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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Decência

04 nov, 2022 • Opinião de Henrique Raposo


A decência é um eco permanente que nós escolhemos ou não ouvir. Ou seja, podemos escolher ouvir ou não ouvir aquilo que a igreja apelida de espírito santo.

Vale mesmo a pena continuar nas perguntas simples e decisivas da catequese. E há nesta lista aqui uma pergunta fatal: o que é ser bom ou bondoso? O que é ser decente? Ela, a decência, existe no mundo? Se sim, existe de que forma? A meu ver, podemos dizer que a lei da decência está inscrita na própria textura do mundo, tal e qual a lei da gravidade, embora, claro, não seja tão óbvia. A decência é um eco permanente que nós escolhemos ou não ouvir. Ou seja, podemos escolher ouvir ou não ouvir aquilo que a igreja apelida de espírito santo.

Mas permitam-me que use outro palavrão: direito natural. O direito natural está inscrito na nossa natureza. O que é o direito natural? É a ideia ou certeza de que todos os seres humanos têm direitos humanos, direitos inalienáveis que ninguém pode rasgar, o direito a não ter medo, o direito a não ter fome, o direito a orar ao seu deus, o direito a juntar-se com quem quiser. Quando um destes direitos é rasgado, nós sentimos no coração que algo está errado – se fazemos ou não alguma coisa contra essa injustiça, bom, isso é outra conversa.

Deixem-me dar dois exemplos práticos que me marcaram nos últimos tempos. O livro “Zeitoun” é um relato do que se passou em Nova Orleães a seguir ao furacão Katrina. Conta a história de um americano de origem muçulmana, Abdul Zeitoun, que, apesar de ter sido um herói (salvou pessoas de afogamento certo), é tratado pelo estado militarizado como um potencial criminoso. É preso sem justificação, é destratado, perde direitos e garantias, é tratado como um inimigo interno num processo opaco e ditatorial. Como é que os EUA, o país das liberdade e da ausência de estado em tantas áreas, desenvolveu tentáculos securitários que só fazem lembrar ditaduras? A mulher de Abdul, Kathy, sofre com o desaparecimento do marido e com as prisões sem culpa formada que rasgam por completo o direito natural. E há um momento que a quebra por completo, um momento simbólico e à partida menos violento do que outros episódios. Ela já tinha pensado que ele tinha morrido, ela já andara à procura dela em vários sítios.

Este momento mais dramático surge quando uma polícia lhe diz que a audiência judicial a que ele será submetido é “informação privada”.

“- Senti que me estavam a romper, diz Kathy.

Que aquela mulher, uma desconhecida, pudesse conhecer a aflição dela e o desespero dela, e simplesmente negar-lhe isso. Que pudesse haver tribunais sem testemunhas, que o governo pudesse fazer desaparecer pessoas.

- Isso deu cabo de mim”.

O que Kathy sentiu foi a anulação do direito mais básico: o habeas corpus, a ideia de que só podemos ser presos mediante uma acusação formal e pública. O que deu cabo de Kathy foi ver a anulação da decência mais básica no rosto de outro ser humano.

O outro exemplo, ficcional com base na realidade, está na série Narcos: o polícia interpretado por Pedro Pascal, Javier Pena. Porque é que ele não desiste de combater aquele crime? Porque é que ele é tão insistente? Ele até é um anti-herói, não é uma criatura santa. Porquê? Porquê é que ele não faz como tantos outros, porque é que não reduz o combate ao crime a um mero jogo? Porque não aceita o descaramento do mal, do crime, dos traficantes, não aceita que eles façam as coisas tão às claras e de forma tão impune. Aquela impunidade tão clamorosa é outro rasgão na decência que ouvimos. Ele escolhe ouvir.

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