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Entrevista Bola Branca

Jorge Valdano: “O futebol cresceu melhor na pobreza do que na opulência”

24 abr, 2024 - 08:00 • Hugo Tavares da Silva (texto) e Inês Braga Sampaio (vídeo)

A Renascença foi até Madrid, nas vésperas dos 50 anos do 25 de Abril, para conversar com Jorge Valdano sobre liberdade (e a falta dela), na vida e no jogo com o qual se reconciliou recentemente.

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Jorge Valdano: “O futebol cresceu melhor na pobreza do que na opulência”

Jorge Valdano vive como se não tivesse marcado um golo na final de um Campeonato do Mundo, seguramente um dos mais especiais por ter Maradona em campo e feliz. Pelos ruidosos corredores de um hotel de Madrid, perto do Santiago Bernabéu, este argentino move-se com a elegância e a lentidão de alguém que mistura debaixo da pele um velho pensador e um agente secreto. Gentilmente, depois de um telefonema do próprio há quase dois meses (“Hola, soy Jorge Valdano”), aceitou sentar-se com a Renascença para conversar sobre liberdade, na vida e no jogo que tanto ama, por ocasião dos 50 anos do 25 de Abril.

“Uma vez meteram-me dois microfones e eu disse que um era para o que dizia e outro para o que pensava”, comentou momentos antes da entrevista começar, talvez para quebrar gelos, ou provavelmente para ser quem é. E gargalhou.

Depois de tanto, do tal golo à Alemanha em 86 e de anos no Real Madrid como jogador, treinador e dirigente, este senhor é uma das vozes mais autorizadas e indispensáveis que destapa, com um virtuosismo no verbo, as camadas complexas e ternas do futebol. As ideias e as palavras que lhe saem honram a literatura sul-americana de tempos idos. Nesta conversa com Bola Branca, aborda-se a ditadura, a identidade, os talentos castrados, a rua e a academia, a globalização, o ego, a felicidade, o controlo, a esperança, o utilitarismo, o amor. E a liberdade.

Nina Simone disse certa vez que liberdade é não ter medo. Concorda ou prefere outra definição?
É uma das possíveis. Efetivamente, o medo condiciona muito a liberdade e estamos, além disso, num momento em que a inteligência parece ter medo das emoções. Isso parece-me um mau dado, um dos maus dados que a liberdade tem de enfrentar. Se formos ao mundo do futebol, o outro mau dado é a revolução metodológica, na qual, a cada dia, o jogador vai jogar quando o futebol já está pré-aquecido. Vai cumprir o que o treinador desenhou no quadro. Assim, o instinto vai perdendo protagonismo. Este jogo fez-se grande graças aos jogadores diferentes, que são precisamente os que estão em perigo.

Viveu anos da sua juventude em ditadura. Como era a sua relação com a palavra 'liberdade'?
Eu estava em Espanha durante a ditadura mais terrível da Argentina. Na minha infância vivi sob regimes ditatoriais, num ambiente muito pequeno. Nasci numa terra que, naquela altura, não tinha mais que 10 mil habitantes. Havia uma espécie de estações fixas: a minha casa era segurança, a escola a obrigação e a rua a liberdade e o futebol que era sinónimo de liberdade. Como todos os jogos, estava fora da realidade. O futebol foi um desses ambientes que ajudou a sentir-me livre. Naquele momento, a ditadura era, para mim, sinónimo de autoridade, mas não sabia traduzi-la em sentido político. Era demasiado criança para isso.

Lembra-se de algo que lhe diziam para o ensinar a viver condicionado ou até algum momento de rebeldia?
O que me lembro é que o peronismo estava prescrito e dizer a palavra “Perón” ou “peronismo” era uma espécie de pecado. Era preciso ter cuidado com o lugar em que pronunciavas a palavra. Bom, esse era um dos requisitos que havia que cumprir para ser um bom cidadão.

