​Os bastidores de uma equipa que não consegue vencer

04 abr, 2019 - 11:15 • Eduardo Soares da Silva

O Feirense está há 27 jogos consecutivos sem vencer na I Liga, um recorde negativo que quebrou a marca do Varzim, na temporada 1984/85. Lúcio, guarda-redes do Varzim nessa época, descreveu à Renascença o contexto vivido naquela altura, em tudo semelhante ao do Feirense. "A baliza é um arco-íris. Entra tudo", diz o antigo jogador.

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A equipa do Varzim da temporada de 1984/85 ficou na história do futebol nacional, não só pela despromoção ao segundo escalão, como pelo recorde de 22 jogos consecutivos sem vencer no campeonato. A “malapata” pairou pela Póvoa de Varzim durante mais de 30 anos. Esta época, o Feirense segue em 27 jogos consecutivos sem provar o sabor da vitória e o cenário de descida de divisão está cada vez mais nítido no horizonte. A última vitória foi em agosto, na segunda jornada do campeonato, no terreno do Vitória de Guimarães (0-1).

Lúcio, guarda-redes da equipa do Varzim de 84/85, falou à Renascença sobre a atmosfera negativa que se vive num balneário sem vitórias e onde é difícil encontrar uma explicação para os resultados.

“É uma bola de neve. Quando as coisas correm bem, às vezes até se podem tirar jogadores importantes, meter dois miúdos, e as coisas correm bem. Nessa época, tentou-se de tudo e nada deu resultado. É difícil de explicar. Mas certo é que não há nada pior do que perder. Quando se perde duas ou três vezes seguidas, já é mau, agora quando é uma série tão longa sem vencer, é mesmo terrível a nível psicológico”, começou por dizer.

"Balneário destroçado"

Filipe Martins, atual treinador do Feirense, confirmou a ideia de Lúcio, depois da derrota caseira frente ao Vitória de Setúbal, o 25º jogo sem vencer: "O balneário está destroçado. Mais que ninguém, os jogadores sentem as derrotas. A própria frustração bloqueia-os. Queriam muito ganhar, as coisas não foram aparecendo".

Lúcio era o vice-capitão da equipa varzinista, vivia a sua terceira temporada ao serviço do clube, e explica que a expectativa no início da temporada era muito distante do desfecho, em maio:

“Queríamos fazer melhor do que a temporada anterior [em 83/84, o Varzim foi 8º]. Tínhamos perdido o saudoso José Torres para a seleção e ficamos com o José Alberto Torres, que já nos conhecia muito bem. Achávamos que poderíamos fazer melhor, mas foi uma época anormal. Fomos irregulares e não fizemos duas vitórias seguidas”, explica.

O Feirense, à semelhança do Varzim, sonhava com uma temporada mais tranquila. Em 2016/17, época de regresso à I Liga, conseguiu a sua melhor prestação de sempre na prova, ao terminar o campeonato na oitava posição. Na última temporada, o clube sobreviveu à despromoção apenas na última jornada, depois de uma recuperação notável na reta final do campeonato. A equipa fogaceira arrancou esta época com um plantel reforçado e com a ambição de realizar uma temporada mais calma.

As duas vitórias a abrir o campeonato faziam antecipar um futuro positivo, com o Feirense a vencer, em casa, o Rio Ave, na primeira jornada, e no Estádio D. Afonso Henriques, o Vitória de Guimarães, na segunda ronda. Desde então, não voltou a vencer na Liga.

Treinadores pagam a fatura

José Alberto Torres arrancou a temporada no Varzim, mas, face aos resultados negativos, foi substituído por Félix Mourinho, pai de José Mourinho. De forma semelhante, o Feirense anunciou a saída de Nuno Manta Santos e a entrada de Filipe Martins, que continua à procura da primeira vitória.

“É muito complicado para o treinador. Não consegue arranjar antídotos para desbloquear um ambiente tão negativo. As chicotadas psicológicas raramente funcionam. São poucos os que conseguem sucesso quando pegam numa equipa em situação negativa. Às vezes é preciso mudar, não discuto isso, e o elo mais fraco é sempre o treinador, porque é impossível mudar uma equipa inteira. Mas o que é que se espera de uma equipa que não vence há mais de 20 jogos?”, questiona Lúcio, nesta entrevista a Bola Branca.

O antigo guarda-redes explica que os dois treinadores da equipa "levaram por tabela", apesar de nunca desistirem da busca pela manutenção: “Eles tinham sempre o discurso possível, acreditavam que ainda poderíamos continuar na Liga. O Mourinho depois também levou por tabela porque não conseguiu fazer melhor".

Prestações idênticas na Taça de Portugal

O Feirense caiu apenas nos quartos de final da Taça de Portugal, contra o Sporting, em casa, e esteve na luta por um lugar na “final four” da Taça da Liga até à última jornada da fase de grupos. Curiosamente, o Varzim fez também uma campanha histórica na Taça. Eliminou Marialvas, Monção, Comércio e Indústria, Académica e Boavista, caindo só com o FC Porto de Artur Jorge, na meia-final. Lúcio acredita que a campanha na Taça dava algum ânimo à equipa, mas não o suficiente:

“A Taça era um brinde, até mais pela receita financeira. Quando fomos às Antas jogar, perdemos só por 1-0, com um golo do Eurico. A prioridade sempre foi o campeonato. Para um clube da dimensão do Varzim, descer era muito mau. Foi uma grande preocupação para os dirigentes. Chegámos à meia final e isso dava algum alento a nível psicológico, mas não funcionou”, reiterou.

