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Siiri Milhazes. Na URSS quem praticava religião "não podia ir para a universidade"

17 mar, 2024 - 23:54 • Aura Miguel

Em entrevista à Renascença, Siiri Milhazes revela o seu percurso de conversão, cujo dinamismo prossegue, com desafios permanentes e uma “sensação estranha, mas agradável e feliz”.

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Entrevista a Siiri Milhazes
Ouça a entrevista de Siiri Milhazes à jornalista Aura Miguel

Nasceu na Estónia, no final dos anos 50 do século passado, quando a sua terra-natal ainda integrava a União das Repúblcicas Socialistas Soviéticas (URSS), estudou em Moscovo e casou com o seu colega português José Milhazes. Nesses anos 80, a Bíblia era proibida na universidade e os cristãos vivam na clandestinidade. Décadas mais tarde, decidiu batizar-se e casar pela Igreja.

Entrevistada pela Renascença, Siiri Milhazes revela o seu percurso de conversão, cujo dinamismo prossegue, com desafios permanentes e uma “sensação estranha, mas agradável e feliz”.

Como é que conheceu José Milhazes?

Eu fui estudar para Moscovo porque queria estudar Filosofia e, nesta altura, na União Soviética, havia a tática de não ensinar a Filosofia nas repúblicas. Deste modo, só era possível estudar Filosofia em Moscovo ou em São Petersburgo, para, assim, juntar todos e meter as ideias que era preciso na cabeça das pessoas.

No fundo, era para as controlar melhor?

Sim, é isto o que a Rússia sabe sempre fazer muito bem.

A Filosofia também desperta algumas inquietações…

Pode ser que desperte, mas a tática de ensino era muito diferente, baseada no marxismo-leninismo e na crítica de outras filosofias. Ora, nós ainda não tínhamos as bases das outras filosofias e já fazíamos críticas que demostravam o que tínhamos que aprender e o que achar de cada Filosofia.

E, nessa altura, a Siiri era ateia, agnóstica ou não tinha inquietações religiosas?

É difícil responder, porque na União Soviética não podíamos ser religiosos. Quem estava ligado à igreja, não podia ir estudar para as universidades, era proibido. Então eu, por exemplo, não fui batizada, mas a minha mãe foi e todos os meus avós também. Por isso, a educação foi feita em casa, com as cortinas fechadas. E a única altura, na Estónia em que todas as pessoas iam à Igreja, era no Natal. Fomos sempre controlados. Nessa altura, as professoras de escola ficavam ao lado da Igreja a anotar quem lá estava ou não estava, mas, como havia sempre muita gente, não conseguiam fazer represálias porque não se podia mandar embora todos os alunos da escola.

E festejavam o Natal?

Nós sempre festejámos o Natal em casa, tínhamos a árvore de Natal e comidas especiais também. E o mesmo acontecia na Páscoa. Por isso, as minhas lembranças de religião são mais ligadas aos cheiros da comida (risos).

E os seus pais?

Os pais tentavam falar pouco, para não trazer problemas para casa. E nós não sabíamos nada, nada.

E assim continuou na universidade?

Sim, porque nós nem podíamos ler a Bíblia na universidade, porque também era proibido… Só no 3.º ano do curso é que era possível.

Em que anos é que frequentou a universidade?

Nos anos 80, quando ainda existia União Soviética, apesar de na Estónia já terem começado movimentações para tentar sair da URSS, mas sem sucesso.

Nessa altura era crente?

Eu posso dizer que sempre acreditei em Deus, mas não de uma forma regular e organizada. E, para mim, agora também é difícil.

É difícil introduzir-se numa comunidade, é isso?

É difícil, não na religião, mas, quando a pessoa vive num país que não é o seu, primeiro, precisa de se adaptar na vida e isso não é fácil, tudo isso demora tempo.

E como surgiu o desejo de se batizar?

Primeiro, batizamos as crianças, quando já eram grandes. A nossa filha já tinha 10 anos e o filho tinha sete. E isto aconteceu para responder a um pedido da mãe do José.

Foi na Rússia ou em Portugal?

Foi cá em Portugal. Doía-me muito ver a mãe do José sofrer porque, para ela, nós éramos pessoas sem alma. Então, eu disse ao José que, uma vez que íamos batizar os filhos, talvez fosse bom o batismo também para mim. Ele disse “ok, fazemos tudo junto mas, desde já, começas a comportar-te como uma católica”. Ora, para isto, eu não estava pronta.

