09 nov, 2023 • Rui Miguel Tovar
Hoje o Jogo de Palavra tem duas novidades: é no Porto em vez de Lisboa e é um médico em vez de um jogador. Bem-vindo doutor Domingos Gomes a uma rádio que também é sua, soube há pouco que fazia um apontamento regular no programa do António Sala e da Olga Cardoso.
Obrigado eu pelo convite. O apontamento era semanal, de três a cinco minutos. A ideia era deixar um pequeno pensamento sobre os cuidados a ter sobre a idade, a alimentação, o andar a pé. Lembro-me de uma vez de estar a fazer o programa desde o Algarve, na zona de Lagos. Também me lembro bem da loucura de popularidade do programa. Muito gente a ouvir, muita gente a captar. Mais à frente, também comecei a falar na televisão sobre a mesma temática e de refeições que agora estão na moda.
Qual era o seu guia espiritual para aconselhar os portugueses?
Os exercícios nos livros do [Kenneth] Cooper. Uma vez, fui ao Rio de Janeiro com o FC Porto e havia uma marginal enorme [Copacabana, Leblon, Ipanema] onde fomos andar a pé em modo exercício. Foi todo um acontecimento. Estamos a falar de 1977-78.
Foi o início deste FC Porto, no fundo. Com Pedroto.
Exacto. Olhamos para trás e pensamos como é possível partir-se do Porto para o mundo.
Verdade. E qual foi o seu último treinador?
Oliveira.
Então não foi penta?
Só fui tetra. O José Carlos Esteves continuou no FC Porto, com o Fernando Santos, e eu dei o salto para a Assembleia da República.
Que categoria. Tenho uma pergunta sobre a final europeia 1987. No lance entre o 1:1 e o 2:1, o Madjer está a ser assistido por Domingos e entra em campo. É obra sua?
O Madjer estava a ter uma dor própria dele e era muito sincero, referia-se sempre às dores como ‘malade’, o que é normal para um jogador de fintas e de repentes. Naquele instante, depois do 1:1, sentiu uma dor nos gémeos. Nós fomos lá, eu mais o Rodolfo Moura, e demos gelo com aquele spray. Ele, às tantas, diz ‘laisse laisse’, que é ‘deixa deixa’. Empurramo-lo para o campo, ele pega na bola, faz duas maluqueiras e centra para o 2:1 do Juary.
E, já agora, como era o Juary?
Lembrava-me do Juary desde 19-e-pouco, fomos à Venezuela para um torneio particular com Real Madrid, Barcelona mais Inter e aparece lá um indivíduo com os joelhos valgos [metidos para dentro] que nos mete três golos num instante. Era um indivíduo fantástico, sempre dispostos a fazer o sacrifício e dava sempre o mesmo, entrasse de início ou na segunda parte. Claro que nos esquecemos do papel do Futre em 1986, partia aquilo tudo.
Ninguém se esquecerá de Futre.
Quando levava, levava a sério. A lesão mais grave que teve foi uma entorse, que pôs o doutor Espregueira-Mendes a avaliar a operação ao tornozelo, que obrigaria a uma paragem de meses. Por dois centímetros, conseguimos recuperá-lo sem a operação. Ele [Futre] era tão gaiato na maneira de estar como era gaiato na maneira de jogar. Era uma criança. Vou revelar uma coisa: quando estávamos a disputar o Mundialito 1987, em Milão, informaram-me da saída do Futre ao pequeno-almoço. O Rodolfo disse-me ‘o Futre foi embora’. Comecei a chorar. Era um indivíduo com uma maneira de estar engraçada. Vinha para o departamento médico e adormecia. Ia dormir para lá. Depois acordavam-no com um balde de água. Ahahah.
Já falámos de jogadores da frente e lá atrás havia Mlynarczyk.
Era reservado e muito familiar, mas zangava-se. Dentro de campo, quando via que as coisas não estavam bem, discutia. Há uma cena com ele na Dinamarca, com o Bröndby.
Num campo enregelado?
Um parêntesis, descobri as botas que levei a Donetsk na campanha europeia da Taça das Taças 1983-84.
Maravilha.
Ora bem, o Mlynarczyk tinha-se lesionado no metacarpo num lance com o Chalana, do Bordéus, nas Antas. E estava sem jogar há algumas semanas, mas continuava a treinar, fosse tratamento ou a correr. Estava mobilizado e ainda lhe faltava uma semana para a recuperação total. É o presidente quem me diz ‘é preciso o papa na baliza’. Chamavam-lhe o papa, porque era polaco [João Paulo II]. E porquê importante? ‘os gajos [Bröndby] vão fazer jogo aéreo e o Mlynarczyk é forte nesse registo.’ Falei novamente com o Espregueira-Mendes, que era uma pessoa fácil de lidar e um médico difícil de lidar. Mesmo assim, insisti e ele disse sim. Arranjámos umas luvas especiais e o Mlynarczyk foi treinar. Sentiu-se bem e depois jogou. Fez defesas muito importantes num campo assim-assim, se tivesse batatas não me admirava nada.
Por falar em lesões e nessa final europeia 1987, o que dizer de Lima Pereira e Gomes?
