12 jan, 2018 - 16:52 • Álvaro Domingues
Já lhe chamaram um “Orlando Ribeiro 2.0”. De bicicleta ou de Google Earth, o geógrafo Álvaro Domingues habituou-se a andar por Portugal, construindo um roteiro de imagens que mostram um país entre a identidade, o progresso e mil e uma zonas cinzentas. É o “país possível”, não o país dos postais turísticos; é o país onde umas escadas “encaixam” num túnel, o “puro Ribatejo” onde cabe a China e uma pedreira grita “Portugal”.
A Renascença pediu a Álvaro Domingues que escolhesse e comentasse 10 das imagens de “Volta a Portugal” (ed. Contraponto). O que se segue são imagens e textos do autor.
Ó mar salgado, quanto do teu sal é lenha de Portugal
Vai uma nervoseira com a economia do mar, a economia azul, a zona económica exclusiva, a esfumaçada noção de soberania sobre um território marítimo cheio de água salgada, fanecas, vento, sereias, contentores e plásticos a boiar, maré alta e maré baixa, alerta vermelho quando a onda se alevanta. Quantos filhos em vão rezaram! “Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso ó mar, … a alma é pequena”, etc. como escrevia aquela Pessoa.
Está bem. Se não estiver bom para ir a banhos, trabalharemos então para a economia do mar na praia mesmo junto ao rebentar da onda para que não se perca pitada. De machado em riste, alguns ainda sonhavam caravelas a dar à costa. Imprestáveis; só para o lume.
Gabinete de curiosidades
Antes que se tivessem inventado os museus e as colecções organizadas segundo taxionomias científicas, havia os gabinetes de curiosidades, espécie de amontoado de coisas variadas que podiam juntar chifres de unicórnios, armas, conchas ou antiguidades. Eram coisas para mostrar, para exibir aos outros a distinção de quem as tinha. Assim são as memórias mal arrumadas e confundidas que povoam as mitologias identitárias: naus e caravelas, troféus de caça grossa, taças e casotas e demais parafernália em versão de cimento pintado. País de navegantes, de caçadores dos Montes Hermínios, de gente intrépida perscrutando o horizonte do alto do cesto da gávea, sempre para o longe, para o futuro, que o passado pesa mais do que o cimento.
Atascados
Suponha-se uma bandeira desconjuntada, cada cor para seu lado, o escudo ausente do centro feito em vazio sobrante de uma dinâmica centrífuga. No chão da pátria, ervas daninhas crescendo em baldios, terras que não se amanham, moscas no ar, toupeiras nas raízes. Desgraça tanta, por deus ó da guarda quem nos acode. Tanta gritaria é um cansaço. É apenas um estacionamento, uma pausa para descansar, instalar um GPS e recomeçar o mundo no ponto onde tinha ficado; retomar o progresso em modo pesado, rodoviário, motor a gasóleo.
Não há quem chame um reboque?
Pedreira
Suponhamos que havia uma pedreira no país do sul e que dessa pedreira se retirava calcário para britar pedra, queimar cal e fazer muros e chaminés. É a indústria extractiva. São bonitas as chaminés, primorosamente acabadas para fazer vista e botar fumo. Encerrada a pedreira neste reino dos Algarves, repôs-se a república agigantadamente pintada para que se veja ao longe e se instalará também uma luz de noite para que o patriotismo não se enfraqueça com o cair do sol. Terminada a função, iremos para a praia morenar as carnes e salgar os cabelos. Ao longe, no cimo da serra a bandeira de pedra ondulará ao vento. Nobre povo, nação valente.
Cão que ladra
Do visto e escrutinado se depreende que as coisas sagradas – como seria de esperar – estão melhor protegidas e cuidadas do que as outras. O homem crucificado dentro do sacrário de alumínio e vidro não prescinde do templo com suas finas colunas, o telhado de quatro águas e a cercadura de ferro forjado e pintado; dentro, os vasos das flores, as velas, os círios, as lanternas. Indiferentes, passam os humanos nas suas máquinas de ir aos campos e os cães ladram e distraem-se com a sombra. Do que se pode vislumbrar das casas, restam janelas esventradas, telhados incertos e paredes de xisto que o tempo vai esfolando.
