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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Myanmar, uma triste história

05 fev, 2021 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


Aung San Suu Ky, no passado, opôs-se corajosamente à ditadura militar que mandava na Birmânia, hoje Myanmar. Recebeu o Prémio Nobel da Paz. Em 2015 entrou para o governo, que liderou informalmente. Desde essa altura não se opôs publicamente ao genocídio dos Rohingyas, uma minoria muçulmana. E quase desculpou as barbaridades infligidas pelos militares a essa minoria. Agora foi destituída, presa e processada pelos militares.

Num mundo onde as ditaduras militares se multiplicam, o recente golpe em Myanmar (antiga Birmânia) à primeira vista parece ser apenas mais um. Mas trata-se de uma derrota especial e dramática da democracia. No centro do drama está Aung San Suu Ky, que recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1991. Agora foi destituída, presa em casa e processada pelo Exército, alegando que ela possuía um aparelho eletrónico ilegal - um rádio...

Aung San Suu Kyi é viúva de um inglês, o que pela constituição de Myanmar a impediu de ser primeira-ministra. Esta disposição foi intencionalmente colocada no texto constitucional pelos militares. Texto que, aliás, concede aos militares amplos e invulgares direitos – está-lhes reservado um quarto dos lugares de deputados no parlamento e cabe ao Chefe do Estado Maior nomear os ministros da Defesa (que concentra todos os serviços de informação), do Interior e das Fronteiras. Ou seja, mesmo quando em 2015 os militares aceitaram a vitória eleitoral de Aung Kyi, Myanmar não se tornou uma democracia normal – era uma ditadura militar disfarçada de democracia.

A evolução de Aung San Suu Kyi, agora em prisão domiciliária, suscita grande perplexidade. Filha do herói da independência do país, Aung San, esta senhora opôs-se corajosamente à ditadura militar, o que lhe valeu quinze anos de prisão. Quando, finalmente, os militares aceitaram que ela e o seu partido tinham vencido as eleições de 2015, Aung Kyi tornou-se líder do governo, embora formalmente não fosse primeira-ministra.

Aí começaram novos problemas. Mundialmente vista como uma grande defensora dos direitos humanos, Suu Kyi não travou a cruel repressão de uma minoria muçulmana, os rohingyas, pelos militares. Nem dela se ouviu uma palavra de crítica a essa “limpeza étnica”, como a classificou o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos. O que disse foi para desvalorizar esse atentado à ética e prometer vagas melhorias que nunca aconteceram. Suu Kyi negou as acusações das ONGs que denunciaram a cruel ofensiva do Exército e qualificou algumas delas como "fabricações". Ao mesmo tempo, proibiu a entrada na região de jornalistas independentes e observadores dos direitos humanos.

Num país maioritariamente budista, aos rohingyas é negada a nacionalidade birmanesa. São como que pessoas inexistentes, alvo das maiores barbaridades por parte das forças armadas de Myanmar. Mais de 700 mil rohingyas fugiram para o Bangladesh, onde mal sobrevivem num quadro de crise humanitária. Não por acaso, muitos desses refugiados aplaudiram agora a destituição da suposta defensora dos direitos humanos.

Entretanto, foram a retirados a Aung San Suu Kyi vários prémios internacionais relacionados com direitos humanos. E algumas personalidades que haviam recebido o Prémio Nobel, entre as quais o arcebispo anglicano Desmond Tutu, subscreveram uma carta aberta solicitando que lhe fosse retirado também o Prémio Nobel da Paz de 1991.

Se Suu Kyi se sentia sem força política para travar o quase genocídio dos Rohingyas deveria ter-se demitido do governo. Assim, sofre a dupla humilhação de ser afastada pelos militares e de ter prejudicado gravemente a causa mundial dos direitos humanos. Uma triste história.

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