30 nov, 2022
As sociedades ocidentais do “indignómetro” mudam de indignação consoante a causa ou a minoria identitária, cultural, climática, política ou social do momento. Perante o mundial de futebol no Qatar, o politicamente correto colocou o ponteiro do “indignómetro” no vermelho, embora o atropelo aos direitos humanos tenha ali, como noutras petro-ditaduras do Golfo, um lastro que já dura há muito. Acho a indignação justa, sobretudo se nela englobarmos também a corrupta FIFA, e se nos indignarmos retroativamente (hélas…) em relação ao mundial na Rússia, em 2018, ou a outros, anteriores, cujas localizações foram ética e politicamente dúbias.
Entretanto, por estes dias, reparei em notícias que - essas sim - deveriam indignar o mundo, provenientes não do Qatar, mas do Afeganistão, que não lhe fica muito longe e é parte integrante do enorme e complexo mundo islâmico. As esquerdas antiamericanas e anti NATO, com particular destaque para as nossas, portuguesas, andaram anos a fio a denunciar a ingerência de Washington em Cabul como uma guerra suja, iniciada pelo “louco” George Bush contra o poder talibã em 2001, e só resolvida pelo “santo” Joe Biden em 2021. A verdade está ao lado. A intervenção de 2001 justificou-se pelo cenário de guerra criado pelo 11 de setembro e devolveu o Afeganistão à comunidade internacional, removendo o totalitarismo talibã que o governava. Sob Hamid Karzai (2001-2014), e Ashraf Ghani (2014-2021), o país encetou um caminho de reconciliação social, consolidação de instituições democráticas e progresso material que foi positivo, embora ensombrado pela enorme fatura humana (150.000 mortos) da guerra que a nova República Afegã teve sempre de travar contra os insurgentes talibãs que permaneceram à espreita. A presença ocidental, via NATO, foi um garante de ordem – e era o único garante da ordem em 2021, quando Biden, apesar dos avisos em contrário, determinou a retirada final, quando já se sabia que os talibãs não iriam cumprir o cessar-fogo. Na versão das esquerdas, era o imperialismo americano que ocupava o Afeganistão, e que tinha de sair, para deixar de “sugar” os afegãos.
Com a bola a rolar no Qatar, a BBC veio revelar o que outras fontes já ecoavam: caído de novo nas mãos dos talibãs em agosto do ano passado, o Afeganistão está num horrendo buraco negro. Os direitos humanos são ali letra muito mais morta do que no Qatar. As mulheres desapareceram – inúmeras física e literalmente! A maioria dos homens está desempregada. A fome é tamanha e tão medonha que há muitos pais a sedarem os filhos (bebés incluídos) com comprimidos para que, sonolentos, não chorem por não terem alimento. Há reportagens de jovens adultos que vendem órgãos (um rim por 3 mil €) para pagarem comida ou dívidas que contraíram para alimentar a prole. Há relatos de famílias onde as filhas mais novas são vendidas a cobradores de dívidas ou para casamentos precoces, em troca de…comida. Alguns dos entrevistados em segredo pela BBC confessaram ter pão seco, que molham em água para o tornarem mais tragável, como única refeição. A desumanidade de tudo isto é inenarrável!
Os bárbaros que mandam a partir de Cabul desculpam-se com as sanções internacionais e prometem miríficos empregos nas minas ou num novo gasoduto. A verdade é que removido o legítimo governo afegão pela revanche talibã, que o recuo da NATO permitiu, o novo “Emirado Islâmico” local é terra onde tudo falta, desde as liberdades ao mais básico da vida. Todavia, tudo visto, o “indignómetro” das esquerdas não funciona em relação ao Afeganistão. Porquê? Porque, afinal, talvez a razão estivesse com Bush e não com Biden; mas isto estraga-lhes a narrativa.