A+ / A-

Câmaras do Porto e de Lisboa não respeitam “Mais Habitação” e dizem não poder fiscalizar sobrelotação de casas

21 mai, 2024 - 06:00 • João Carlos Malta

A autarquia portuense diz nada poder fazer quando tanta gente vive em tão pouco espaço, uma vez que não tem competência para entrar numa casa que pertença a um privado. Casos de sobrelotação já levaram a incêndios em Lisboa.

A+ / A-

A Câmara do Porto e a Câmara de Lisboa dizem que nada podem fazer em relação à fiscalização de casas sobrelotadas, isto apesar de o programa “Mais Habitação” prever que sejam estas duas entidades a fazê-lo. No entanto, ambas as autarquias entendem que, legalmente, esta responsabilidade é do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), e, por outro lado, sublinham que não podem entrar na casa de um privado sem a sua autorização.

A autarquia de Lisboa chegou mesmo a pedir uma avaliação legal ao Governo das competências que lhe foram passadas.

Recentemente no Porto, os 10 imigrantes atacados por um grupo de atacantes com alegadas motivações racistas viviam juntos numa pequena casa do centro da cidade. Em Lisboa, nos últimos dois anos há registo de incêndios em locais devolutos ou em prédios em que a concentração de pessoas é manifestamente superior à capacidade do espaço - embora a definição, na lei, do que é uma casa sobrelotada não seja clara.

A Câmara Municipal do Porto diz que o decreto-lei do “Mais Habitação” apenas se pode aplicar às habitações municipais, ou seja, quando é o município do Porto o respetivo proprietário. A fiscalização das restantes ficariam nas mãos do IHRU. “Aliás, nem no âmbito de delitos urbanísticos tem sido permitido, por parte dos tribunais, a entrada em habitações”, refere aquele município em respostas escritas à Renascença.

Isto significa que mesmo que haja suspeita de estar em risco a saúde pública, por exemplo, os fiscais camarários não podem forçar a entrada para uma fiscalização.

O vereador daquela autarquia, com o pelouro da fiscalização, Ricardo Valente, esclareceu posteriormente à Renascença qual é o entendimento da câmara. Argumenta que “é o arrendatário que solicita ao município este tipo de intervenção em relação às condições do local onde é arrendatário”. E complementa que “o município não pode, se quiser, e de forma intempestiva, pró-ativa, entrar na casa de alguém para lhe perguntar quantas pessoas estão ali e definir uma intervenção do ponto de vista da sobrelotação”.

Resumindo, o pedido tem de partir do inquilino.

Fiscais só entram se os moradores quiserem

“Um fiscal de uma câmara não pode entrar em nenhuma propriedade privada sem autorização da própria pessoa”, sublinha Ricardo Valente, ao mesmo tempo que dá um exemplo prático: “Imagine que há um vizinho com ações contra outro. A câmara manda a fiscalização, o senhor está à porta e o funcionário da câmara diz: ‘Sou o fiscal da câmara’. O senhor reponde: ‘Desculpe, eu não lhe vou abrir a porta’”. Nesta situação, o fiscal nada pode fazer para entrar dentro da habitação.

Por sentir que os papéis atribuídos não estão claros, a Câmara Municipal de Lisboa responde que “está a fazer uma avaliação legal das competências que lhe passaram a ser atribuídas, questão que pretende igualmente clarificar junto do Governo”. E sublinha que é “o IHRU a entidade à qual compete acompanhar e fiscalizar o cumprimento da legislação aplicável em matéria de arrendamento habitacional”. Ou seja, entende que não é a autarquia que deve fazer este tipo de fiscalização.

OuvirPausa
"Um fiscal de uma câmara não pode entrar em nenhuma propriedade privada sem autorização da própria pessoa", Ricardo Valente, vereador da Câmara do Porto.

A Renascença encaminhou várias questões ao IHRU sobre esta matéria, as quais ficaram sem resposta até ao momento.

Em relação aos casos concretos que envolvem migrantes que vivem em condições de sobrelotação e insalubridade grave dos edifícios, a autarquia de Lisboa relembra que a Santa Casa tem um papel a desempenhar.

“No caso concreto dos imigrantes, que aguardam pela regularização das suas situações por longos períodos de tempo, muitas vezes empurrados para inaceitáveis situações habitacionais, relembramos que esta é uma matéria da esfera do Governo e que este não descentralizou no Município de Lisboa as competências de Ação Social, que são da responsabilidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.”

Apesar disso, em julho do ano passado, a ex-ministra dos Assuntos Parlamentares Ana Catarina Mendes disse ser inadmissível que as autarquias não fiscalizem os sítios onde os imigrantes estão a morar, em muitos casos sem condições dignas.

