11 out, 2024 • Manuel Fúria
Têm reparado ultimamente nas traseiras dos automóveis com que se cruzam nos itinerários habituais? Para além do ocasional reclame publicitário nos transportes públicos, não há nada digno de nota. Em Portugal (como no resto da Europa) não temos por costume afixar adornos que nos permitam saber o que vai na cabeça de quem conduz ao nosso lado. Foi sempre mais ou menos assim. O hábito de colocar adesivos nos carros é um daqueles elementos da cultura popular americana que, apesar de surgir amiúde nos filmes e séries que consumimos, não vingou por cá. Desconfio que o problema seja de escala: tendo em conta que Portugal é tão pequeno, alguém que investe demasiado no seu carro é um doido varrido que mais vale vigiar.
Para nós, europeus, a vastidão americana é inconcebível. De outro mundo. Estamos habituados a chegar com rapidez aos sítios. Talvez seja por isso comum ouvirmos aqui e ali, algum conhecido manifestar o desejo de um dia atravessar os Estados Unidos de carro – trata-se de uma dimensão que serve na categoria das grandes aventuras.
Não surpreende então que o meio-de-transporte-próprio possua um carácter tão particular num país que para além das dimensões impossíveis, também se distingue pelo seu proverbial individualismo. Se andamos muito de carro e percorremos grandes distâncias lá dentro enfiados, então que nos reconheçam na nossa singularidade: o nosso bom humor, a crença na Salvação, uma preocupação com florestas ou a sobrevivência das baleias, um apoio a uma candidatura presidencial, como o tipo que tentou assassinar outra vez o Trump em Setembro, e tinha um autocolante de apoio à dupla Harris-Waltz.
As excepções que em Portugal confirmam a regra, correspondem a militâncias do arco-da-velha: só assim se explica que para as escassas rotas que a maior parte faz todos os dias, alguém se dê ao duplo aborrecimento de aplicar um autocolante e pôr-se a jeito de ser identificado como defensor de uma causa qualquer. É que para um português dos nossos dias, mesmo que dias agitados, a eventualidade de ser arrancado ao anonimato da multidão continua a ter o apelo de uma praia inglesa em Janeiro.
Quem são então os doidos varridos que usam do tempo que têm para personalizar as viaturas? Nos anos 90 eram os monárquicos com as armas reais sobre o pacífico azul e branco da Monarquia Constitucional, nas traseiras de Audis e Volvos, mais tarde, ao volante de Twingos e Ibizas, surgiram os evangélicos com o peixe estilizado dos primeiros cristãos. Depois (e sempre), os aficionados das corridas de toiros nos seus Landcruisers (facturados como despesa de projecto à conta dos fundos europeus para a agricultura), orgulhosos da ibérica silhueta do animal do seu coração. Agora, mais do que seria desejável, encontramos, da 2ª Circular à VCI, membros de uma sinistra associação chamada I.R.A. (Intervenção e Resgate Animal), identificados por um Pitbull de extremidades angulares, precedido das três letras da organização terrorista irlandesa; se isto não está feito para meter medo, disfarça bem.
Como tenho alguma simpatia pelos três primeiros grupos, posso afirmar com conhecimento de causa que, entre todos, é do último que devemos guardar prudência. Os monárquicos assumidos são hoje pouquíssimos, os evangélicos pouquíssimos são, os aficionados querem é que os deixem em paz.
Se grandes males se deduzem de pequenos sintomas, a normalização dos doidos varridos do nosso tempo serve-nos como uma janela escancarada a partir da qual podemos assistir às grandes correntes de decadência que o atravessam. Voamos sobre ninhos de cucos. Esta é a gente que nos fez acomodar o vocabulário a uma terminologia que inverte o que é próprio do homem, com o que é próprio do animal: “Adoptar” em vez de “Ficar com”, “Hotel” em vez de “Canil”, “Almoçar” em vez de “Comer”, “Mamã” em vez “Dona”. Trata os animais como elementos da família (muitas das vezes os únicos) e sob o impulso do preenchimento de buracos existenciais, antropomorfizou a natureza do próprio bicho. Este é um expediente que as empresas do sector, apostadas que estão num marketing de apelo hiper-sentimental, exploram para lá do enjoo.
O Papa Francisco notou este movimento num discurso de Janeiro de 2022: "Muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm apenas um, mas têm dois cães, dois gatos. Sim, cães e gatos tomam o lugar das crianças.". Eu tenho notado, mais do que desejaria. Há uns tempos levei o cão à veterinária aqui da rua e a senhora perguntou-me se enturmava com os “manos” - como o resto dos cachorros da ninhada foram despachados em sede própria, estes “manos” eram os meus filhos.
Devo esclarecer, no entanto, que aprecio o costume. Eu próprio tenho fixadas umas armas do Reino de Portugal (na sua versão legitimista), e um daqueles Pês que se usavam antes das matrículas passarem a ser brancas. Certamente não fará de mim entusiasta de milícias armadas, tampouco membro de um escuso grupo de vigilantes. Na máximo serei dado a uma certa delicadeza visual e a ideias que, conquanto anacrónicas para muitos, são inofensivas. O pior é quando não são.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.