São lesões ingratas. O Lima Pereira parte o braço porque um adversário passou por ele com demasiada força e o Gomes vai de carrinho e fica com o pé preso numa rede, durante um treino. Mas havia um outro lesionado: Jaime Pacheco. A sua lesão já levava meses, desde Janeiro, acho. Antes da final, eu e o Espregueira-Mendes avaliámos se metemos ou não.
E?
Não, era um risco.
E o treinador?
O Artur Jorge não se metia nas opiniões médicas. Escrevíamos um relatório e aquilo que estava escrito era sagrado. Se escrevêssemos apto, jogava. Se escrevêssemos não apto, ficava de fora.
E a final da Taça Intercontinental, em Tóquio?
Começámos a ganhar aqui, no Porto. Na altura, estava como médico da TAP. Estava no hub do Porto, agora fala-se muito no hub.
Isso quer dizer o quê?
Era médico das tripulações, as permanentes e as transitórias, que iam e vinham. Fizemos estudos profundos sobre a viagem a Tóquio e preparámos o plantel, a equipa técnica e a direcção. Agora imagine isto, é preciso ter o treinador na mão, o presidente de acordo e a equipa de bom humor. Falámos com a NASA e com o doutor Castelo Branco, médico da medicina aeroespacial da TAP. Aquilo não era fácil, a viagem de avião. Não era, nem é. Já tinha tirado uma pós-graduação de medicina aeroespacial em Paris – ia à segunda-feira, na folga do FC Porto, e foi assim durante seis meses.
Chegaram a Tóquio e?
Antes de Tóquio, fomos falar com o Ivic. Dissemos que era preciso isto e aquilo, com os relatórios todos em cima da mesa. O Ivic ouve aquilo tudo, diz umas palavras em jugoslavo e faz, fiiiiiiiiiscchhhhhh, foi tudo para o chão, tudo pelo ar. Fiquei parvo e saí da sala, o senhor Teles Roxo que acalme o Ivic. O Telles Roxo e o presidente, já agora.
E acalmaram?
Claro, se o estudo indicava que aquela era a melhor táctica. Os jogadores até acharam piada, tomavam iogurte às três da manhã.
E então partiram para Tóquio?
Tudo calmo, do primeiro ao oitavo dia.
O que se passou ao oitavo?
Vínhamos do treino já dentro do autocarro e, por uma coisa de nada, o Madjer pegou-se com o Celso. Uma coisa de ocasião. O que é aquilo diz para o departamento médico? A parte da transferência para o nervosismo e a ansiedade, a adaptação ao sono. Estávamos no caminho certo, essas birras tinham de acontecer antes do jogo.
E o jogo em si?
Foi ao nono dia. E foi uma catástrofe. Neve por todos os lados. Os pitons de futebol nada têm a ver com os de râguebi e só os mais duros jogam perante a adversidade. Depois é caso a caso, como ver o André com as lágrimas nos olhos porque lhe doíam os pés. Ao intervalo, metemos álcool em papéis e improvisámos uma fogueira individual para todos os jogadores. As luvas e os collants foram abandonados, porque estavam encharcados e pioravam a situação.
E depois?
Eu estava encostado com a cabeça para trás no banco de suplentes. Se o FC Porto perdesse, o indivíduo que apanhava com o cacete era eu. Escapei-me dessa, após prolongamento. Quando acaba o jogo, choro compulsivamente e é o Rodolfo quem me arranca do banco para tirar as fotografias a praxe. Mas também aí o presidente passou mal, ele vivia muito o jogo. Só me lembro do roupeiro Brandão vir por aí acima e dizer-me ‘o presidente está à rasca’.
Resolveu, está visto.
Resolvi, sim. Isto tudo para dizer que a aventura para Tóquio foi estudada ao milímetro. Desde a viagem em si à comida, claro. Aliás, quando fomos para Donetsk em 1984 e Kiev em 1987, levámos tudo daqui, até hortaliça. E o vinho do Porto, para os jornalistas e a tripulação. E essa mania de querer saber tudo é minha e também de outros homens do FC Porto, como o Pedroto. Sempre que havia congressos internacionais, ele mandava-me para ver o que havia de evolução.
Muito obrigado pelo testemunho, grande momento.
Obrigado eu. Deixe-me só dizer uma coisa: o primeiro jornalista que me entrevistou foi o Homero Serpa, d’A Bola, numa digressão ao Canadá. Estávamos a ir de Montreal para Toronto de autocarro e íamos a conversar. Ele ouviu-me e disse ‘tenho de escrever, você é um puto, está a dizer coisas muito bonitas e importantes, você tem de me deixar escrever essa história’. E lá fomos para o hotel. Outra coisa engraçada: o FC Porto foi primeiro clube português a dar vacinas da gripe aos jogadores. E chegámos a uma conclusão: mais de 50% de dores de garganta e afins desapareceram. Por isso mesmos, começaram todos a levar a vacina, fosse a senhora da limpeza, o sapateiro ou o porteiro. Melhorámos as condições de vida e subiram-se os níveis de saúde, sempre importantes numa equipa de futebol a querer mais, mais e mais.