03 set, 2018 - 13:13 • José Bastos
“O Brasil não é para principiantes”, diz José Paulo Cavalcanti, antigo ministro da Justiça no governo do Presidente Sarney.
Em entrevista à Renascença, concedida através de e-mail, a partir do Recife, o relator do processo de “impeachment” de Collor de Melo sustenta que Geraldo Alckmin é o candidato que mais possibilidade tem de ser eleito nas Presidenciais de 28 de Outubro, mas, apesar disso não avança nas sondagens.
Já Bolsonaro “pode reproduzir no Brasil a campanha de Trump” e, à esquerda, “Lula não quer a eleição de Haddad porque, se isso acontecer, ele fica obsoleto” e “o velho caudilho” prefere que o país se desmantele nas mãos de outro partido que não o PT “até que o país vá buscar na prisão o Mandela que nos vá redimir”, acrescenta.
Uma profunda crise política, a instabilidade institucional e a imprevisibilidade na economia pontuam a campanha eleitoral em curso no Brasil e que terminará com a eleição de novo Presidente. As eleições deveriam colocar um ponto final num período turbulento que comprometem a classe política e o sector económico acossados pelos protestos da classe média crescentemente desconfortável com a atitude das elites políticas e económicas envolvidas em casos de corrupção de larga escala.
Muitos analistas alertam, contudo, para uma evidência: as presidenciais não encerram necessariamente a solução para um período de intensa convulsão institucional. De resto, fica difícil ignorar o facto de que Luís Inácio Lula da Silva, preso condenado por corrupção desde Abril e, este fim-de-semana, proibido de concorrer pela maioria dos juízes do Supremo Tribunal Eleitoral com base na Lei da Ficha Limpa é o líder incontestável das intenções de voto para Presidente da República.
Lula tem 37% das intenções e está impedido de concorrer nas eleições. Houve uma conspiração - como alegam os seus apoiantes - para tirá-lo da disputa?
Lula foi investigado pela Polícia Federal. Um órgão de Estado. Dirigido por superintendente nomeado por Lula/Dilma. Os autos foram para a Procuradoria-Geral da República, órgão de Estado, com Procurador-Chefe nomeado por Lula/Dilma. Que o denunciou por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Foi julgado por juiz concursado. E condenado a 9 anos de prisão. Daí, o caso foi julgado, novamente, pelo Tribunal Federal (TRF4), num colectivo de três juízes, dois quais dois foram nomeados por Lula/Dilma. Que considerou modesta a pena e a aumentou para 12 anos e 1 mês de prisão. Perdeu por 3x0. Em seguida, julgado também pelo Superior Tribunal de Justiça. Num colectivo de cinco em que quatro foram nomeados por Lula/Dilma. Perdeu por 5x0. E foi, finalmente, julgado pelo Supremo Tribunal Federal. E, mais uma vez, condenado. Lula/Dilma nomearam oito dos 11 ministros. E, desses oito, cinco votaram por sua prisão. Conspiração como? Com tanta gente de Lula/Dilma condenando? Mais correto parece considerar ter havido só a constatação de que houve mesmo corrupção. Simples, assim.
Pouco antes, uma petição assinada por três milhões de brasileiros levou à aprovação, no Congresso Nacional, da “ Lei da Ficha Limpa “. Segundo a qual corruptos não devem ser candidatos. Aprovada, essa Lei de Iniciativa Popular, com apenas um solitário voto contra. E sancionada, pelo próprio Lula, como um importante avanço na democracia. Não sabia que seria, ele próprio, vítima da lei. E agora reclama. Como um caudilho desesperado, que vê ruírem seus sonhos de voltar ao poder. Num sistema tão caro aos que o rodeiam, o que os faz lamentar. Com toda razão. Foi isso.
Mas a defesa de Lula insiste que não houve prova. Não havendo uma única assinatura de Lula confirmando ter sido beneficiado pela corrupção...
O caso faz lembrar o que aconteceu na Alemanha da Segunda Guerra. O principal operador da política nazi de extermínio foi Adolf Eichmann. Na Gestapo, era diretor de Assuntos Referentes aos Judeus. Segundo defensores do Führer, teria agido sem seu conhecimento. Num livro autobiográfico - “Ich Adolf Eichmann“ -, ele confessa: “Disseram-me, em conversa, que o Führer havia ordenado a destruição física do oponente judeu“ . O escritor William Sassen confirma isso: “ Eichmnann não pediu ordem escrita. O desejo de Hitler, expresso através de Himmler ( comandante militar das SS ) e Heydrich (chefe do gabinete central de segurança do Reich ) era bom o suficiente para ele. Resumindo, a pergunta é se a ausência de um documento, assinado por Hitler, seria suficiente para negar ter sido ele responsável pelo Holocausto. No fundo, ignorando que o processo penal quase nunca exige provas tão evidentes como fotos, vídeos, assinaturas. Sendo inconcebível que algo assim pudesse ter se passado sem o conhecimento do "Grande Líder". E, no caso de Lula, não se trata só desse processo. Há mais seis processos em que, se não em todos, mas na sua grande maioria, também vai ser condenado por outros episódios de corrupção. Democracia funciona assim: políticos se elegem, corruptos cumprem pena em penitenciárias.