Acredita que quem viveu em ditadura entende melhor a palavra “liberdade”?
Sim, de certeza, sim. É o mesmo que dizer que aquele que sofreu uma dor sabe desfrutar mais dos prazeres, não?

Há pouco falámos um pouco do seu futebol de criança, de como o libertava, e até do jogador que agora cumpre, cumpre, cumpre tarefas. Porque é que muitos de nós, e eu sei que gosta de Guardiola por exemplo, admiramos treinadores que metem jogadores em jaulas à espera da bola?
Deixa-me dizer que a do Guardiola é a melhor jaula do mundo, por isso digamos que estamos perante o pior modelo porque reivindica positivamente a metodologia [gargalhada]. De todas as formas, o problema começa mais atrás. Perdemos a rua como cenário de formação e a rua era um lugar que dava prestígio ao jogador diferente. E o que te dá prestígio dá-te segurança, isso ajudava a que o diferente não tivesse a intenção de fazer parte do rebanho. Por outro lado, a academia não soube levar os ensinamentos da rua para o seu ambiente e tem, para mim, um problema e uma solução também. A solução é melhorar os jogadores medíocres e o problema é que torna medíocres os melhores jogadores. Bom, assim fica mais difícil que surjam os Maradonas e os Messis que estamos sempre esperando.

Exagerando, não é isso um tipo de ditadura? Se dizem a um miúdo, quando chega a uma academia, tudo o que tem de fazer e que não pode ser quem é, estão a anular a pessoa, não?
Estamos a abusar, por exemplo, dos treinos a um e dois toques.

O ‘dostoquismo’, segundo Juanma Lillo.
É isso, ‘o dostoquismo’. E jogar a dois toques é dizer aos miúdos que não joguem. Estás a dar-lhes um forte condicionamento. A história do futebol fala-nos disto. O Maradona era todo rua. O Messi era metade rua, metade academia, porque chegou aqui com 12, 13 anos e o resultado é insuperável. Estamos a falar de 800 golos, de 20 anos de grande protagonismo. Os que vêm agora, que podem ser Mbappé ou Haaland, já são produtos académicos. À primeira vista nota-se que esse futebolista não só passou pela academia, como passou também pelo ginásio. Ter pernas, neste momento, é outro dos elementos que os treinadores olham para saberem se o jogador está ou não preparado para a máxima competitividade.

Cortázar dizia que separar a noção da liberdade da noção do homem significa destruí-lo.
Está certo. Cortázar tinha quase sempre razão [risos].

Falávamos da academia, dessas regras, de ditadura. Isso pode explicar porque não se veem jogadores a falar de justiça e injustiça social? Parecem afastados das pessoas, mas talvez no passado tenha sido igual.
Este jogo cresceu melhor na pobreza do que na opulência. É um jogo que precisa do engenho, da astúcia, de uma dedicação absoluta. Além disso, é um jogo barato a que todos podiam ter acesso. Agora não, agora compromete mais as classes médias, inclusive as classes médias acomodadas. É outra das consequências que traz a academia. A Europa, para um futebol académico, está melhor preparada do que o futebol sul-americano. Primeiro, porque a academia necessita de meios, instalações, professores que estejam bem preparados e por isso bem remunerados. É mais difícil encontrar isso na América do Sul.

Certo.
Por isso, foi tão importante que a Argentina tivesse ganhado o último Mundial à argentina, à sul-americana. Houve muita angústia em alguns jogos, na final por exemplo, quando parecia estar ganha e, de repente, foi preciso começar de novo, do zero. E a França ia colocando jogadores cada vez mais altos, cada vez mais fortes e eu perguntava-me: “Como vamos sobreviver?”. Essa diferença de peso era como peso ‘welter’ contra um peso pesado. Sobrevivemos graças à cultura que existe nos clubes das cidades, dos bairros, onde cresce o jogador com um grau de astúcia e engenho que o futebol, em situações críticas, acaba por reclamar. Parece-me que é um grande tesouro e que temos de o cuidar.

