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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

A família não é o sangue

17 set, 2021 • Opinião de Henrique Raposo


Não surge amor fraternal entre pessoas que não têm qualquer tipo de laço sanguíneo? O sangue, meus amigos, é sobrestimado.

Fala-se demasiado dos laços de sangue. O sangue define-nos? A genética define-nos? Nós amamos um filho porque ele foi gerado pela nossa genética ou esse amor é, na verdade, outra coisa: uma escolha? Um filho adotado é menos amado do que um filho genético? O amor depende das semelhanças genéticas, isto é, só vou amar um filho se ele for parecido com o meu rosto ou com o meu feitio? E não podemos gostar de um afilhado como gostamos de um filho? E o que dizer das novas relações geradas pelo novo tipo de família? Não surge amor fraternal entre pessoas que não têm qualquer tipo de laço sanguíneo? O sangue, meus amigos, é sobrestimado.

Este é um dos pontos que torna belas as séries de Sally Wainwright, argumentista inglesa, autora de “Gentleman Jack”, “Happy Valley” e “Last Tango in Hallifax”. Quero apontar a luz para esta última, que passou há pouco na RTP2: é a história de dois viúvos, Celia (Anne Reid) e Alan (Derek Jacobi), que se apaixonam já nos setenta. Descobrem que o caso da vida não tem de ser vivido sem amor. Claro que este casamento causa um tumulto nas filhas de ambos, e este é o tema central de Sally Wainwright. Caroline (Sarah Lancashire), filha de Célia, entra em choque com Gillian, filha de Alan. Caroline é uma betinha que trabalha num colégio privado, Gillian é uma rude agricultora - tudo está montado para a questiúncula. Mas, com o tempo, Caroline e Gillian descobrem que, apesar de não terem laços de sangue, são na verdade duas irmãs. Desenvolvem aos quarenta uma relação fraternal. Aliás, toda a série está pensada para defender a ideia de que a família tem diversas formas e que o que interessa não são os laços de sangue, mas os laços afetivos que são escolhidos em liberdade. Um laço de sangue sem um laço afectivo real é uma relação burocrática. A genética, meus caros, é sobrestimada.

Em “Happy Valley” Sally Wainwright também coloca as personagens a desafiar o sangue. Sarah Lancashire interpreta aqui a polícia Catherine Cawood. Cawood tem em mãos um enorme dilema: criar um neto que é fruto da violação da filha. E reparem que este nem é o ponto central do dilema.

Como é que se ama um neto que simboliza a violação da nossa própria filha? Cawood está disponível para criá-lo e amá-lo, apesar de tudo, apesar de a criança ser uma mnemónica andante da violação e do suicídio da filha. Falta, porém, o resto: o violador é um terrível sociopata que assola a região, o vilão da história. Há um debate entre personagens sobre a origem deste tipo de mal. Qual é a origem da crueldade de um assassino em série? Há quem diga que só pode ser o produto do contexto e da educação e, por isso, há reabilitação possível; há quem diga, portanto, que Tommy Lee Royce (James Norton), o sociopata, é cruel porque não foi amado pelos pais, porque esteve numa escola violenta, etc. Com anos e anos de experiência na polícia, Catherine Cawood acredita noutra coisa: o mal nasce na pessoa, é orgânico, endógeno; há pessoas que nascem com esta predisposição para a crueldade. Aliás, porque é que pessoas amadas e sem problemas sociais acabam por se revelar malévolas? Ora, se Cawood acredita que o mal está na própria carne, então tem de admitir que o seu neto tem algo da maldade intrínseca do pai. Todavia, apesar deste fantasma sanguíneo, ela acredita que o amor superará o sangue. Não foi mais ou menos isto que nos ensinou Jesus Cristo? Não somos biologia e laços de sangue, somos outra coisa.

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  • Ivo Pestana
    17 set, 2021 Madeira 10:46
    Concordo. Família é quem nos respeita e gosta de nós. Muitas vezes e infelizmente, só sabemos o valor da família na partilha dos bens.