Apesar de tudo, as sondagens indicam que teria uma votação significativa. E talvez fosse eleito. Como se explica?
É preciso, antes, compreender o que se passa no Brasil. 47% da população nem sabe que ele está preso. Não lê. Nem é consumidor dos meios de comunicação. Lula viveu o melhor momento da economia mundial, nos últimos 50 anos. E pegou um país arrumado pelo anterior presidente, Fernando Henrique Cardoso. A economia, por aqui, andou bem. Muito menos que os outros países, mas melhor do que antes havia. Avançou num programa que já existia, o Bolsa Educação, e criou o Bolsa Família. Antes, as famílias recebiam recursos desde que levassem seus filhos às escolas. Depois, nada. Recebiam e pronto. Mais tarde, como a economia não era sustentável, no governo Dilma o país se deteriorou. Mas a gente simples sonha em ter de volta a vida que levou por algum tempo. Se seus votos se concentram, estaremos desafortunados. Sobretudo no Nordeste, pobre e carente. Entre pessoas informadas, e que pensam, os números da pesquisa não são esses. Nem há mobilização, nas ruas. Nada.
Fora Lula, só Bolsonaro tem números consistentes nas pesquisas de opinião. O eleitor brasileiro não sabe em quem votar?
Sabe. Sem dúvida possível. Quer votar em quem não seja político. Em quem nunca tenha sido candidato a nada. Duas pesquisas chegaram a essa mesma conclusão: uma da DataFolha, do jornal Folha de São Paulo, o mais prestigiado instituto de pesquisas do Brasil, outra da Fundação Getúlio Vargas, instituição respeitadíssima. Ambas chegaram aos mesmos números: 81% da população não quer votar em políticos. E todos os candidatos de agora o são. Por isso, ainda hoje, mais de metade dos pesquisados respondem nenhum/não sei. Querem votar em quem não é candidato. Dois nomes com esse perfil chegaram a cogitar ser candidatos. O ex-presidente do Supremo, o ministro Joaquim Barbosa. Negro, instruído (doutor pela Universidade de Paris) e responsável pelo julgamento do Mensalão, que levou dezenas de políticos do governo (de Lula) a ser condenados por corrupção. E o apresentador da Globo Luciano Huck. Jovem, com outra linguagem, bem atual. A sensação é que qualquer dos dois se elegeria. Mas não aceitaram os riscos de trocar uma vida cómoda pelo desespero de tentar consertar o Brasil. Acontece. O que nos leva a outra questão. De saber como funcionam estruturas partidárias antigas, e deformadas, que levam à disputa só candidatos que não falam para o povo. O poeta Manuel Bandeira até diz isso, em sua "Evocação ao Recife", ao falar na “língua errada do povo, língua certa do povo“ . Seja como for, tudo parece dar razão ao amigo Fernando Pessoa, no Opiário, ao lamentar: “A maravilhosa beleza das corrupções políticas/ Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos “ .
Mas esse laboratório em que se tornou o Brasil que vota parece contraditório e inesperado. Já não perdoa políticos corruptos, mas tem um deles no topo das sondagens. Como se explica?
Difícil entender. O Brasil não é para principiantes. Lembro o grande músico Tom Jobim. Voltando de Nova Iorque, disse estar muito satisfeito em por os pés no Rio. Então, lhe perguntaram como isso seria possível. Ele respondeu, sem nem pensar direito: “Nova Iorque é uma maravilha. Mas é uma merda. Enquanto o Rio é uma merda. Mas é uma maravilha“. Estava certo. O país é diferente. Nossa elites pensam o Brasil a partir de experiências "primeiro-mundistas". Sem nem perceber que apenas copiando servilmente experiências de fora vamos conseguir ser só mais pobres, mais dependentes e mais tristes que os países do Primeiro Mundo. Temos que compreender como funciona esse país periférico e insurgente. Esse o desafio. A resposta não é clara. Nem fácil de entender.
Como se explica o voto em Bolsonaro?
É o único candidato que mobiliza eleitores. Por falar uma linguagem simplória, que todos entendem. Nem sempre concordam, claro. Mas entendem. E seu discurso conservador está em sintonia com o Brasil de hoje. Quer ordem. Menos violência. Menos corrupção. Para gente demais, como eu, permita-me dizer, esse voto é incogitável. Pelo alto terror de imprevisibilidade que seu governo teria. Curiosamente, seu ministro das Finanças tem o mais ousado plano para nossa economia. Radical e duro. Mas dificilmente Bolsonaro conseguiria aprovar o que ele propõe.
E Marina Silva?
Não tem perfil para ser Presidente. Não no Brasil de hoje. Temos uma dívida pública que se aproxima de 80% do PIB. Pagamos, por anos, mais que 500 mil milhões de reais só em juros. É preciso muita determinação, para tornar o país governável. Seu projeto de dialogar por mudanças consensuais não parece minimamente razoável, num país que se derrete. A expectativa é que vá se evaporar, ao longo da campanha. Como em tantas outras vezes.