Hmm, hmm.
Com o tempo, fomos perdendo o gosto pelo estilo. O Maradona era o que melhor refletia o estilo argentino, o amor à bola, o virtuosismo com a bola. O argentino quase sente mais amor pela bola do que pelo futebol. E Maradona transmitia isso melhor do que ninguém. Por isso somos alérgicos aos treinos a um e dois toques. Está certo que a América do Sul sobreviva, não é um continente onde interpretamos o futebol da mesma maneira. Não é o mesmo a cordilheira andina e o Rio de la Plata; não é o mesmo os campos do Brasil e os ‘potreros’ argentinos; não é o mesmo o Equador e a Venezuela. Porque joga tudo, o terreno, o clima, o contexto cultural, tudo tem a sua influência. Mas, quando dizemos “jogar à sul-americana”, sabemos do que estamos a falar: um jogo mais repousado, tecnicamente bem jogado. Enfim, há alguns elementos que nos identificam.

Vive-se uma espécie de globalização da ideia. Ver o Brasil a jogar o ‘jogo de posição’ ou parecido é estranho, não?
Sim, sim, soa estranho. Efetivamente, tudo está a unificar-se. A globalização está a obrigar-nos a seguir regras específicas, mas eu insisto: o último Mundial deu-me alguma esperança relativamente ao futebol sul-americano, para que continue a ter a sua essência. Isto foi sempre um confronto entre a Europa e a América do Sul, houve épocas de enfrentamentos muito violentos, outras épocas em que havia uma questão de honra. Estava sempre implícita a hegemonia do futebol cada vez que se enfrentavam um continente contra o outro. Essas diferenças, parece-me, são muito sãs para que o futebol continue a ser o jogo fascinante que é.

Há aquela frase de Mbappé, que disse que a Europa estava mais avançada, e depois viu-se a primeira parte da final do Mundial…
Sim, mas de todas as maneiras foi uma opinião mais inocente do que o que quisemos interpretar. As redes sociais levam tudo aos extremos. Bom, ele foi demonizado para lá da sua intenção. Suponho que ele queria dizer que era um futebol mais desenvolvido, com mais possibilidades económicas. Para além disso, estamos a falar de uma espécie de aspirador de talentos de todo o mundo. Aqui, na Europa, há uma espécie de imperialismo futebolístico. É assim, não? Por isso, agora que se critica o que os árabes estão a fazer com o futebol, comprando jogadores de grandíssimo nível, eu digo sempre algo parecido: é fácil criticar sendo europeu, mas o que está a fazer a Arábia Saudita é o que a Europa fez connosco [risos].

E a Europa contrata jogadores de 16, 18 anos.
Eu cheguei aqui com 19 anos. Estamos a falar de há 50 anos.

Há pouco falávamos de como se está a roubar o futebol às pessoas. Os bilhetes estão caros e nos clubes locais, em Portugal pelo menos, os miúdos têm de pagar para jogar e há aquela coisa de “se for bom, o clube paga a conta”. Estamos a afastar os que não são tão bons, não podem ter o prazer de jogar. Não estamos a transformar o futebol numa modalidade elitista? Não há esse perigo até com a falta de diversidade nas bancadas?
A resposta é sim. É um desporto cada vez mais caro, cada vez mais mercantilizado, mas ao talento natural há que extraí-lo sempre mais ou menos dos mesmos lugares. Ou seja, nisso não há muita diferença. Dá-me especialmente medo que comecemos a discriminar miúdos em função do seu tamanho. Isso dá-me mais medo do que isso das classes sociais. Sempre tive a fantasia de montar uma escola de futebol para jogadores com menos de 1.70m [gargalhada]. Aí saíam-me Messi, Maradona e eu ficava rico, no? Certo é que, em miúdos de benjamins e infantis, o [jogador] que é grande provoca diferenças que impactam no resultado. Então, o grande rouba lugar ao bom, mas, claro, o grande vai competindo e o pequeno não, por isso vai ficando para trás, atrasado, o que é melhor. Isso, sim, é um pecado mortal.

