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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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A Misericórdia e o homem que sabe chorar

23 mar, 2023 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Bergoglio acredita que as democracias só o são nas pessoas que pensam tão bem quanto sentem.

Estando inicialmente circunscrita à esfera teológica e tida como o conceito unificador deste pontificado, a Misericórdia é uma emoção que, em contacto com a limitação e a precariedade, coloca o sofrimento diante da esperança, numa promessa de sanação e desenvolvimento efetivos, pois este movimento do coração acompanha-se da diligência e do dinamismo da ação e da transformação ética, o que lhe confere, conforme a perspetiva o Papa, o peso atuante - avaliador, regulador, promotor - de uma categoria política.

A Misericórdia já presente na experiência pastoral de Bergoglio na Argentina e surge da reflexão sobre a sabedoria mística e condição mítica do Povo. Destinada a promover uma onda de reforma social estrutural – que se tornará continental no documento de Aparecida – é uma preparação previdente, e um teste, a uma nova maneira de fazer a Igreja enunciada no II Concílio do Vaticano: em Francisco tudo é íntimo, pessoal e coloquial, da mesma maneira que tudo é universal, político e transformador, “revolucionário”. De facto, tudo é ação de Cristo, na ternura, consideração e misericórdia perante as muitas extravagâncias e transgressões da pessoa, que não sendo necessariamente condição, são história.

Bergoglio/Francisco, atento leitor de Guardini, fez o seu tirocínio em condições de grande risco institucional e de intimação constante, testemunhando longamente como as democracias maduras estão hoje sujeitas a tornarem-se, de tão arredadas dos interesses e do interesse da população, meros artefactos nominais.

Na raiz está o risco civilizacional primeiro, da perda do sentido de Deus, que deixa os homens e as mulheres abandonados a si mesmos e, de alguma forma, cegos às realidades pela ofuscação da autorreferencialidade. Mas são também os riscos de sociedades inteiras, movidas por interesses individuais egoístas e egocêntricos, a competição desenfreada que daí deriva, afastando do jogo os mais fracos e os menos aptos, assim como a emergência de uma crença mágica nas soluções tecnológicas, como se as considerações de ordem ética não fossem razoáveis nem a vida nos impusesse um sem número de escolhas que escapam às evidências estatísticas, a perda do sentido da política.

Bergoglio acredita desde cedo que as democracias só o são nas pessoas que pensam tão bem quanto sentem, impressionáveis com o rosto dos dramas reais e que agem generosamente para um bem comum construindo a múltiplas vozes, pois a realidade é rica e pluriforme, desafiadora na sua intensa diversidade, e sem proximidade desumanizam-se facilmente na comodidade e defesa do seu poder.

Com as dificuldades que encontram a implementação dos Direitos Humanos e os princípios da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, e o enclausuramento da Solidariedade, esvaziada pela ótica dos “muros” e do familismo, o Papa reconhece que necessitamos de aprender uma Cultura do Encontro, que cuide da fragilidade óbvia das pessoas e dos Povos, ancorada nos princípios da Misericórdia: Acolher, Proteger, Promover e Integrar. É, pois, necessário um novo olhar, uma visão dolente e compassiva, a partir das periferias, tão ignorantemente ignoradas, ou não haverá mudança das estruturas injustas, apenas alterações cosméticas.

Com o documento programático do Papa e das suas declinações nos âmbitos cruciais, a privilegiar (família, conversão, juventude, ecologia integral, mundo pós-pandémico), a Misericórdia surge, então, como “a” proposta de transformação do mundo – evitando que se cometam os erros que promovem a desigualdade e a insegurança – e que significará ter todos os seres humanos não só como destinatários de políticas dignas e equilibradas, mas também protagonistas dos processos de conversão de que tanto carecemos. Todos os cidadãos e cidadãs do mundo devem ter a possibilidade de erguer uma Voz, de se fazer ouvir e de se responsabilizar pelo bem comum, pois cada ser humano é um “chão sagrado” dotado de dignidade, a partir do qual o bem pode germinar.

Como a Misericórdia como categoria política sublinha a necessidade de “construir” a polis a partir das margens, de onde tudo se vê e experimenta melhor, mais amplamente, assim se evitarão as decisões escudadas cobardemente em confortáveis modelos abstratos, escassamente fundamentados e a priori enviesados por interesses particulares e/ou momentâneos.

Assim, os processos de decisão/avaliação política incorporam o potencial de olhar as realidades através dos princípios de reflexão/decisão conducentes ao discernimento: o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece sobre o conflito; a realidade é mais importante do que a ideia; o todo é superior à parte. São os instrumentos de recuperação da política nobre e generosa, necessários na identificação e resolução das grandes feridas da vida comum: o individualismo exacerbado, a tecnocracia e, visto a partir do mundo ainda em desenvolvimento, o neoliberalismo, cruel e colonizador, conducentes a uma cultura da divisão, do descarte e da indiferença, na qual, quem não possui bens, poder, não conta.

Assim, a Misericórdia surge como “o” padrão da decisão, como a referência segura para as políticas públicas, nas quais o Serviço é o caminho da inovação criativa e o padrão da eficácia e da eficiência, num contexto em que a intervenção política deve ser a cooperação, o instrumento que facilita a reconciliação e construirá a paz numa sociedade equitativa, mais livre e confiável. O futuro exige o exercício de justiça e de re-constituição das relações a que a só a Misericórdia conduz.

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