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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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A futebolização da política

12 jan, 2022 • Opinião de José Miguel Sardica


A verdadeira campanha eleitoral começará apenas no dia 17, sem arruadas, com poucos comícios, muitas redes sociais e os inevitáveis tempos de antena, em televisão ou rádio.

Ainda falta mais de uma quinzena para as eleições de 30 de janeiro, convocadas pelo presidente da República para clarificarem a paisagem e permitirem “virar a página” a caminho do futuro. A verdadeira campanha eleitoral começará apenas no dia 17, sem arruadas, com poucos comícios, muitas redes sociais e os inevitáveis tempos de antena, em televisão ou rádio. Entretanto, os canais televisivos, generalistas ou por cabo, já presentearam o público eleitor com uma vintena de debates a dois, estando calendarizados, para as TV’s e rádios, debates coletivos, com os partidos com representação parlamentar ou com os outros, pequenos, que a isso aspiram.

Não cuidarei, nesta crónica, do conteúdo dos ditos; interessa-me mais a forma e o que a rodeia, porque isso diz muito do que é a política hoje e do que (não) é fazer política em Portugal.

O que têm sido os debates frente-a-frente? 25 minutos que passam a correr, com moderadores sem pulso ou, pelo contrário, querendo lançar uma infinidade de perguntas e pistas, e com parelhas de líderes partidários interessados em a) denegrir o adversário, b) impedir que ele fale, c) responder quando querem e só ao que querem, d) produzirem o soundbyte ecoável, e e) cantarem vitória e passarem ao seguinte. Rodeando a peleja verbal propriamente dita entre a dupla de candidatos, há o “pré-match” (as câmaras filmando a chegada aos estúdios e o “aquecimento”, de vozes e cumprimentos), há a “flash-interview” (modelo CNN Portugal e não só, de apanhar um comentário ou adenda rápida de cada um ainda no estúdio), e há depois, tarde ou noite fora, o comentário do debate, com painéis de especialistas, críticos ou elogiosos, que dão notas, analisam como os contendores se posicionaram em campo, como “encaixaram verbalmente” um no outro, que “jogadas” levavam, que “táticas” usaram, como “venceram” o “adversário” ou como, surpreendidos pela “técnica” do outro, se deixaram “encurralar” à “defesa”, sem hipóteses de “contra-atacar”. Por que razões os canais televisivos dão mais tempo ao comentário do que ao debate é opção (será publicitária?) que não se entende. Pior do que isso: debates tão telegráficos podem animar as emissões, mas não prestam bom serviço à democracia.

Juro que não exagerei. Tenho assistido a algumas destas maratonas televisivas. A coreografia, o imaginário, a linguagem e a representação simbólica da arena político-partidária futebolizaram-se (e não será só porque o candidato do Chega era mestre nestas lides); na verdade, a lógica do espetáculo gladiador, de equipa contra equipa, com um árbitro bom ou mau e público ululante, cujos porta-vozes são os politólogos de painel, invadiu tudo. Substância? Mensagem? Conteúdo? Programas? Propostas? Nada vai além da espuma da frase rápida ou do desmontar caricatural do adversário, como um jogador exímio nas transições, que desarma limpo ou faltoso, que rouba a bola, a retém e, numa progressão mágica, faz golo. Por isso mesmo, antecipamos, vemos e comentamos cada frente-a-frente com o entusiasmo ou o tédio de um Mundial de Futebol: Hoje há um Camarões-Austrália, mas é só para cumprir calendário! Viram o Paraguai-Croácia? Futebol fraco! Há que aguardar pelo mais competitivo Uruguai-Holanda. Amanhã haverá um importantíssimo combate Rio-Costa, perdão, um Inglaterra-Alemanha ou um Itália-Espanha.

Mas ainda é só um treino, para fazer rodar jogadores (aliás, argumentos). Todos contra todos equivale a um “play-off”; aí se verá quem é “competitivo”.

Aceitam-se apostas sobre quem, finalmente, irá erguer a taça após a final de dia 30 – e se essa vitória será “limpinha” ou se, na secretaria, ainda alguém interporá recurso.

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