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​Covid-19. Mais de metade das ourivesarias em risco de fechar

05 mai, 2020 - 10:50 • Luís Aresta

Inquérito às empresas do setor revela sinais preocupantes. Em tempo de crise, as joias são a última das prioridades dos portugueses e a ausência de estrangeiros também não ajuda. Peças alusivas à pandemia suscetíveis de causar procura.

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“Não estou a ver que as pessoas, terminado o confinamento, vão a correr comprar ouro”. É com ironia que Manuel Sousa, com ourivesaria na Póvoa de Lanhoso, olha para uma dura realidade - a de que “quando há uma crise, o adorno é posto em segundo lugar, porque as pessoas estão preocupadas com o que é mais imediato e isso reflete-se em todo o setor”.

Manuel Sousa cresceu no meio da ourivesaria, a ajudar o pai a fazer “filigrana”, arte na qual a Póvoa de Lanhoso rivaliza historicamente com Gondomar. Juntamente com as três irmãs - Maria José, Maria Helena e a Maria Isabel -, Manuel dirige um negócio que já vem dos tempos do seu tetravô.

Por isso, sabe bem do que fala quando observa que o primeiro dano provocado pelo novo coronavírus foi sentido pela Páscoa, uma festividade em que os “padrinhos costumam oferecer ouro aos afilhados e que este ano se perdeu”, por força do confinamento social a que a Covid-19 obrigou, com o consequente encerramento das ourivesarias em todo o país.

No caso da Póvoa de Lanhoso, um outro fator contribui para que o futuro seja encarado com forte apreensão. “Aqui, dependemos muito dos emigrantes, um grupo comprador com poder aquisitivo e que gosta de ouro”, explica Manuel Sousa, antes de lembrar que este ano, essa “lufada de ar fresco” da Páscoa, não soprou.

Se no verão não tivermos emigrantes pode ser dramático para o comércio e para as oficinas que têm estado paradas”, assinala, habituado que está a vender no mês de agosto “dez vezes mais do que noutras alturas do ano”.

Ausência de turistas reflete-se nas vendas

A última imagem que guardamos de um grande navio de passageiros no estuário do Tejo tem quase mês e meio – foi a 22 de março, dia em que “MSC Fantasia” foi notícia, pelo facto de ter acostado no Terminal de Cruzeiros de Lisboa com 27 portugueses a bordo, um dos quais viria a testar positivo para a Covid-19.

Antes dessa data, já a ausência de turistas na capital portuguesa era notória, com reflexos negativos na atividade económica, à vista de todos no pequeno comércio da Baixa Pombalina.

Uma realidade sentida na ourivesaria de Maria João Barbosa, em plena Rua do Ouro, um lugar de referência para estrangeiros que procuram joias e peças de ouro em segunda mão. “Os meus maiores clientes eram os americanos, porque eles adoram artigos em segunda mão”, diz.

Para além do previsível menor fluxo de turistas, esta comerciante com loja na baixa aponta a expectável quebra no poder de compra dos portugueses, como fatores que irão levar “a que as ourivesarias sofram muito” nos próximos tempos.

Mais de metade das ourivesarias em risco de encerrar

As ourivesarias e relojoarias representam um negócio que movimenta todos os anos cerca de mil milhões de euros, incluindo 100 milhões em exportações – cerca de 10% do total do volume de negócios num setor que envolve 11 mil pessoas, em 4300 empresas (indústria, retalho e atividades conexas).

Um universo que encara o futuro com uma dose significativa de perplexidade. Em entrevista à Renascença, o presidente da Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal (AORP), Nuno Marinho, faz notar que o momento é de “incerteza e ter uma estratégia a longo prazo é fútil porque as condições variam de dia para dia”, obrigando a que as decisões sejam tomadas com rapidez e proximidade.

Num inquérito da AORP a 73 empresas associadas, realizado nos primeiros dias de maio, e a que a Renascença teve acesso, 93,6% das empresas inquiridas consideram ter sido afetadas de forma extremamente grave com a atividade reduzida a menos de metade; mais de 60% entraram em “lay-off” total e 30,8% consideram elevado o risco de encerrar definitivamente a atividade. Outras 29,5% admitem que esse risco de encerramento existe, ainda que de forma moderada.

Nuno Marinho acredita que para este pessimismo contribui o facto de a ourivesaria “ser o primeiro setor de que as pessoas prescindem e poder ressentir-se pelo facto de muitas empresas não terem a estrutura necessária para suportar um período muito longo com poucas vendas e baixa produção”.

Mais de 30% dos inquiridos pela AORP estão convencidos de que a recuperação económica do país irá demorar entre seis a 12 meses.

