Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Futebol

“Os clubes não se posicionam socialmente e os jogadores nunca o fizeram nem para defenderem os direitos deles”

29 mar, 2024 - 09:25 • Hugo Tavares da Silva

Presidente do Bahia reflete sobre o posicionamento do clube na sequência dos casos Dani Alves e Robinho. Emerson Ferretti, o primeiro dirigente gay do futebol brasileiro, revela como foi ser quem não era enquanto futebolista: “Criei um personagem para realizar um sonho de criança”.

A+ / A-

O futebol brasileiro tem vivido tempos conturbados. À guerra de Vinicius Jr. contra o racismo juntaram-se as condenações por violação e convocatórias para a prisão de Dani Alves e Robinho. O futebol costuma ser o reflexo da sociedade, mas nos temas que fazem sangrar a vida das pessoas comuns, as que não são amadas por 50 mil num estádio ou lambidas pelos holofotes, futebolistas e entidades desportivas revelam mais timidez do que seria desejável. Ou talvez seja tudo um reflexo de uma indiferença coletiva.

Mas há sempre exceções. A presidente do Palmeiras, Leila Pereira, não se intimidou e, enquanto chefe da delegação da seleção brasileira, deixou palavras fortes para reflexão. “Acho importante posicionar-me. Cada caso de impunidade é a semente do crime seguinte.” Também Danilo, o ex-futebolista do FC Porto e atual capitão da seleção, deu uma aula e logo no Wembley, um santuário do futebol. “Está na hora de entender melhor que o nosso papel é jogar futebol, mas também servir de exemplo de comportamento.”

Finalmente, o Bahia, com um histórico importante nesse campo (e atualmente detido pelo Grupo City), posicionou-se e publicou nas redes sociais um vídeo impactante acenando a campanha “contra a cultura do estupro” (violação). A Renascença entrevistou Emerson Ferretti, o presidente do clube, e resultou daí uma reflexão sobre o debate nacional à volta da violação, o posicionamento no futebol e a história que pode explicar a indiferença do atleta relativamente aos temas que ferem a sociedade. Em conversa com Bola Branca, Ferretti, o primeiro presidente assumidamente homossexual na elite do futebol brasileiro, revela também, com água nos olhos, como foi ser quem não era durante a carreira de jogador.



Como vê o debate nacional à volta dos casos de Robinho e Dani Alves?
O meio do futebol não repercutiu muito, preferiu não discutir o assunto. A sociedade, sim, principalmente as mulheres. Mas no meio do futebol foi mais discreta, a repercussão.

Ia perguntar-lhe se acha que os jogadores e os clubes fazem o suficiente com a expressão e dimensão que têm, mas, depois dessa resposta, imagino que não…
[risos] O futebol tem as suas peculiaridades, não é? É um mundo bem específico e os jogadores, normalmente, não são unidos quando precisam de reivindicar situações. Eles não participam nas tomadas de decisão dos rumos do futebol, mas para algumas coisas comportamentais existe um código meio velado, não é explícito, do qual não se fala muito, pelo menos publicamente.

Estamos a poucos dias de celebrar os 40 anos do fim da 'Democracia Corinthiana'. É difícil repetir uma coisa assim.
É [risos]... A 'Democracia Corinthiana' foi um ponto fora da curva. Você vê que existiu há 40 anos e não foi uma prática comum nos clubes. Existe também o poder dos dirigentes. Antigamente havia a 'Lei do Passe'. Até 2001, os clubes eram donos dos jogadores, eu nessa época jogava, então a gente não podia, por exemplo, entrar num conflito, numa discussão com clube ou dirigente, porque seríamos prejudicados. Talvez seja uma memória histórica e por isso não se posicionam nem dentro, nem fora. Os jogadores, a maioria, preocupam-se apenas em jogar futebol, não é?

O que vimos de Danilo e Leila não é assim tão normal nesse mundo, certo?
Não, não é. Começou pela Leila, que é uma mulher, uma presidente, que se posiciona. A fala dela obrigou outros posicionamentos. Acho que vai muito das pessoas. Algumas pessoas puxam a fila e aí quebram uma bolha, um silêncio, e a sociedade precisa dessas pessoas.

Acha que a CBF reagiu adequadamente?
Até pelo facto de o presidente [Ednaldo Rodrigues] ser nordestino, negro e com origem indígena, e por isso ele traz essa carga de ser perseguido por tudo isso, a CBF tem demonstrado ser mais sensível do que as gestões anteriores em relação a essas causas sociais, principalmente o racismo. Mas, em relação aos dois atletas, existia no futebol, e digo clubes e jogadores, um silêncio público. Internamente, com certeza conversam, mas é um assunto delicado. Os jogadores têm muito cuidado. Eu fui jogador, eu sinto que os jogadores tomam muito cuidado para fazer uma crítica a um comportamento de outro jogador, porque eles podem ficar mal vistos no meio. Quando algum levanta a voz e faz uma crítica a um colega, ele pode ficar mal visto no meio, então todo o mundo recua, ninguém fala nada, percebem as coisas, mas não se manifestam.

Mas afastam-se do povo, certo? Parecem indiferentes ao que se passa.
Pois é. Eu acho que o futebol sempre foi indiferente. Os clubes não se posicionam socialmente. Na verdade isso tem sido quebrado, o Bahia é um exemplo disso, talvez o pioneiro no futebol brasileiro. Mas os jogadores nunca se posicionaram, nem para defenderem os direitos deles. Nunca foram unidos para reivindicar algo para a classe e nunca participaram nas decisões em relação ao futuro do futebol, que os afeta diretamente. Mas nunca se conseguiram unir para tal. É culpa da classe mesmo, parece que não há um interesse de evoluir nesse sentido. Aparece um ou outro, de vez em quando, que se posiciona um pouco, mas ainda não é um movimento organizado.