“Acho inadmissível que as câmaras municipais se demitam de uma função que têm na lei, que é da fiscalizar o número de pessoas que vivem em cada uma das habitações e as condições em que vivem”, afirmou a governante, em declarações à CNN Portugal.

Há um ano, na sequência do incêndio num hostel no centro da capital, a vereadora da Habitação, Filipa Roseta, fez um apelo público para que os lisboetas denunciassem casos de sobrelotação na cidade.

À Renascença a autarquia não revelou dados, mas há um mês tinha divulgado publicamente que entre fevereiro de 2023 e fevereiro de 2024, a Câmara de Lisboa aumentou a fiscalização relativa a situações de casas sobrelotadas, com o registo de 323 vistorias e 76 fiscalizações, assim como 239 queixas/denúncias recebidas pelos serviços de urbanismo.

Recorde-se que o “Mais Habitação”, no artigo 88, definia no número 1 e no número 2 que “as edificações devem ser objeto de fiscalização periódica quanto às condições de habitabilidade, por parte da respetiva câmara municipal”.

“Sem prejuízo do disposto no número anterior, a câmara municipal pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a fiscalização sobre as condições de utilização do imóvel”, complementa.

A Norte, no Porto, a autarquia acrescenta ainda, em respostas escritas à Renascença, que o “Serviço Municipal de Proteção Civil, que, nos últimos dois anos, registou 14 ocorrências de habitações sobrelotadas, sendo que estes serviços só são chamados ao local no seguimento de incêndios ou outro tipo de ocorrência em que exista necessidade de realojar os moradores, ou devido a questões de insalubridade provocadas por este tipo de situação”.

Mas afinal o que é uma casa sobrelotada?

Em relação ao conceito de sobrelotação que permite às autoridades intervir, a autarquia de Lisboa e a autarquia do Porto dizem que o mesmo não está claro, nem vertido em lei para que possa ser usado para atuar.

OuvirPausa
"Não temos consagrado na lei uma definição concreta, ou seja, nós não temos definido do ponto de vista legal, a questão do número máximo de pessoas que nós possamos chamar sobrelotação”, Ricardo Valente, vereador da Câmara do Porto.

O Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), no artigo 1093, diz que “nos arrendamentos para habitação podem residir no prédio, além do arrendatário, todos os que vivam com ele em economia comum”.

E ainda “um máximo de três hóspedes, salvo cláusula em contrário”. E depois explica os conceitos. “Consideram-se sempre como vivendo com o arrendatário em economia comum a pessoa que com ele viva em união de facto, os seus parentes ou afins na linha reta ou até ao 3.º grau da linha colateral, ainda que paguem alguma retribuição, e bem assim as pessoas relativamente às quais, por força da lei ou de negócio jurídico que não respeite diretamente à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos”.

O vereador da Câmara do Porto diz que a lei é omissa na tipologia do apartamento em que isto pode acontecer. “Salvo cláusula em contrário, ou seja, se quiser eu faço um contrato de arrendamento, trago a minha mulher, trago a minha sogra, trago os meus primos, os meus netos. Ou seja, todas as pessoas que vivem em economia comum e depois posso hospedar mais três independentemente da tipologia”, critica.

E remata: “Não temos consagrado na lei uma definição concreta, ou seja, nós não temos definido do ponto de vista legal, a questão do número máximo de pessoas que nós possamos chamar sobrelotação”.

Também a Câmara de Lisboa segue a mesma linha de argumentação e diz que “a legislação é omissa, não contemplando uma definição do limite de lotação”. “Em alguns casos, os contratos de arrendamento estabelecem que a habitação é para uso exclusivo do agregado familiar. No entanto, não limitam o número de membros do agregado. Esta é uma cláusula de salvaguarda comum em alguns tipos de contrato, mas é um acordo entre privados que a Câmara Municipal de Lisboa não tem competências para controlar”, conclui.

Ricardo Valente considera que há “um espartilho legal” nesta área, em que as câmaras estão de “pés e mãos atados”. “Nós fazemos leis, fazemos demasiadas leis. O enquadramento legal depois não é minimamente tratado do ponto de vista estratégico”, avalia o autarca.

Valente afirma que as câmaras municipais, na maior parte dos casos, “não são ouvidas na criação de tudo o que é o espectro legal”, mas são elas quem depois dá a cara pelas leis, porque é a estas que as pessoas recorrem para se queixarem.

Apesar das críticas que faz, o vereador da Câmara do Porto reconhece que “todo este fenómeno que hoje nós temos de sobrelotação existe nos últimos dois anos”.