Basta que nasça em janeiro.
Efetivamente, efetivamente. Quando eu cheguei ao Real Madrid, como diretor desportivo, dos 350 jogadores que estavam na cantera, apenas dois tinham nascido em dezembro. Quando eu perguntava aos responsáveis da formação, diziam-me: “Nós só medimos o talento”. Mas, claro, quando lhes dei os dados, ficou muito claro que o tamanho do talento importava mais que o tamanho do físico.

Falávamos das mudanças do futebol. Agora temos o VAR, que rouba aquela felicidade furiosa depois do melhor momento deste jogo, não?
Sim. Em primeiro lugar, afoga o grito sagrado do golo. Depois, convertemos um jogo métrico num jogo milimétrico. Vou um pouco mais além, com a segurança de que é uma batalha que tenho perdida: para mim, o futebol é todo o contrário da tecnologia. O futebol é filho do seu tempo, um jogo selvagem, um jogo primitivo. Além disso, tenho o temor que a tecnologia, que é muito muito invasiva, acabe por apoderar-se do jogo. Não estamos muito longe de que isto seja arbitrado por um robô, que os algoritmos digam qual é tática que temos de usar no jogo seguinte. Isso vai acabar por ser outra maneira de robotizar os jogadores, tipos que não serão robôs mas que estarão robotizados.

Creio que há até ferramentas que dizem onde está o espaço.
Sim, efetivamente. Havia um jogador argentino, dos anos 60, possivelmente um dos talentos naturais maiores que eu vi na minha vida, que se chamava Ricardo Bochini...

Entrevistei-o no Qatar.
Não me digas! Bom, o Bochini jogou toda a sua carreira no mesmo clube, onde é adorado. Não tinha nenhuma vantagem física, mas tinha um talento descomunal. Um dia perguntei-lhe: “Como faz para sobreviver com esse corpo?”. Ele disse-me: “Eu ponho-me onde não está ninguém e dou a bola ao que está livre” [gargalhada]. Pareceu mais uma genialidade do Bochini. A genialidade que fazia com os pés, nesse dia, converteu-a numa resposta que simplifica o futebol e o torna compreensível. Não é necessário inteligência artificial com esta frase [gargalhada].

Esteve em 1986.
Esteve em 1986 e, quando entrou em campo, o Diego disse-lhe: “Vem, maestro”. Para que o Maradona te considere um maestro... A mim, por exemplo, nunca mo disse [gargalhada].

Aproximou-se do céu quando marcou à Alemanha? Sem VAR.
Sim, aí senti-me o homem mais livre do mundo. É o clássico momento “isto não me está a acontecer a mim”. Não pode ser que o sonho dormido e acordado de toda a minha vida tenha acontecido. Não foi só isso, fez-me um pouquito mais feliz todos os dias da minha vida. Não é que me levante e diga “sou campeão do mundo”, nem “meti um golo na final do Campeonato do Mundo”, mas há uma satisfação que complementa a minha paixão pelo futebol. Ou seja, tocou-me viver a maior coisa que te pode acontecer. Podia abandonar o futebol sabendo como era a culminação.

Voltando ao ‘dostoquismo’. Costuma dizer-se que o futebol reflete o que acontece na sociedade, mas o jogo parece hoje mais coletivo, harmonioso e cheio de regras, mas lá fora as pessoas estão mais individualistas, não?
Está certo, há uma divergência, sim. Muito bem levantada a reflexão. Pela primeira vez, o futebol e a vida vão por caminhos diferentes. Mas creio que tem a ver com isto, com a tecnologia, com a mecanização, com outro tipo de escravidão a que começamos estar submetidos.

Sente que os jogos são parecidos?
Sim!