Ausência de emigrantes e de turistas preocupa. E os atrasos nos apoios, também

No curto prazo, a possibilidade de o verão ser caraterizado pela ausência de turistas e de emigrantes é um dos problemas com que as ourivesarias se debatem.

“São dois tipos de consumidores de artigos de ourivesaria bastante importantes e no caso de haver restrições o impacto será grande”, diz Nuno Marinho.

O presidente da AORP aponta para a eventualidade de virem a ser necessários “apoios ao consumo” para relançar a economia, mas, no imediato, sublinha a importância de fazer “chegar às empresas de forma efetiva, as ajudas prometidas pelo Estado, o que não tem corrido da melhor forma, como admitiu o ministro da Economia”.

A reabertura das primeiras lojas, que esta segunda-feira ocorreu, pode contribuir para melhorar este cenário, acredita Nuno Marinho que, num olhar mais alargado, considera que a saída desta crise - que considera diferente da anterior -, “poderá ser mais rápida, dependendo da resposta do país e da própria União Europeia”.

Entre os fatores decisivos para a recuperação económica, o dirigente da AORP inclui a descoberta de uma vacina, o que “quanto mais cedo acontecer, mais rapidamente contribuirá para a retoma”.

Peças inspiradas na pandemia podem ajudar

Criatividade na resposta à crise é o que se pede ao setor da ourivesaria. Nuno Marinho admite que na primeira linha de procura possam surgir “peças alusivas à pandemia e à recuperação”, depois de um momento que fica para a memória de milhões de pessoas em Portugal e em todo o mundo.

A AORP acredita que se assistirá a uma fase de comercialização de artigos “a preços moderados, devido ao reposicionamento do consumidor”.

Com as feiras internacionais suspensas devido à pandemia, os empresários portugueses do setor estão empenhados numa aposta nos meios digitais, com a AORP a desenhar uma plataforma digital de promoção – a “Portuguese Jewellery – Shaped with Love” - que pretende aproximar as empresas do público à escala global e ser uma montra digital de joalharia portuguesa.

Críticas ao encerramento das Contrastarias Nacionais

Se no comércio em geral, durante o estado de emergência, se assistiu ao aumento das vendas “online”, nas ourivesarias esse fenómeno foi meramente residual.

E não terá sido apenas pelo caráter secundário dos adornos, mas também, alerta Nuno Marinho, porque só esta segunda-feira foi retomado o serviço de certificação obrigatório pelas Contrastarias Nacionais, suspenso desde 16 de março.

O encerramento temporário da única entidade certificadora “foi muito debilitante e criou um bloqueio inultrapassável ao setor”, acentua o presidente da AORP. “À exceção de pequenas isenções, não é possível colocar peças à venda sem estarem devidamente marcadas”, explica.

Algumas ourivesarias esperam ainda pela normalização da atividade nas Contrastarias Nacionais para poderem reabrir. A suspensão não permitiu repor ou renovar “stocks” por falta de certificação, tendo também dificultado, ou impedido, que os canais online dessem seguimento ao negócio.

Mudança de hábitos culturais afeta o negócio

Faz quase 20 anos que Manuel Sousa e a família deram corpo à ideia de expor ao público o resultado do esforço do ourives Francisco de Carvalho e Sousa, que, ao longo de 50 anos de atividade, foi recolhendo espólio e documentação.

O Museu do Ouro de Travassos, inaugurado em março de 2001, era, na altura, um sinal da importância que o fabrico de peças em ouro tinha na Póvoa de Lanhoso.

“Quando abrimos o museu havia umas 70 oficinas, só na minha aldeia havia 40; hoje não serão mais de 10”, diz, para fazer notar o que considera corresponder à “perda de toda uma tradição muito forte na ourivesaria portuguesa”

Para Manuel Sousa, o encerramento do curso técnico superior de joalharia, na Escola Superior de Artes e Design (ESAD) de Matosinhos, é mais um sinal das mudanças sentidas no setor, desde o início do século.

Se em 1999 foram contrastadas em Portugal 33 toneladas de ouro, no ano passado esse número foi de cerca de 1,5 toneladas. Ainda assim, superior ao registado em 2018, assinala o presidente da AORP.

Nuno Marinho atribui à mudança de hábitos de consumo (férias, telemóveis, etc) a menor apetência pela compra de peças em ouro. O preço do metal mais precioso, cada vez mais caro, também não ajuda.

Na ourivesaria da Póvoa de Lanhoso, que como muitas outras reabriu neste início de maio, Manuel Sousa observa que “as pessoas, hoje, olham para as joias como adereços que têm a ver com a roupa, ou com os móveis, e tendem a comprar ‘peças de moda’. As peças em ouro são muito mais estáveis”, remata.

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