E então, como foi?

Decidimos batizar as crianças, eles foram para catequese, tiveram a formação necessária, mas eu fiquei de lado porque não entendia muito bem o que significava “comportar-se como uma católica”. O tempo passou e, sinceramente, comecei a sentir uma necessidade, talvez relacionada com a minha família. Ou seja, o meu marido é religioso, os meus filhos vão ser batizados e eu, agora, o que vai acontecer comigo? (risos)

Pediu ajuda a alguém?

Pedi à minha grande amiga Fátima para ela me ajudar neste processo e posso dizer que, neste processo, o meu marido ficou perplexo.

Porquê?

Na realidade, devia acontecer só o batismo, mas antes da celebração do batismo, num último encontro que tive com o padre João, fui com o José e o padre perguntou se nós não pensávamos também em casar, pois seria melhor assim… Tinha toda a lógica, não é? (risos) José disse que sim. E eu também disse que sim, mas foi-me muito difícil. Fiquei a pensar, durante dois meses, se conseguiria fazer isso.

Achou a fasquia muito alta?

O processo exige assinar alguns documentos. E quando eu assinei, depois de ler todas as perguntas que me foram feitas, fiquei a pensar se poderia cumprir tudo aquilo. Por exemplo, perguntava: “você tem a noção de que este casamento não pode ser dissolvido?” Ora, até aquele momento eu pensava que tudo decorria ao sabor da vida, “se quero, vou-me embora, se não quero, não vou” e que só valia a minha vontade. Foi muito difícil. E posso dizer que foi tão difícil que quase nos divorciamos. Então José disse: “Olha, se não consegues, não consegues, fica assim, tal como está, pronto.” Mas, não sei explicar, na véspera já não tinha dúvidas.

E como foi a celebração?

Foi tudo no mesmo dia, no mesmo momento. E agora é assim, agora não tenho escolha (risos)

Portanto, recebeu de uma só vez o batismo, a primeira comunhão e o matrimónio... Foi uma série de sacramentos. Foi isso que a assustou?

Não foi ser tudo junto, o que me assustou mesmo foi outra coisa. É que eu sou uma pessoa cumpridora: se eu prometo alguma coisa, tento cumprir qualquer coisa que seja na vida. E tenho grande sofrimento se prometo e não faço. Por isso, assustou-me o não poder divorciar-me, se houvesse necessidade. Talvez vos seja estranho entender isto, mas para mim foi um grande passo entender que eu não podia reclamar contra tudo.

No fundo, a pessoa tem liberdade para se divorciar, à luz de Deus é que não, porque é para sempre.

Para mim, não, porque é só no civil que posso divorciar-me, mas pela Igreja não. E se, pela Igreja, não posso, então, este problema está resolvido, não existe outra opção. Eu não teria pedido para me batizar e casar pela Igreja se não tencionasse cumprir.

E, depois, o que é que aconteceu?

Depois, não foi difícil. Foi fácil. Foi bom, foi muito bom. Posso dizer que agora tenho uma sensação diferente, mas não consigo dizer se é melhor ou pior. Mas sinto esta obrigação, sim.

Mas o resultado não é só uma obrigação. Na verdade, mudou alguma coisa? Encara as questões da fé e Deus de maneira diferente?

Encaro de maneira diferente, mas encaro isto como uma obrigação que não é difícil, mas uma obrigação que eu prometi. Então eu tenho de o fazer, é uma responsabilidade que quero cumprir, sobretudo, no casamento, porque nem sempre a vida é fácil. Agora, faço tudo isto com mais calma, aceito as coisas, não quero mudar para direita ou para esquerda e estou mais paciente com as outras pessoas, talvez seja isto.

Sente uma companhia diferente depois destes sacramentos todos?

Sinto. Na realidade, eu esperei que, no momento do batismo, acontecesse alguma coisa a mostrar-me que a vida é diferente; ou algum sinal, como todos esperam que Deus apareça e mostre alguma coisa e tudo fica mais evidente… Não, no momento do batismo, não aconteceu. Mas no momento do casamento, sim. Quando o padre João meteu a sua mão nas nossas, eu senti como se fosse um parafuso a furar as mãos: foi uma sensação estranha, muito agradável e feliz, sim.

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