Muito do que há em Trás-os-Montes é poesia – por vezes desamparada, outras nova em folha, é uma máquina de fazer cartografias emocionais.
Escada para o túnel
Desde o primeiro dia que deram com ela no meio do mar, a Madeira se apresentou como terra posta ao alto sem um naco de terra plana que não fosse uma fímbria mínima junto à praia ou uma chã nos altos, onde é mais o nevoeiro do que outra coisa qualquer que valha a pena.
Por isso se teve que produzir uma geografia nova, topografias sintéticas feitas de esforços sobre-humanos para segurar terra plana, poios, muros que aguentem, levadas e caminhos para a água e para a gente e o gado, casas incrustadas ou empilhadas em encostas impossíveis.
Vamos indo. Se o engenho dos humanos vai produzindo materiais e prodígios de tecnologia e construção que os liberta da ditadura da natureza, seja escada, parede, patamar, pilar, túnel ou laje, as coisas mudam, ó se mudam.
Socalco
Não há nesta terra do vinho outra coisa que não seja caminho e escadório ciclópico para plantar as videiras. No tempo do mau viver e do trabalho de escravo, punham-se uns desgraçados a partir o xisto mole do terreno, surribar para preparar a terra, levantar muros e plantar vinhas. Esquecido o esforço e a injustiça, louvam-se essas magníficas paisagens do antigamente. A amnésia faz bem à estética.
Reserve-se. Agora, os bulldozers orientados por raios laser desenham imensas geometrias tridimensionais compondo paisagens tecnológicas onde as ferramentas toscas dos escravos foram substituídas por estas máquinas de fazer paisagem em larga escala a partir de algoritmos simples por Baixo Corgo, Cima Corgo, Douro Superior até onde a vista alcança. Ufa…
Phlight
Phlight é difícil de entender porque é em estrangeiro e dantes escrevia-se flight que tanto dava para o voo dos pássaros como para as viagens de avião. Será por via de algum acordo ortográfico ao contrário porque cá foi o ph que evoluiu para f e não o f para ph. pH é a medida do valor da acidez ou basicidade de uma solução aquosa, coisas da química.
Também a química está complicada por estas bandas: a composição, a estrutura e as propriedades da matéria identitária estão em profunda metamorfose, juntando compostos variados, touros bravos em silhueta e negócios da China, tudo ao molho nestes tubos de ensaio que são as rotundas: cristalizadores de signos nos pontos fixos da geografia dos movimentos.
Ópio do povo
“É trigo loiro, é além-Tejo o meu país neste momento”, desfolhava Ary dos Santos no seu poema de resistência no tempo da ditadura. Na propagando do regime, o Alentejo eram as searas, as ceifeiras, as casinhas brancas, uma quintessência paisagística onde vivia um povo feliz, etc. Na paisagem literária do neo-realismo como em Manuel da Fonseca ou Saramago, era o contrário: o latifúndio, a exploração do trabalho, o abismo entre os poucos que tinham tudo e os outros que não tinham nada. Ao domingo a igreja, santinhos por todo o lado, ópio do povo na cartilha marxista para manter o povo sereno e vigiado pela guarda e pelos anjos da guarda.
Pois. Abalaram as searas. Agora é mesmo ópio (mas não é do povo). Repete-se a história.
Minho pitoresco
Que terra sã de mil variedades! Admirável anfiteatro voltado ao Atlântico desde os píncaros do Marão ou da Peneda até aos areais do litoral por vales ubérrimos, presépios de campos em socalcos, vacas vermelhas, ramadas, caminhos, estradas tudo a regurgitar de verde e casario, as mulheres bailando o vira, foguetes e procissões. Terra abençoada, viveiro de gente para exportar, sarrabulho, lampreias e presuntos ao fumo. Solenes cumeadas de granito rijo, auto-estradas, barragens e cabos de alta tensão, romarias quando é verão. Terra mestiça, mistura de coisas e mundos: percebe-se melhor registando as coisas que se sucedem lado a lado, do que desfiando a história organizada do era isto e depois aquilo; mapas em vez de cronologias.