Tróia-Sagres. Aos 73 anos, António comemora meio milhão de quilómetros em cima de uma bicicleta

15 dez, 2023 - 15:00 • João Carlos Malta

A clássica de bicicleta de quase 200 quilómetros, que liga o Litoral Alentejano e o Algarve e que todos os anos leva milhares para a estrada, realiza-se este sábado. O criador da iniciativa festeja uma marca emblemática. Este ano, a GNR voltou a chamá-lo à esquadra, mas sem ameaças de multas e restrições.

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Começou aos 40 anos e não mais parou. Por isso, este ano é a 34ª vez que António Malvar faz os quase 200 quilómetros que ligam Tróia a Sagres. A ele vão-se juntar, como de há muitos anos a esta parte, milhares de ciclistas, uns profissionais, outros amadores. Quando forem perto das 7h00 deste sábado, este homem de 73 anos assinala outro feito: meio milhão de quilómetros em cima de uma bicicleta.

A promessa que fez há mais de três décadas, transformou-se em algo que nunca imaginou ꟷ uma clássica de ciclismo. Começou pequena e hoje é grande. Tudo porque ele que gostava de correr se quis desafiar e colocar bem lá em cima o objetivo. Sem números oficiais para apresentar, há um cálculo que na estrada possam rolar cerca de oito mil bicicletas.

Mesmo sem contar com uma organização formal, é um evento que mexe com muita gente. Leva até a que, anualmente, a empresa que faz o transporte de ferry de Setúbal para Tróia faça uma ligação mais cedo do que em todos os outros dias do ano. Parte às 6h15, para que os participantes possam estar do outro lado às 7h00 prontos a começarem a pedalar.

Há equipas profissionais a juntarem-se à iniciativa e há câmaras municipais que alugam autocarros para transportar ciclistas amadores de todos os tipos.

“Ao longo dos anos, houve pessoas que foram sabendo disto e quiseram fazer também comigo no mesmo dia, mas não houve da minha parte qualquer esforço de angariação de pessoas para fazerem comigo o percurso”, conta à Renascença.

Este ano, António está ainda mais contente. Porque além das duas tradicionais companhias, a da mulher que vai no carro de apoio e a dos Pink Floyd, nos ouvidos, terá a filha ao seu lado. “É uma grande alegria”, afiança.

Há um ano, António apontava este Tróia-Sagres como o momento para atingir uma meta que nos últimos anos se formara na sua cabeça: os 500 mil quilómetros. Acabou por matematicamente chegar a este número há um mês, mas esta clássica que pensou, criou e deu corpo servirá para consagrar o momento.

“Completei recentemente o meu objetivo de vida”, declara. Mas e agora, qual é o próximo para um homem que não consegue viver sem uma bicicleta para rolar. “Chegar ao um milhão de quilómetros”, diz a rir-se. “Eu sei que é impossível, eu sei”, acrescenta entre mais risos.

GNR volta a chamar António

No ano passado, António foi surpreendido com um aviso da GNR de Setúbal. Se continuasse a publicitar nas redes sociais o passeio, através da página que criou para o evento, pagaria uma multa de 450 euros pela alegada organização e mais 50 euros por cada participante. A situação levantou muita polémica com muitos a prometer juntar-se ao criador da clássica em solidariedade.

"Completei recentemente o meu objetivo de vida (....) chegar ao um milhão de quilómetros", António Malvar.

À época retirou da página do Facebook que criou para o evento a data em que faria o percurso, mas garantiu que iria continuar a cumprir a promessa até à morte.

A GNR explicou na altura, à Renascença, que quis fazer um aviso. Afiançou que todos os que quisessem podiam continuar a ir para a estrada fazer o passeio, mas pretendia que os agentes que identificava como organizadores do evento tivessem em conta as multas em que podem incorrer.

Nada aconteceu. Milhares juntaram-se novamente e a GNR, em alguns trechos do percurso, ajudou a criar condições de segurança na estrada para os ciclistas. De anormal, apenas um acidente aparatoso. Um carro em contramão que embateu num grupo de ciclistas. Resultado: sete feridos, um com gravidade. Tudo aconteceu perto do local onde ocorre o Festival Meo Sudoeste, na EM 502.

Este ano, António Malvar diz que não se passou o mesmo que em 2022, mas que voltou a ser chamado pela GNR.

“Mandaram-me uma carta para eu me apresentar na esquadra de Porto Salvo para prestar declarações e fui lá. Perguntaram-me o que era o Tróia-Sagres, há quantos anos se realizava e foi basicamente só isso mesmo”, relata.

Mas aconteceu algo mais? “Nada aconteceu. Pediram para eu prestar declarações como testemunha. Não percebi. Cheguei lá e fizeram estas perguntas um pouco genéricas”, acrescenta.

"Mandaram-me uma carta para eu me apresentar na esquadra de Porto Salvo para prestar declarações e fui lá", António Malvar.

