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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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A historicidade do populismo português

18 mai, 2022 • Opinião de José Miguel Sardica


A recorrência da pandemia, os horrores visíveis na Ucrânia e a pressão económica da espiral inflacionista e da crise energética e de abastecimentos ensombram a vida presente, em Portugal ou lá fora.

Esta conjuntura, que se soma a tendências já mais profundas de contestação popular à opacidade das democracias representativas, de cisões sociais entre os de “cima” e os de “baixo”, e de confrontos culturais entre nacionalismos identitários e multiculturalismos fraturantes, cria, na política, o fenómeno generalizado de procura de pretensas soluções salvíficas, e de proliferação da oferta de populismos que lhe pretende dar resposta.

Escreveu um dia Ralf Dahrendorf que “o populismo é simples; a democracia é complexa”. A complexidade desta é óbvia; mas a simplicidade daquele é enganadora, porque o populismo – a maldita palavra da moda – é um conceito híbrido e muito fluido: pode ser ideologia, movimento, discurso, síndrome, protesto, contracultura; pode ser uma ameaça desabrida, conspirativa e iliberal à democracia, mas também um instrumento para democratizar e “repopularizar” essa mesma democracia.

Vêm estas palavras a propósito de um livro de publicação muito recente, cuja leitura me parece muito útil nestes tempos conturbados - «Populismos. Lá fora e cá dentro», de José Pedro Zúquete, com a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

A primeira parte da obra realiza uma análise teórica do fenómeno global do populismo, abordando a antiguidade de várias vagas populistas no passado mais ou menos recente, a dicotomia (que no fundo aproxima, mais do que separa), entre populismos de direita e de esquerda, a forma como os media e as redes sociais são instrumentos e repositórios privilegiados dos populismos ou como, no “momento populista” particularmente acerbo do presente, os críticos anti populistas são mais severos contra a deriva cesarista à direita do que com a deriva protestante à esquerda.

A segunda parte da obra é a mais interessante. José Pedro Zúquete parte à descoberta do populismo português, trabalhando uma tese que é contraintuitiva, a saber, que esse fenómeno não é uma “novidade” recente, e que o estudo do populismo em Portugal precisa de ser menos amnésico e mais histórico. Os estilos, as práticas, os temas ou o vocabulário populistas sempre existiram, e existem há muito, em sucessivos contextos político-sociais. Mesmo descartando os proto populismos do mestre de Avis ou de D. Miguel, a galeria contemporânea é vastíssima, entre o “populismo militar” de Sidónio, Humberto Delgado, Spínola ou Otelo, o “populismo regenerador” de Sá Carneiro, do PRD, do PSN, dos CDS’s de Basílio, Monteiro e Portas, do Bloco de Esquerda, de Fernando Nobre e de Marinho e Pinto, e o “populismo local” de Alberto João Jardim, Avelino Ferreira Torres, Isaltino Morais, Fátima Felgueiras ou Valentim Loureiro.

Dir-se-á: mas então este livro normaliza o populismo, ao relativizar Ventura e o Chega como encarnação última de um fenómeno longo? Não. “Trocar” – e cito – “o lugar comum do populismo que veio para ficar pelo lugar incomum de dizer que o populismo sempre esteve cá, nunca foi embora e, por isso, nunca precisou de regressar” (p. 223) não relativiza os problemas que o seu sucesso eleitoral revela. Simplesmente, mostra aos supostos pioneiros da causa e do estilo que outros, lá atrás, também um dia acharam que eram o futuro; obriga os críticos do populismo, na direita, no centro e na esquerda a repararem que os seus campos políticos já foram (ou ainda serão) assim absurdos; e realça que os muitos problemas que ciclicamente produzem populismos cá dentro não são novos e tardam a desaparecer, se é que não estão a agravar-se.

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