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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​As duas Espanhas

29 nov, 2023 • Opinião de José Miguel Sardica


Pedro Sánchez montou um governo Frankenstein.

Em 1914, José Ortega y Gasset cunhou uma imagem dicotómica adequada à leitura de toda a história da Espanha contemporânea - a da tensão e confronto entre a "España Vital" (do progressismo das massas democráticas), e a "España Oficial" (do tradicionalismo das elites conservadoras). Aplicando a leitura do filósofo madrileno, a Segunda República e a democracia (sobretudo se à esquerda), foram regimes da Espanha Vital, enquanto a monarquia de Afonso XIII e o franquismo foram regimes da Espanha Oficial. Ortega y Gasset morreu em 1955 e já não viveu a “transición” e a alternância entre a direita e a esquerda do regime constitucionalizado em 1978 - e não é certo em qual das Espanhas inscreveria os fenómenos dos nacionalismos autonómicos catalão, basco, galego ou andaluz, que nasceram à direita, como reação conservadora ao centralismo de Madrid, se acantonaram depois à esquerda, contra a castelhanização da Espanha levada a cabo por Franco, e prosperaram na democracia vigente no país vizinho em eterna barganha negocial com os sucessivos governos da Moncloa.

O recente desfecho do impasse governativo espanhol, com a reinvestidura de Pedro Sánchez na presidência, significa, porventura, a cristalização de outra dicotomia: a da Espanha indecente versus a Espanha decente. Os termos são fortes, mas é assim que qualifico a caixa de pandora que Sánchez agora abriu.

O PP de Alberto Núñez Feijóo ganhou - repito, ganhou - as eleições legislativas de julho. Coligindo todos os apoios possíveis (e nenhum colocava em causa a fundamental unidade política e territorial da Espanha), não reuniu maioria absoluta para a investidura… porque, do lado de lá da barricada, Sánchez berrou “no pasarán” (mas quem: o Vox, ou a escolha democrática dos espanhóis?) e aceitou colocar a Moncloa à disposição dos independentistas, desde que o ajudassem a reinvestir-se no poder, num “side-car” que oferecia boleia ao Sumar (ex-Podemos).

Em Portugal tivemos a Geringonça; em Espanha Pedro Sánchez montou um governo Frankenstein. É uma coligação de oito partidos, numa plataforma política comprometida com o que o próprio, antes das eleições, garantiu que não faria (!): a amnistia aos condenados pelos referendos independentistas ilegais na Catalunha (em 2017), e a promessa de um plebiscito, se necessário com um mediador internacional, à independência da Catalunha e do País Basco. Contrastando com a decência de Núñez Feijóo, Pedro Sánchez levou o oportunismo político ao extremo da indecência e da ilegalidade. Num país onde o “Pacto del Olvido” vinha sendo remexido pelo PSOE desde o tempo de Zapatero, o grande salto em frente de Sánchez coloca o governo na mira da chantagem permanente de criminosos condenados - os etarras do EH Bildu e o Junts per Catalunya. O separatismo catalão (ou basco) viola a letra da Constituição espanhola, por todos votada em 1978; e é espantoso que, em nome de uma egoísta e narcísica sobrevivência política pessoal, seja o inquilino da Moncloa a abrir a porta ao ataque à soberania e integridade da Espanha.

A ideia de que foi cometida uma indecência em Espanha nem é só minha. No ABC, Alfonso Guerra, antigo n.º 2 do PSOE, foi terminante ao afirmar que a esquerda “perdeu o norte e esqueceu a sua missão”, que não soube “defender a maioria de minorias insaciáveis”, e que a “delinquência” e “cobardia” de Carles Puidgemont (o líder do Junts, foragido em Bruxelas há anos), jamais deveriam ter sido branqueadas pela traição de Pedro Sánchez à história e à memória do velho socialismo espanhol.

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