13 mar, 2020
Watchmen é uma série interessante, mas demasiado intelectualizada. As personagens perdem espessura dramática, porque o argumento está enrodilhado numa complexa teia de teorias e visões sobre o tempo, por exemplo. É mais um bazar geek do que um conjunto coerente de personagens. Neste sentido, faz lembrar os filmes e as séries dos manos Nolan: a inteligência analítica acaba por secar a nossa empatia com as personagens, tornando impossível a suspensão da descrença. Seja como for, Watchmen é um desafio estético e intelectual, sobretudo devido à presença do Dr. Manhattan.
Para abreviar, Dr. Manhattan é um homem que, devido a um acidente nuclear, sobe até à categoria de deus. Não é muito diferente de um deus grego como Zeus ou Poseidon. Ele sente o tempo à maneira da eternidade, isto é, vive em simultâneo o passado, o presente e o futuro. Ora, num dado momento, Dr. Manhattan parte para um exílio especial numa das luas de Júpiter, Europa, para ali criar um novo Éden para uma nova espécie de seres humanos que ele próprio desenhou - Um Génesis 2.0. Dr. Manhattan deseja uma humanidade sem os vícios da original. Só que, como ele próprio reconhece, o seu novo paraíso é desinteressante. Ao contrário do Génesis original, o erro aqui não está nos seres humanos, está na divindade. E qual é esse erro? Ao expulsar o mal deste seu paraíso, Dr. Manhattan também expulsa a liberdade humana. Os nossos seres humanos da lua Europa não têm vontade própria, não têm livre arbítrio, limitam-se a bajular a sua divindade como súbditos adorando um tirano. Os súbditos de Dr. Manhattan vivem num mundo perfeito e harmonioso, não podem escolher o mal, mas o preço dessa utopia exterior é uma distopia interior: não tem livre arbítrio, estão ontologicamente impedidos de escolher entre diferentes alternativas.
Com toda a sua artilharia de BD pós-moderna, Watchmen acaba por regressar à velha teodiceia de Leibniz: o mal existe no mundo, porque os homens são criados para a liberdade.
Deus, o verdadeiro e único Deus, cria-nos enquanto seres racionais e datados de livre arbítrio. Temos liberdade de escolha. Tragicamente, essa liberdade de escolhe contempla o mal. Nós somos livres para escolher o mal. Não seríamos realmente livres se não pudéssemos escolher o mal por decreto teológico.
Deus não é um ditador totalitário, é um pai. Um mundo sem pecado é um mundo sem liberdade. Portanto, este é mesmo o melhor dos mundos possíveis. Um mundo com sofrimento, sim, mas com liberdade humana. A alternativa, a utopia analgésica do Dr. Manhattan, é sempre construída numa enorme hecatombe que sacrifica a liberdade humana.