Aborrece-o?
Muito, sim. De facto, vejo muitos jogos a fazer um sudoku. Aos 15 minutos já sei qual é o jogo, já sei o que lhes disse o treinador e como vai ser. Até que uma das equipas meta um golo que mude as regras táticas, o jogo deixa de interessar-me, sim.

O senhor foi muitas coisas, mas foi campeão do mundo com Diego. Ele foi o homem mais livre que viu em campo?
Possivelmente, sim. Desde logo foi o mais feliz que vi dentro de uma ‘cancha'. O facto de ter pisado esses 100 metros por 70 metros justificou a sua vida. Aí sentia-se pleno e, como se sentia pleno, sentia-se livre, sentia-se generoso, valente, havia lá dentro um grande tipo para além do grande jogador. E com a noção de espetáculo de um cantor de rock. Ele sabia que o que fazia mobilizava as pessoas. Se, a meio do jogo, olhasse para a bancada e fizesse assim [faz gesto com a mão], punham-se 20 mil de pé. Era um manejar do espetáculo que o convertia num tipo especial.

Imagino que Maradona sendo Maradona em campo seja o mais perto que alguém esteve da infância. É assim? Ou seja, quanto mais longe estamos do miúdo que fomos, mais longe estamos da liberdade?
Sim.

... Ou, mais velhos, podemos aprender algo?
Pode sempre aprender-se algo, é um jogo evolutivo, mas, claro, a liberdade é algo que o futebol te vai roubando, salvo com alguns sábios. Eu, por exemplo, conheci na minha adolescência César Luis Menotti, que era um treinador que te autorizava a levar para o campo os sonhos de menino.

– Com que sonhavas quando eras pequeno?
– Eu sonhava com fintar, fazer paredes…
– Bom, então vai lá para dentro e faz isso. Quem é que impede?

Isso reconciliava-te com o sonho de criança. Há outros treinadores que atentaram contra o sonho de menino.

Será por ego ou porque acreditam que estão mais perto de ganhar?
Sim, é o desespero por ganhar.

O controlo.
O controlo. O que acontece é que o controlo mata a vida, isto também é do Cortázar [risos].

Retirar a liberdade aos artistas é ceder ao utilitarismo, certo?
Sim, efetivamente. Inteiramente. Além disso, creio que, quando falamos do ego, que tem muito má fama dentro do futebol, esquecemos que no futebolista que tem de desafiar um público há algo de artista. Então, uma porção de ego é imprescindível para jogar bem futebol, para reconciliar-se com o medo cénico, como certa vez eu referi sobre o Bernabéu. Desafiar um público requer ego, por isso dizemos que há jogadores de treinos e jogadores de jogos. Os jogadores de jogos não têm medo do público, os jogadores de treinos têm. O ego, muitas vezes, é uma defesa perante um público.

E ajuda a não cair quando falha.
Isso mesmo, exatamente. E dentro do mundo do futebol temos alguns egos que foram extraordinariamente rentáveis. Joguei com o Hugo Sánchez, por exemplo, que era um jogador com um ego muito desenvolvido, mas era um ego super produtivo. O Cristiano Ronaldo é o ego mais produtivo da história do futebol, possivelmente, porque o colocou sempre ao serviço da superação pessoal. Isso deu-lhe resultados extraordinários, ao ponto de discutir Bolas de Ouro com um génio.

Lendo as suas crónicas vê-se que, apesar de tudo, ainda ama muitíssimo futebol, mas o que o preocupa para o futuro? Já falámos em algumas coisas.
Ultimamente, reconciliei-me com o futebol porque me reconciliei com a Argentina no Qatar e, a partir daí, recuperei a visão do adepto. Não tanto da criança, mas do ‘hincha’. Se dermos conta, vemos que existem os Bellinghams, os Vinicius, os Haaland, os Mbappé e que são jogadores todos diferentes, de um talento superior, ainda que com um biótipo distinto do que conhecíamos há alguns anos, mas que são muito atrativos. Isso reconcilia-me com o futebol, porque eu gosto do futebol por ser diferente, pelas coisas diferentes, pelo trevo de quatro folhas.