A baliza é um arco-íris

O guarda-redes, que no total fez 158 jogos em oito temporadas pelo Varzim e foi internacional por Portugal, recorreu a uma imagem curiosa para explicar o quão difícil é uma temporada deste nível para um guarda-redes: “Quando as coisas correm mal, a baliza é um arco-íris, entra tudo. Quando corre bem, parece que estamos a jogar futebol numa baliza de hóquei em patins, sempre bem posicionados, até vamos buscar bolas impossíveis. Naquela época, nada foi bem, voava e nunca chegava à bola, sentia uma impotência enorme”.

Lúcio fala ainda sobre um balneário com a moral em baixo durante toda a temporada e da responsabilidade acrescida do grupo de capitães, do qual fazia parte: “Só dá para explicar o ambiente naquele balneário quem passa por uma situação assim. Acabavam os treinos e já estava a pensar no dia seguinte, como poderíamos dar a volta. Era um espírito muito negativo na equipa. Ia para casa a pensar nas manhas que podia inventar para motivar a equipa. Era o sub-capitão nessa temporada, e por muito que tentasse ajudar, era difícil arranjar o antídoto”.

O capitão não encontrou o antídoto, e nem o apoio das bancadas e da direção foi suficiente para “curar a doença”. Lúcio deixa palavras de elogio para os adeptos e dirigentes varzinistas, que nunca deixaram de apoiar a equipa. “A direção sempre nos apoiou, sempre estiveram à nossa volta para ver o que era possível fazer. Os adeptos eram exigentes, mas no fim dos jogos íamos sempre ter com eles, e eles apoiavam e pediam-nos a raça poveira. Nunca nos faltou nada”, reconhece.

“Descer de divisão não é o fim do mundo”

A equipa do Varzim terminou a temporada de 84/84 em 17º e penúltimo lugar e Lúcio seguiu com o clube para a II Liga: “Só saía se fosse para um clube melhor, que me desse melhores condições, e que ajudasse o Varzim, mas nunca pensava em sair. Queria ficar no clube, continuar a minha vida na Póvoa e ajudar o clube a voltar à primeira divisão".

Lúcio explica que foi um passo atrás para dar dois à frente. Uma época depois, a Póvoa de Varzim voltou a receber os grandes do futebol nacional. O capitão explica que o processo de descer de divisão pode ser importante para criar bases para o futuro:

“O mal de hoje em dia é que os clubes mais pequenos acham que descer de divisão vai ser o fim do mundo, mas não é. É preciso encarar a descida como o princípio de uma caminhada para o sucesso a longo prazo e não de uma forma tão derrotista. Assim as equipas vão preparadas para um futuro ainda melhor”, observa.

O regresso

As palavras de Lúcio traduzem-se no sucesso desportivo do Varzim nas duas épocas seguintes, explicado por quem viveu a reconstrução do clube poveiro por dentro, eventuais conselhos para a próxima época do Feirense:

“Fizemos um plantel para o futuro. Subimos miúdos, um ou outro reforço, e era um plantel para ficar junto vários anos. Subimos de divisão, depois de uma liguilha contra o União da Madeira, num dia em que chovia muito. Fizemos a festa da subida nesse jogo e a época seguinte foi espetacular. Fomos uma das defesas menos batidas do campeonato e ficámos em sétimo lugar. A vida continuou. A direção não entrou num modo de desanimo quando descemos de divisão, os dirigentes continuaram os mesmos, deram-nos o apoio necessário”, disse, sem errar um único dado histórico.

Apelo aos jogadores do Feirense

Varzim 84/85 e Feirense 18/19 são casos atípicos, mas com várias semelhanças. Lúcio preferiu não aconselhar os jogadores do Feirense, mas deixou o pedido para que não percam a diversão a jogar futebol, apesar do momento negativo:

“É sempre difícil deixar um conselho num momento assim, mas que sintam prazer a jogar futebol. Estão a fazer o que gostam, e precisam só de se desbloquear da pressão. Joguem com naturalidade, como se fosse um jogo entre amigos, mas com mais responsabilidade. Ignorem a pressão, foquem-se no futebol e no que é bom na vida”, apela.

O Varzim terminou a temporada em 17º e penúltimo lugar, desceu à II Liga e rapidamente se reergueu. O desfecho da penosa temporada do Feirense está ainda por decidir, mas o cenário está cada vez mais negro à medida que o calendário se aproxima de maio.

O calendário do Feirense até ao final da temporada:

J30 - Braga (C)

J31 - Portimonense (F)

J32 - Chaves (C)

J33 - Santa Clara (F)

J34 - Desportivo das Aves (C)

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