08 mar, 2023
Uma das dimensões estruturantes de qualquer projeto político é a da relação entre o Estado e a sociedade civil. A direita liberal quererá menos Estado, mas não preconiza, a não ser no libertarianismo mais radical, o seu desaparecimento na desregulação completa da sociedade. A esquerda democrática quererá mais Estado, mas não preconiza, a não ser no comunismo mais empedernido, que ele deva coletivizar e nacionalizar tudo, fazendo desaparecer a independência da sociedade.
Do ponto de vista teórico, portanto, o Estado português, hoje regido por um governo socialista - embora o partido, que é de alguns, se confunda em demasia com o Estado, que é (ou deve representar) todos - deveria porventura preconizar um projeto estadualmente mais intervencionista, mas sem atropelar a independência da esfera civil, agindo supletivamente a esta e operando na economia, na sociedade ou no direito com um efeito corretor e auxiliador. O pacote «Mais Habitação», porém, parece ir num outro sentido - o sentido em que o governo, escorado pelo partido e auto-presumido dono do Estado, se permite legislar numa dinâmica de ataque ao direito de propriedade e à liberdade dos proprietários. Acreditava-se que a defunta «Geringonça» radicalizaria o PS. Ora, o PS está a mostrar que quer ultrapassar pela esquerda os antigos parceiros, erodindo-os eleitoralmente e tribalizando o país entre eles (o governo PS), e (todos) os outros, (quase) apupáveis sob o fantasma do Chega.
“A propriedade é um roubo”, diziam os velhos anarquistas. O governo parece pensar o mesmo, ao arrolar compulsivamente os proprietários de casas a fazerem, a expensas suas, a política social de habitação que compete ao Estado. Anos e anos de políticas erradas, de dissipação de dinheiros públicos, de contradições legislativas que minam a confiança e o investimento deram nisto - Há falta de casas? Pois o governo vai obrigar os proprietários a arrendamentos coercivos, as rendas, velhas ou novas, a serem congeladas ou a atividade de alojamento local a ser desfeita, entre uma miríade de prepotências… ou impossibilidades práticas para os recursos do Estado.
Há sinais óbvios de que António Costa e a sua voluntariosa ministra da Habitação podem ter ido longe demais, num enorme passo em falso. O mal-estar social e económico em muitos estratos do funcionalismo público tradicionalmente leal ao governo é audível e vai em crescendo: os professores, os funcionários judiciais, os maquinistas da CP, os enfermeiros e médicos, etc. Muitos destes cidadãos também são pequenos proprietários, que investiram poupanças no imobiliário, para si, para os seus filhos, para obterem uma renda, para comporem o salário. A propriedade – o seu direito, a sua previsibilidade, a sua estabilidade – é basilar em democracia e no sentimento de autonomia e liberdade da sociedade civil que a tem. Uma tão violenta política, por parte de um governo-Estado feito agente imobiliário coercivo, mexe com tantas e tão arreigadas sensibilidades, que isso poderá ser fatal para António Costa.
Talvez enamorado de si mesmo, ou em fuga para a frente quando muito parece correr mal, o atual primeiro-ministro negligencia o mandamento básico de que os portugueses querem e precisam de “viver habitualmente”. Não uso a máxima na sua velha versão salazarista, mas no sentido em que lhe deu Mário Soares quando, nos idos de 1975, intuiu o que Álvaro Cunhal não quis ver: que a classe média portuguesa, por ter muito a perder, se volve em molhe humana contra qualquer deriva radical estatista que ponha em causa os seus interesses, segurança, modo de vida ou pé-de-meia. Soares percebeu isto, e ganhou o PREC. E o PREC de Costa, onde o (e nos) levará?