Desta vez, não recebeu nenhuma ameaça de que poderia ter de pagar coimas caso o passeio de bicicletas juntasse muitos participantes.

António compreende a preocupação com a segurança de quem circula na estrada no dia do clássica. O que faria sentido era haver uma “colaboração por parte dos elementos da autoridade das Brigadas de Trânsito no sentido de facilitar a vida a todos, não só os ciclistas, como também aos outros automóveis que circulam nas estradas”.

A situação passou, mas marcou. Ainda é comentada nas redes sociais este ano. Com a data do passeio a aproximar-se, nos comentários à publicação de António Malvar em que anuncia a data da prova deste ano, há quem pergunte:” E que acontece se se juntarem um milhão de pessoas dia 16 de Dezembro a ti?”

A resposta por parte de outra pessoa não se fez esperar: “Será uma festa do caraças”.

Outro internauta questiona: “E não o vão prender de novo por não ter licença de promotor do evento?”

A bicicleta como forma de vida

Mas voltando à história de António, um engenheiro mecânico de profissão que, ultimamente, antes de se reformar, geria uma empresa de organização de eventos lúdicos e desportivos que tinha o ciclismo como atividade principal.

A ligação às duas rodas fica clara e é umbilical, mas com os anos a avançar salta a dúvida: como é que um homem de 73 anos se prepara para fazer 200 quilómetros em seis ou sete horas numa bicicleta? Andando quase todos os dias, responde. Nos últimos anos, tem feito médias anuais a rondar os 12 a 13 mil quilómetros por ano, o que daria 32 quilómetros, em média, todos os dias.

“Não tenho uma preparação específica. Como estou reformado, vou desfrutar andando de bicicleta, que é o que mais gosto de fazer na vida. Ando sem qualquer preocupação em fazer isto ou aquilo como forma de treino. Passeio apenas, mas faço muitos quilómetros”, explica.

Mesmo com mais de 70 anos, António diz que ainda não lhe pesa nas pernas os 200 quilómetros da clássica entre aquela freguesia de Grândola e o Algarve. “Felizmente ainda não senti nada. Não o faço de uma forma competitiva. Faço devagar, sempre sem ir ao ‘redline’, vou sempre com um ritmo que considero acessível”, relata.

"Não tenho uma preparação específica. Como estou reformado, vou desfrutar andando de bicicleta, que é o que mais gosto de fazer na vida."

Este ciclista é mesmo especialista nestes grandes passeios de bicicleta. Durante vários anos, e por mais de 100 vezes, fez a ligação fora de estrada entre Bragança e Sagres. Mais de 1000 quilómetros de cada vez.

“Foi nesses passeios que vivi os melhores momentos de bicicleta com as pessoas que foram comigo, pelos sítios onde passámos e que pelos dias que vivemos que foram muitos, muitos dias”, recorda.

No pólo oposto estão os acidentes, que com tantos quilómetros de estrada se torna difícil que não existam. Uma aconteceu numa prova de ‘downhill’. “Foi no Algarve, em que tive uma queda muito aparatosa e que voei por cima da bicicleta e aterrei 50 metros à frente numa descida e fiquei bastante magoado”, relembra.

A outra situação em que viu a vida por um fio foi também fora de estrada a fazer uma descida a grande velocidade. De repente, surge uma curva no caminho, um local pedregoso e que não era acessível a outros veículos que não fossem jipes, bicicletas ou motas todo-o-terreno. Um carro em sentido contrário não lhe deu sequer tempo de travar.

“Enfiei-me diretamente. Bati no carro e com a cabeça no para-brisa. Dei um mortal por cima dele. Aí vi a minha vida andar para trás, porque quando vejo o carro em cima da curva e ia 50/60 km/h na bicicleta, senti-me muito próximo de sair deste mundo”, revive.

Nas duas situações esteve hospitalizado e recuperou. Não sem que as sequelas ficassem marcadas no corpo. O ombro direito nunca mais foi o mesmo. Ainda assim, nada que o impeça de fazer o que mais gosta na vida.

"Quando vejo o carro em cima da curva e ia 50/60 km/h na bicicleta, senti-me muito próximo de sair deste mundo"

Certo é que este sábado antes das 7h00, António Malvar estará junto à saída do ferry em Tróia para mais 200 quilómetros de bicicleta. Uma tradição que já o “extravasou” e que pela dimensão que ganhou promete perdurar além da sua própria vida.

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  • José Manuel Teixeira
    17 dez, 2023 Cascais 10:55
    António, será sempre uma honra participar no seu Evento mais histórico efetuado no País ontem estive lá pela 4vez muito dificil pelo vento contra até Sagres 72anos 7h33m para o Ano lá voltarei se Deus kiser apenas desejo lhe a maior VIDA ao SR. e restante familia 1 Grande Abraço e Boas Festas e até para o ANO 24

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