E, de seguida, aponta ao dedo aos portais imobiliários que colocam “anúncios de arrendamento para dez pessoas”. Ricardo Valente pede fiscalização a estas plataformas do setor. “Não entendo como é que não há uma regulação relativa aos portais de arrendamento que permitem que qualquer pessoa esteja a fazer um anúncio que, evidentemente, não cumpre um princípio básico e, portanto, deveria haver uma lei que co-responsabilizasse também agente económico”, ilustra.

Quanto aos meios para a fiscalização de habitações, o vereador da Câmara Municipal do Porto alerta para a falta de recursos humanos da autarquia. “A Câmara tem um número muito limitado de fiscais que têm uma intervenção gigante do ponto de vista de toda a cidade”, afiança.

Ricardo Valente afirma que a CMP, ainda assim, tem intervindo muito em situações de alteração de garagens para fins de arrendamento. “Há muitas denúncias”, diz.

No entanto, diz que este problema destapa um outro que põe a autarquia num limbo. “É melhor termos alguém num apartamento sobrelotado, numa garagem, ou alguém na rua sem abrigo? Porque nós vamos ter de os despejar e de colocá-los na rua. Ou seja, qual é o apoio social que o país dá, que o país cria?”, questiona.

OuvirPausa
"Acho que o Governo tem de criar aqui enquadramentos legais que de facto estabeleçam e que coresponsabilizem toda a gente. Eu não acredito que isto seja resolvido apenas numa lógica legal", Ricardo Valente, vereador da Câmara do Porto .

“Eu percebo a equipa que chega a um sítio, vê uma mãe com dois filhos numa garagem e diz: ‘Eu vou retirá-los daqui’. Para onde é que eles vão? Que país é este que não cria essas condições?”, acrescenta.

O autarca diz que a situação levanta “uma questão moral do ponto de vista da intervenção, um dilema moral gigantesco”. “As entidades que têm responsabilidade social, a Segurança Social, numa parte dos casos, não dá resposta”, assegura.

A situação da sobrelotação em Lisboa

Em Arroios, Lisboa, que é a mais multicultural freguesia do país, a presidente da junta, Madalena Natividade, diz que “têm recebido várias denúncias de sobrelotação”, e que “encaminha as mesmas para as autoridades competentes”.

“O ano passado tivemos um maior número de denúncias porque fizemos uma campanha para que os vizinhos denunciassem. Pedimos ajuda aos moradores para evitar situações como a do Porto [11 pessoas a viver num T1]”, explica.

Natividade fala de dezenas de denúncias até agora. “Haver 15 pessoas num T2 e cada família com uma bilha de gás, imagine o que pode acontecer”, ilustra. “Diariamente, estamos preocupados com esta situação”, acrescenta.

A presidente da Junta afirma que os relatos mais comuns são o de “muitas pessoas a entrar e a sair das casas, o ruído, a acumulação de lixo, e a sensação de insegurança por terem várias bilhas de gás no mesmo apartamento”.

Madalena Natividade diz que há diferenças no caso de as denúncias serem sobre edifícios públicos ou apartamentos privados. Estes últimos “são a maioria e o processo é muito mais moroso”, porque pressupõe processos judiciais. “Não se vê resultados no imediato”, sublinha.

Próximos de um acidente grave?

Em relação a este novo fenómeno de sobrelotação das casas, o vereador da fiscalização da Câmara Municipal do Porto, diz que para evitar um acidente de grandes proporções, “tem de haver uma intervenção muito rápida” das autoridades públicas.

“Acho que o Governo tem de criar aqui enquadramentos legais que de facto estabeleçam e que coresponsabilizem toda a gente. Eu não acredito que isto seja resolvido apenas numa lógica legal. Tem de haver reforço de meios de fiscalização e com responsabilização dos agentes privados”, defende.


E descendo ao caso do Bomfim, em que os 11 imigrantes estavam num T1 quando foram agredidos, Ricardo Valente pergunta: “O contrato de arrendamento é legal? Foi visto quem era o proprietário? Isto não pode ser assim.”

“Não podemos continuar a alimentar uma economia paralela, um mercado negro terrível, que tem a ver inclusive com tráfico humano, e em que se ganha financeiramente com vários negócios relacionados com isto”, critica.

A Renascença questionou o Governo, através do Ministério das Infraestruturas e Habitação, sobre qual o entendimento que tem sobre as competências de fiscalização na questão da sobrelotação, mas até ao momento ainda obteve qualquer resposta.

Saiba Mais
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Sara
    21 mai, 2024 Lisboa 07:48
    Acontece o mesmo em Almada, andam muitos a ganhar dinheiro a render quartos a imigrantes, casas lotadas, crianças, estragam tudo o que não é deles , não respeitam ninguém, pena que também não haja uma associação e ou uma APP para denunciar estás coisas, só vem um lado, que trabalha para sustentar tudo isto não tem direito a nada

Destaques V+