um desejo ou é mesmo real?

É claramente real. O que é que são medidas fundamentais para mitigar a nossa dependência energética? Aproveitar os recursos endógenos na Europa, nomeadamente os recursos renováveis, reforçar quer a geração de eletricidade e a transição dos usos finais para a eletricidade, substituindo os combustíveis fósseis.

Há uma convergência de instrumentos de política a acionar para nos aproximarmos dos objetivos de diminuição da dependência e de emissões.

Uma recente sondagem da Aximage revelou que os portugueses não estão disponíveis para pagar a fatura do aumento de energia e combustíveis motivados pela guerra. Há outra alternativa?

Isto trouxe-nos à evidência de que como a Europa está muito dependente do mercado mundial que não domina a formação dos preços, do petróleo, do gás e do carvão. A única ferramenta que os governos europeus têm ao fim do dia para diminuir a força do soco no estômago do aumento do preço destas matérias-primas é a componente da fiscalidade, nos preços que são praticados às empresas e às famílias.

No imediato, a única variável nos preços, e não tão pequena como isso, é a parte fiscal. Isso cria um desafio que já se vinha sentindo e falando.

Mas a redução da fiscalidade também tem efeitos limitados...

Não há nenhuma medida que seja uma panaceia. Mas sabemos que a carga fiscal nos produtos energéticos é muito elevada, na eletricidade, estamos a falar de mais de 40%. Nos derivados do petróleo, estamos a falar de mais de 50%, chegando a 60%.

Os estados têm um discurso contraditório, porque querem que a energia seja barata para as famílias e competitiva para as empresas, mas por outro lado habituaram-se a ir pastar na seara da energia tendo uma coleta fiscal brutal.

É a terceira fonte da receita fiscal do ministério das Finanças a seguir ao IVA e IRC. Há que repensar se são os produtos e serviços energéticos que estão a jeito para fazer jackpot de receita fiscal.

Percebe-se porque é que isso aconteceu, porque toda a gente tem de consumir energia, a energia consome-se em grandes quantidades. É muito fácil fazer essa coleta, porque empresas organizadas e com uma certa escala, sejam as petrolíferas, sejam as gasistas, ou elétricas tornam-se grandes repartições das Finanças. E os estados gostam de taxar energia. Não podemos é ter sol na eira e chuva no nabal.

O preço dos combustíveis subiu mesmo sem haver uma quebra no abastecimento. A especulação dos mercados não está a querer ganhar dinheiro com a guerra?

Não gosto muito do termo especulação no sentido que se associa tradicionalmente a uma conspiração e uma manobra do mercado, esta é uma situação em que surgem notícias que podem ter credibilidade e em que os agentes no mercado reagem. A energia mais cara é a que falta.

O antigo presidente russo Medvedev disse muito diretamente que se os países europeus apoiassem a Ucrânia ficariam sem gás ou pagariam o triplo ou quadruplo.

Este tipo de declarações em mercados já tensos, leva a esta volatilidade nas cotações.

É a mesma coisa se disser que vai haver gripe das aves e que por isso não haverá nem carne de galinha, nem ovos. A reação não me parece que seja especulação.

Temos de ter medidas que mitiguem a nossa exposição e a segurança de abastecimento perante crises que são regulares em setores da energia.

O primeiro-ministro António Costa deu conta de que finalmente o mercado ibérico de energia vai estar ligado à Europa e Portugal e Espanha poderão exportar. O que é que isso trará a Portugal?

Andamos há muito tempo a falar do reforço das interligações elétricas e de gás, e de reservatórios para o Inverno que melhor articulem, que não haja engarrafamentos, e esta situação reforça a premência e a importância de dar atenção a este tema.

As políticas energéticas da União Europeia para mitigar não só a dependência energética da Europa, mas acentuar também o esfoço da transição energética são boas notícias para Portugal. Sempre vivemos com uma grande debilidade relativamente à energia, porque sempre importamos o petróleo, o carvão e o gás que consumimos com impactos quando acontecem estas crises.

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"Os estados têm um discurso contraditório, porque querem que a energia seja barata para as famílias e competitiva para as empresas, mas por outro lado habituaram-se a ir pastar na seara da energia tendo uma coleta fiscal brutal."

Sempre sentimos enormes impactos na nossa balança comercial, na competitividade da economia, nos preços praticados às famílias. Este processo faz com que estejamos menos isolados, e que estejamos no grande mercado da energia que se pretende aprofundar na UE. E sobretudo as opções energéticas que estão em cima da mesa, são caminhos em que temos soberania. Temos uma fonte diversificada de fontes renováveis, temos vento, sol, água.

Quando era secretário de Estado na década de 1990 a nossa dependência de terceiros era superiora a 90%, na ordem dos 93%, hoje com o contributo que as renováveis já dão para a produção de eletricidade, são já responsáveis por 50% da produção de eletricidade, temos uma dependência ainda muito alta, mas já de 75% e não de 93%. Este caminho é uma excelente notícia para Portugal diminuir este nervosismo, dependência e calcanhar de Aquiles que a energia sempre foi para as nossas empresas e economia.

O nuclear pode ser uma possibilidade para Portugal?

Não é. Não vou discutir o facto de ser limpa, não tem emissões de CO 2 no funcionamento, mas há um pressuposto que é o de ser mais barata, que não é de todo verdadeiro. Há pessoas que criaram a ideia de que o nuclear é barato, mas sei bem que não é, porque acompanho diariamente os custos do parque electronuclear que a empresa em que trabalho opera.

À exceção da EDF, empresa pública francesa, em que o estado francês cada vez mais tem de ir em seu socorro e tomar posições − já está na ordem dos 82% e que chagará em breve aos 100%.

É uma empresa com imensos problemas, que assegura um complexo electronuclear que foi construída depois General De Gaulle, mas fora a EDF não há nenhuma empresa privada na Europa que esteja disposta a meter um euro na construção de um reator nuclear de raiz.

É mais caro, na ordem do triplo do custo de hoje produzir eletricidade com base em outras tecnologias, nomeadamente o vento e sol. Nunca se sabe quando se começa a construir um reator nuclear qual o custo e quando vai estar disponível. Nenhum demora menos de 12 a 20 anos a entrar em funcionamento. Não ia ajudar muito aos objetivos que a UE tem para 2030 e 2050 .

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