08 abr, 2016
Num artigo publicado em 2014 na revista científica "Imago Mundi", Joaquim Alves Gaspar e Henrique Leitão, dois investigadores do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (Universidade de Lisboa), debruçam-se sobre um problema muito antigo na história da cartografia: como é que Mercator chegou ao seu famoso mapa de 1569? A projecção de Mercator, o mapa em que os meridianos são linhas verticais e os paralelos linhas horizontais espaçados de acordo com uma regra específica, é ainda hoje a forma "standard" de calcular rotas de navegação. É tão "óbvia" e "natural" que nos esquecemos de que nem sempre foi assim, que antes do Século XVI as coisas eram mais complicadas.
Mercator deu-nos um novo mapa mas não nos deu a explicação de como lá chegou. Estamos assim perante um "mistério" que tem animado os meios da História da Ciência desde há mais de um século: como é que Mercador resolveu o problema? Várias teorias têm sido propostas. A de Gaspar e Leitão não é a primeira; mas pela reacção que o mundo académico lhe tem dado é provavelmente a teoria correcta.
A "demonstração" proposta por Gaspar e Leitão é sumamente interessante: comparando com mapas posteriores, vemos que o mapa de Mercator inclui vários erros de localização. Mais: a dimensão dos erros varia de forma sistemática com respeito à latitude (os erros são tão maiores quanto mais próximo dos polos nos encontrarmos). O que Gaspar e Leitão mostram é que a tese que propõem, isto é, o modelo matemático que segundo eles esteve na base do mapa de Mercator, explica muito melhor os erros de medição do que as teorias alternativas até agora propostas.
O trabalho de Gaspar e Leitão (que entretanto foi também publicado, em versão mais curta, na "Newsletter of the European Mathematical Society") é importante por vários motivos, dos quais destaco dois. Primeiro, mostra como a História da Ciência em Portugal é uma área que "dá cartas". Porventura não terá sido sempre assim, mas é certamente agora. Concretamente, o "mistério" histórico resolvido pelos cientistas portugueses corresponde a um dos problemas por resolver mais importantes da história da cartografia (para não dizer o mais importante).
O segundo motivo da importância desta descoberta relaciona-se com o tal modelo matemático que, segundo Gaspar e Leitão, esteve na origem da projecção de Mercator: o trabalho do grande matemático português Pedro Nunes. Em 1537, Pedro Nunes publicou uma série de trabalhos, dois dos quais tratam dos problemas matemáticos relacionados com a navegação e cartografia. Nesses trabalhos, Nunes introduz pela primeira vez as rotas loxodrómicas (uma rota que intersecta os medianos sempre com o mesmo ângulo). Termos e conceitos que ainda hoje em dia são usados. As notícias da descoberta de Nunes espalharam-se rapidamente pela Europa. Em 1541, Mercator já desenhava rotas loxodrómicas no seu globo (num globo, as rotas loxodrómicas formam uma espiral que converge para os polos). Passar de um globo para uma representação plana da terra utilizando rotas loxodrómicas é um passo natural. Aliás, na projecção de Mercator as rotas loxodrómicas são linhas rectas (o que facilita muito o processo de navegação).
Tudo leva a crer que está substancialmente resolvido o “mistério” da projecção de Mercator. Parabéns aos dois ilustres cientistas da Universidade de Lisboa. E parabéns ao país que viu nascer e viver um dos maiores matemáticos do Século XVI.