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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Um cristão sabe perder. Mais: sabe que tem de perder

02 dez, 2022 • Opinião de Henrique Raposo


Um filho implica menos um álbum, menos uma tournée, e isto custa numa idade em que a força da vida ainda está dentro de nós a pulsar. É difícil esvaziar este magma que ferve, mas julgo que Manuel Fúria consegue isso na vida e na música. Eu, outro perdedor, respondo com um Ámen.

A primeira faixa do novo álbum de Manuel Fúria, “Os Perdedores”, é cristã da cabeça aos pés. Fúria faz parte de um grupo de autores que cruza o universo pop/rock com o cristianismo. Nick Cave, claro, vem logo à cabeça, mas há mais: Cash, U2, Arcade Fire, Samuel Úria e Tiago Cavaco. Aliás, a minha cabeça vê em Cavaco, Úria e Fúria uma santíssima trindade da música portuguesa. Bom, essa tal primeira faixa, “Nem fome, nem mundo”, diz-nos algo que é a essência do cristão, sobretudo do cristão que chega à idade da responsabilidade, dos filhos, a idade em que amar os outros deixa de ser uma frase bonitinha e passa a ser o dia-a-dia. A frase, que é o refrão, é esta: “eu tenho de me esvaziar”.

Faz lembrar a música do “diminuir” do Samuel Úria, mas com uma diferença. Se na faixa de Úria o autor ainda está em luta com essa diminuição, se o ego ainda está a lutar, se ainda é difícil aceitar que a salvação passa por largarmos os nossos sonhos para cuidar de outras pessoas, na faixa de Manuel Fúria o autor já passou esse Bojador moral e teológico e já sabe que, sim, é mesmo preciso diminuir, é mesmo preciso esvaziar o ego em nome dos outros, para começar dos nossos filhos pequenos – não por acaso, a faixa é quase um diálogo com uma filha; uma voz infantil aparece a perguntar “e agora, pai?”.

A voz de Fúria neste álbum já não tem aquela rebeldia rockeira do Fúria de há dez anos, mas não deixa de haver aqui outro tipo de rebeldia, uma rebeldia cristã de quem sabe que está contra a maré e que aceita passar o resto da vida a nadar contra essa maré. Não se trata apenas de uma rebeldia intelectual e estética de quem assume uma posição clássica ou conservadora sobre a vida e sobre a música (a rebeldia rockeira está hoje em dia num conservador como Manuel Fúria, um autor que faz música sobre a dureza do casamento, dos filhos, do envelhecimento). Remar contra a maré também é perceber que ter filhos é perder tempo para escrever ou fazer música. Um filho implica menos um álbum, menos uma tournée, e isto custa numa idade em que a força da vida ainda está dentro de nós a pulsar. É difícil esvaziar este magma que ferve, mas julgo que Manuel Fúria consegue isso na vida e na música. Eu, outro perdedor, respondo com um Ámen.

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