13 set, 2019
Uma pastoral da cultura procura a fé em locais e tribos inesperados. Ficar no remanso da ortodoxia do claustro não é um caminho pastoral, é preguiça. Há que procurar a nossa herança em espaços menos óbvios. Por exemplo, há que esmiuçar a cultura pop à procura da herança católica. Ela está lá.
Nem católicos nem ateus estão habituados a pensar no cantor pop ou rock enquanto depositário da fé e da cultura bíblica. Mas eles existem.
A fé esconde-se debaixo de muitas guedelhas roqueiras. Olhe-se por exemplo para Patti Smith, que passou por Portugal neste verão. A sua autobiografia, "Apenas Miúdos", é uma grande partilha de uma autora católica que nunca perdeu a fé. É uma partilha de uma pessoa que é católica antes de ser artista, que é artista porque é católica; uma artista construída na brutal honestidade da oração e da confissão.
Esta distância entre Patti e o “meio” sente-se quando ela descreve o desprezo que sentiu pelo egoísmo de Jim Morrison; sente-se na distância evidente em relação à obra (vazia) de Warhol. A obra de Warhol, diz Patti, reflectia uma cultura descartável que ela queria evitar: "preferia um artista que transformasse o seu tempo em vez de o espelhar”. Num momento particularmente irónico, Patti compara o séquito de Warhol a um "estábulo”. Diz-nos ainda que as relações de poder dentro deste cortejo, a famosa mesa de Warhol no Max's, não eram diferentes das relações de poder do “liceu”. A turba cool do Max’s só reparou na jovem Patti quando ela apareceu com um corte de cabelo radical.
A crítica ao meio nem sequer poupa o seu grande amor e personagem principal deste livro, Robert Mapplethorpe.
- Tu estás à procura de atalhos, Robert!
Patti achava que Robert tinha demasiada pressa em entrar naquele meio "social" da arte, e que essa pressa tinha um custo elevado: o pacto faustiano que Robert acabou por desenvolver com o mal, ou melhor, com uma estética negra que suga a esperança do mundo. No quarto que partilhavam, ambos rezavam pela alma de Robert: ele para a vender no pacto faustiano, ela para a salvar.
Se ele quis o pacto com Mefistófeles, ela manteve-se na esperança e na fé. Patti viu sempre na fé a génese do seu impulso criativo, que, na época, ainda não estava na música mas as artes plásticas e a poesia: “o fio de palavras impelidas por Deus que se transformam num poema, a camada de cor e de grafite riscada sobre a folha de papel que amplifica o movimento d’Ele”. “O que eu queria”, diz Patti, “era honestidade”. A fé ajudou-a nessa fidelidade à franqueza, mesmo quando essa verdade desafia a credulidade. Tal como sucede noutro livro de registo autobiográfico, Devoção, Patti Smith não esconde aqui os momentos de premonição, os presságios negros (sonhos durante o sono ou em consciência) sobre a morte de Mapplethorpe. É preciso coragem para assumir esta linguagem escondida do mundo.