Quem são os favoritos a passar à segunda volta ?
São três possibilidades.
Uma é Haddad, até este fim-de-semana, o vice de Lula. No meio do povo é conhecido como “Andrade“. Que ninguém conhece. Nem Lula quer que conheça. Para entender isso, é preciso adivinhar o que se passa na cabeça de um caudilho. Lula não quer que Haddad se eleja porque, caso isso ocorra, ele fica obsoleto. As esquerdas já teriam um presidente. Não precisariam mais de Lula. Enquanto o velho caudilho, parece preferir que o país se desmantele, mas nas mãos de outro partido. Com o PT, e os movimentos sociais, assim espera, fazendo oposição desde o primeiro dia do governo. Até que o país vá buscar, na prisão, o Mandela que vai nos redimir. Sonha com isso. Dificilmente se passará assim. Aqui pertinho, na Argentina, houve caso emblemático. Perón exilado, sem poder ser candidato por ter sido condenado. Por corrupção, a história se repete. Dando mais razão a Maquiavel que a Marx. Apoiou Héctor Campora. Eleito, Campora amnistiou Perón e renunciou. Novas eleições gerais, em que Perón acabou eleito. Já sem Evita, tendo como vice Isabelita. Lula sonha, também, com essa possibilidade. Mas o Brasil não é a Argentina. Nem Lula é Perón.
Outro é Bolsonaro. Serão todos contra ele. A propaganda de Alckmin, pelo que já se sabe, vai ser toda em sua direção. Mas Bolsonaro, parece claro, não tem apenas os votos que estão nas pesquisas. Tem muito mais. O voto envergonhado, de quem não tem coragem de dizer em quem vota. Reproduzindo, por aqui, o que aconteceu com Trump. Vai perder votos, com certeza. Mas não tantos que o tirem da segunda volta. Parece.
O terceiro é Geraldo Alckmin. O que tem mais tempo de televisão. O que tem maior arco de alianças. Aquele que mais chance tem de aprovar reformas. São duas grandes vantagens. Uma é ser uma pessoa cordata, sem aparentes emoções, capaz de levar o Brasil a um clima de convergências, depois de tão fragmentado pelo episódio do "impeachment". Outro é sua base de apoio. Enquanto os outros tem quase nada, ele tem já 257 candidatos que são deputados, na sua aliança. Para ter maioria na Câmara, precisaria ter 256. Isso sem contar com os que aderirão a suas propostas. Base de apoio terá, com certeza. Não se sabe é se será eleito. Mas apoio de no Congresso é fundamental. Sobretudo nos primeiros seis meses, em que o Presidente eleito pode tudo. Ao menos, no Brasil. O que mais chance tem de ser eleito e, apesar disso, não avança nas pesquisas. Caso a televisão o faça começar a crescer, sem dúvida vai à segunda volta. Com enormes chances de ser eleito. Caso não saia do lugar, apesar dos media, então vai ser o imponderável.
Sendo o Brasil o país do futebol é válido usar a imagem de que a eleição vai ser decidida já depois dos 90 minutos?
São três tempos. O primeiro começa agora. Com a campanha na rádio e televisão. Quem cresce? Quem derrete? Quem fica onde está? Lula consegue transferir votos a um “poste“ ? O segundo tempo é o segundo turno. Só dois candidatos. Se nada acontecer de improvável, seria Bolsonaro contra Alckmin. Assim penso. Sem considerar Haddad, como candidato plausível. Até seria, caso Lula quisesse. Mas ele não quer. Está fazendo tudo para impedir que seu vice cresça. Vai acabar conseguindo. Mas o terceiro tempo será o mais relevante. E vai acabar tendo implicações nos outros dois tempos. A sensação geral é que a eleição só se decidirá faltando uma semana para a primeira volta, a 7 de Outubro. Com o voto útil. O eleitor vai olhar para o quadro de candidatos e dizer, desses, qual aquele que pode ser eleito. Uma espécie de voto útil antecipado. Nesse caso, crescem as chances de Alckmin.
Está optimista com o Brasil?
O optimismo não é um dado da razão. É do temperamento. As pessoas não estão, ou deixam de estar, optimistas. As pessoas são ou não são. Eu, pessoalmente, sou. E penso que os brasileiros, em geral, também. Apesar da dimensão de nossa crise. Que é económica mas é, também e sobretudo, política. O futurólogo americano Herman Khan dizia que “certos assuntos são só para loucos e entendidos“ . Penso que a política, no Brasil de hoje, está nesse quadro. E por não me considerar em nenhum desses dois tipos, por favor, não me levem a sério. Entendido com certeza não sou. E doido também não sou, ou penso que não sou, o que dá no mesmo. Seja como for, se o paciente leitor tiver chegado até aqui, talvez melhor seria repetir o que disse um famoso presidente do Brasil: “Esqueçam o que escrevi."