O Bahia publicou recentemente um vídeo muito impactante contra a cultura da violação. Como chegaram àquela ideia?
O Bahia já há alguns anos, desde 2018, que criou o Núcleo de Ações Afirmativas, que foi uma organização interna que se preocupava com as causas sociais e começou a criar campanhas. O Bahia tem por hábito posicionar-se em relação a questões sociais. Esse vídeo foi mais um, com bastante sucesso, eu diria, foi um vídeo forte, mas estamos a falar de violação. A violação é um crime violento. Acho que precisava de ter impacto para as pessoas entenderem um pouco e quebrar o silêncio. O Bahia faz um serviço muito grande à sociedade quando se posiciona, quando chama a atenção no meio do futebol para algumas coisas.

O Bahia é o primeiro clube de Daniel Alves e recentemente até retirou do museu uma imagem do jogador. A ‘torcida' tem recebido bem este posicionamento do clube?
O Daniel Alves jogou comigo, quando ele começou a carreira, eu era o goleiro do clube. Quando ele não tinha carro, ia de boleia comigo para o treino [risos]. É um amigo que fiz no futebol, sempre foi uma pessoa bacana. Errou, num momento específico, errou, colocou [em xeque] a carreira linda, finalizou-a de um jeito melancólico por uma tomada de decisão. Foi julgado, condenado, está cumprindo.

O Bahia posicionou-se novamente. Temos uma SAD, do Grupo City, e as questões relacionadas com o futebol e a gestão do museu ficaram com a SAD, então nós, Bahia, somos sócios minoritários, mas a gente concorda. Nós concordamos com a atitude tomada, o clube posicionou-se e acompanhamos o posicionamento do clube, independentemente da amizade ou não. Ele errou, errou e errou feio, cometeu um crime. A lei é para todos, não é?

Imagino que tenha havido aí uns conflitos internos nesta questão, sendo alguém conhecido ou até um amigo.
Pois é, eu fiquei muito triste, eu lamento por ele, quer dizer lamento muito mais pela vítima. Eu não faço ideia o que impacta uma violação na vida de uma pessoa violada. Mas ele também perdeu muito na história, por uma decisão impensada, num momento específico, ele não precisava nada disso. Mas aconteceu, ele tem de responder e sofrer as consequências.

Quando foi eleito presidente do Bahia, tornou-se no primeiro dirigente homossexual na elite do futebol brasileiro. Sei que não foi por isso que se candidatou, mas sente que estar nessa posição é uma forma de combater a discriminação e a homofobia? Ou seja, é um posicionamento só por estar?
Eu acho que é um passo gigantesco no meio do futebol, porque o futebol brasileiro sempre... sempre teve gays, como noutras profissões, são poucos mas existem. Esta é uma modalidade da qual os gays se afastam. O futebol nunca falou sobre isso, inclusive os gays que estão no futebol ou estiveram, como eu. Eu fui atleta quase 30 anos, a gente precisa de se esconder, precisamos de ser invisíveis para podermos sobreviver dentro do futebol. A partir do momento em que, há ano e meio, eu falei abertamente sobre isto, e fui o primeiro atleta na história centenária do futebol brasileiro, e depois fui eleito presidente de um clube, a gente começa a botar luz sobre o assunto.

Obrigámos o futebol a falar, por mais que no meio do futebol não tenha tido desdobramentos, existiram desdobramentos e repercussão na sociedade. No futebol, como aconteceu nos casos do Robinho e do Daniel, ficou todo o mundo quietinho e ninguém falou. Quando eu falei, foi a mesma coisa. Foi noticiado, mas dentro do futebol não teve desdobramentos, mas foi um primeiro passo. É uma mudança cultural aceitar que existem pessoas LGBT no meio do futebol de uma forma mais natural. Ainda há um longo caminho, mas o primeiro passo foi dado comigo, primeiro declarando e depois sendo eleito presidente de um clube. O grande objetivo é esse, começar a ver isso como natural, existem pessoas LGBT e isso não muda a qualidade do trabalho, a competência.

Em tempos disse que o futebol é muito hostil para um gay. Quando jogava, foi impensável tomar essa decisão ou chegou a debater-se com ela?
Não, nunca imaginei falar enquanto jogador, nem depois. Como ex-atleta, encerrei a carreira, comecei a trabalhar na imprensa, como comentador, e jamais pensei em falar abertamente sobre isso. Eu já tinha sobrevivido ao futebol como atleta, não teria o porquê de falar sobre isso. Foi uma condição que sempre escondi e entendia que era a melhor solução para poder sobreviver dentro do futebol. Mas foram circunstâncias bem específicas que me levaram a falar, muito em função da jornalista do "Globo Esporte", a Joanna de Assis, foram dois anos e meio de conversas, foi todo um processo e cheguei ao final entendendo que eu podia deixar um legado fora de campo, ajudando o futebol a evoluir. E resolvi ter essa coragem de falar e abrir essa discussão no futebol brasileiro.

Como foi ser alguém que não era?
[riso e voz trémula] Foi bem difícil, viu? Porque precisei montar um personagem para o dia a dia. Eu tinha o sonho de ser guarda-redes profissional, queria muito, eu realizava-me dentro de campo sendo guarda-redes e, para fazer isso, eu precisei de deixar de ser o Emerson pessoa, para ser o Emerson goleiro. Criou-se um personagem para poder realizar um sonho de criança. Isso não é legal, você ficar representando 24 horas. Isso não é bom, afetou a minha saúde mental, tive uma depressão, várias vezes pensei em largar o futebol, por não aguentar mais essa situação. Foi bem complicado.

Tópicos
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+