Antes havia os desconhecidos quando se ia jogar um Mundial.
É verdade. Bom, perdemos o mistério, é outra das perdas que tivemos, que logicamente também afeta a imaginação. Eu, por exemplo, não vi o Pelé jogar, mas estou disposto a defendê-lo como o melhor jogador da história ao lado de Diego, Messi, aos que não posso trair. Não era preciso ver um jogador para saber que era um génio. O que acontece é que sou de uma geração na qual o futebol entrou através da palavra, através de uma revista, a “El Gráfico”, que era uma bíblia, e através da rádio.


Tenho uma história muito boa, que contei numa homenagem à rádio precisamente. Quando terminou o Mundial e fomos campeões do mundo, eu estava no chão, a abraçar o Olarticoechea e o Giusti, dois companheiros que estavam a chorar. E eu estava a fazer força para chorar. “Se não choro hoje, sou uma má pessoa, algo está a falhar em mim.” Não houve maneira, não consegui chorar. Dois anos depois, eu já estava retirado do futebol por causa de uma hepatite que se fez crónica. O meu irmão mandava-me cassetes nessa época, estou a falar de outra idade geológica, não? – esclarece às crianças o que eram cassetes [risos]. Nas cassetes vinham mensagens do meu irmão, da minha mãe, música da Argentina que eu não tinha acesso. Metia os ‘cascos’ [auscultadores] e ia correr para um parque à frente de casa. A meio de duas ou três mensagens, o meu irmão gravou o meu golo na final com a voz [da rádio] que eu associava à minha infância. Comecei a chorar como um menino, a chorar com ruído, tive de me esconder para chorar. Sempre acreditei que foi a palavra que culminou a ideia de culminação que é um golo na final do Campeonato do Mundo.

Creio que era Panenka que tinha Didi como jogador preferido na infância, porque tinha lido sobre ele. Nunca o tinha visto jogar, mas parecia-lhe muito bom.
[gargalhada] Isso é divino!

Não me disse o que o preocupa para o futuro do futebol.
Esta espécie de mecanização, o levar a metodologia tão longe que acabamos com a imprevisibilidade que caracterizou sempre o jogo. Depois, a mercantilização. Vimos, em Espanha, recentemente, o fenómeno que se produziu com a Taça do Rei, a explosão identitária em duas comunidades distintas. Em Bilbau, houve centenas de milhares a ver a gabarra a cruzar o rio, entre eles estava o meu neto, que nasceu em Bilbau e que, com nove anos, disse que não podia perder esse espetáculo. Serve para refletir sobre a importância do futebol em todos os níveis, porque o estamos a converter num fenómeno demasiado elitista e há demasiada gente que fica descorada.

Mais ainda quando levamos o futebol para longe das pessoas.
Claro, efetivamente. Isso é o que não devemos esquecer, que este é um jogo que pertence às pessoas. [O antigo selecionador da Colômbia] Maturana dizia-me, há poucos dias, que estava um pouco confundido com a nova terminologia do futebol, porque antes havia um sistema, em que se colocava mais ou menos os jogadores, e a tática, que era o sistema em movimento. E depois havia algo muito importante: sabia-se que jogávamos para as pessoas. Havia que agradá-las, que Higuita tinha de fazer o ‘escorpião', que Valderrama tinha de fazer paredes de meio metro, que isso tudo fazia o espetáculo e que não se podia atentar contra o espetáculo. O que acontece é que estamos num momento em que o resultado se apoderou do cenário por inteiro e o espetáculo começa a ficar frívolo.

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  • António Pena
    24 abr, 2024 Fundão 08:26
    Magnífica entrevista, com qualidade e interesse. Parabéns aos dois (entrevistado e entrevistador)

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