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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Carta aberta, em doze pontos, a um juiz

24 out, 2017 • Opinião de Graça Franco


O meritíssimo cometeu aqui um enorme ultraje aos que fazem da Bíblia como um todo o livro sagrado da Revelação. Para a próxima esqueça, que os crentes agradecem.

Meretíssimo,

Se não tivesse lido o acórdão produzido por Vossa Excelência, naquele puro juridiquês que nos força a ler e reler frase a frase para confirmarmos realmente o sentido de cada uma, não teria acreditado.

Eu não conheço V. Excelência e também não conheço em detalhe tudo o que se terá passado no julgamento em primeira instância. Admito que a síntese não tenha sido perfeita e isso não tenha facilitado o trabalho de V. Excelência, tal como o meu, por isso limito-me a um resumo breve que só pode pecar por defeito quanto aos vários crimes de “violência doméstica” que ficaram amplamente provados e transformaram num inferno de injúria, perseguição, violência física e psicológica, chantagem e ameaças de morte a vida de uma mulher. Crimes cometidos ao longo de vários meses sobre a vítima quer pelo ex-marido quer pelo ex-amante com requintes de malvadez que roçam a loucura de ambos.

Na parte que se percebe da história a coisa não deixa, no entanto, grande margem para dúvidas:

1. Uma mulher trai o marido (coisa que eu não aprecio do ponto de vista moral, tal como V. Excelência, embora já não esteja certa que o meritíssimo partilhe comigo idêntica repulsa e condenação no caso contrário, ou seja, quando é o homem que trai a mulher. Mas isso não vem ao caso.)

A mulher põe termo à relação com o amante e aproximadamente dois meses depois põe também termo à relação com o marido e separa-se deste.

2. Fica abundantemente provado que o ex-amante não a larga mais e transforma a vida da mulher num inferno com perseguições, esperas diárias no local de trabalho, “sms” constantes de dia e noite, insultos e ameaças de morte e chantagem desde que esta acaba a relação.

3. O marido não fica provado que a persegue, mas também não deixa de a ameaçar através da filha dizendo (não se prova a forma exacta), ou que a sorte da mãe foi não estar no “salão” cada vez que lá foi com intenção de a matar (versão da vítima) ou que já mais do que uma vez “pensou matá-la e suicidar-se em seguida”. Prova a experiência que sempre que estes pensamentos ocorrem, e por vezes se concretizam, a sequência é mesmo esta: nunca se suicidam antes de matar a vítima, o que pouparia uma vida e muitos aborrecimentos. Embora, eu, talvez como o Sr. Juiz, também condene e tente evitar o suicídio. Pelo sim pelo não, o homem vai armazenando um verdadeiro arsenal de armas quer em casa quer no local de trabalho. Porque será? Além disso o homem ou entra em depressão ou estava já deprimido e chega a ser hospitalizado (o que também não augura nada de bom…) alegadamente dado o abandono a que foi votado, não estando clinicamente provado a impossibilidade de recaídas.

4. Depois de várias ameaças de chantagem o ex-amante a certa altura avisa uma amiga da vítima que, se aquela não lhe fala nesse mesmo dia, “algo de mal” vai acontecer. Em sua posse encontra-se depois o material que serviria de chantagem. Para que seria?

5. A vítima assim ameaçada acede a ter essa última conversa. É sequestrada, agredida e o ex-amante ainda vai exibi-la frente à casa do marido chamando-o para ele terminar a agressão e provavelmente com a vida da mulher. Por isso é referido nos autos não só como agressor, mas também como cúmplice da agressão praticada pelo marido.

6. O ex-amante presta um último serviço ao ex-marido, manietando a vítima e deixando-a à sorte da agressão do ex-marido com uma moca de pregos, desaparecendo depois do local. A agressão levará 20 dias a curar. A mulher não morreu porque o marido “escorrega” (diria eu “providencialmente”!), e a vítima coloca-se a salvo.

Perante tudo isto, a primeira instância acha que os arguidos estão devidamente reinseridos e por isso condena-os a penas de pouco mais de um ano de prisão e algumas multas que o Ministério Público pretende agravar e sobretudo não permitir que sejam suspensas. Daí o recurso.

7. Vossa Excelência, na sua magnifica autoridade, diz que não há motivos para isso. É pena que não tenha percebido o filme, mas está no seu direito, e no âmbito da sua independência.

8. O que não pode é justificar os factos e a leveza da pena argumentando que o crime de adultério (por acaso cometido pela vítima) é gravíssimo! Quando o que se lhe pergunta é se o repugnante crime provado de violência doméstica perpetrado pelos arguidos não deveria merecer pena maior. Até para que a sociedade, complacente (tal como V. Exa é boa prova) com este tipo de acções ficasse a perceber melhor que não há desculpa possível para este tipo de agressão. Não se julga o adultério, mas a perseguição, a chantagem, as agressões e o homicídio tentado sobre a suposta adúltera pelos ex-companheiros mancomunados entre si….

9. Ficamos sem saber o que o meritíssimo juiz pensa do gravíssimo crime de adultério masculino, mas mais uma vez não vem ao caso. O que sabemos é que classifica o desnorte do marido ofendido como atenuante sem limites e à culpa do seu cúmplice nem se refere. Parece que a vítima passa a ser posse de um através do casamento e do outro pelo consentimento de uma relação extraconjugal. Tendo os dois uma espécie de direito a tirar desforra do abandono de ambos.

Para consolidar a sua posição V.Ex.ª argumenta com três enormidades.

a) Há sociedades actuais onde esse crime é punido com a lapidação da mulher. Pois há. E é caso para perguntar: e daí? No pretenso califado do Estado Islâmico, por exemplo, e noutras sociedades onde a Sharia radical e a barbárie prevalece. Mas - e daí? Imagina o Senhor Juiz que a nossa sociedade pode sequer assemelhar-se? Cita-as como exemplo, de quê?

b) Alega depois que a Bíblia também advoga o mesmo tratamento. Fica-se por aí a saber que V. Excelência, talvez por preguiça intelectual ou porque não é cristão (eu até fico mais confortável que o não seja), fica-se pelo Antigo Testamento e ignora o episódio do Novo Testamento, onde, confrontado com essa mesma situação de adultério, o próprio Jesus salva uma mulher adultera da lapidação. O meritíssimo cometeu aqui um enorme ultraje aos que fazem da Bíblia como um todo o livro sagrado da Revelação. Para a próxima esqueça, que os crentes agradecem.

c) E, por último, ainda acrescenta que as mulheres “honestas”, entre as quais penso que posso incluir-me, são as primeiras a estigmatizar as adúlteras. E daí? Que raio de ideia fará o senhor de mulheres “honestas”? Gente que anda por aí a julgar e a dizer mal dos outros em virtude das respetivas “faltas”, fraquezas, escolhas ou lá o que seja? Fique o meritíssimo a saber que a esse tipo de mulheres se aplica melhor a designação de intriguistas, coscuvilheiras, velhacas, caluniadoras e outras designações pouco recomendáveis e que não aumentam nada a sua probidade junto dos tribunais.

Alega depois V. Ex.ª que os agressores estão integrados na sociedade, arrependidos, e não há risco para a vítima de um regresso a um comportamento no estilo do anterior. Diz o bom senso (que claramente falta a V. Ex.ª) que nada disto prova, antes pelo contrário, que não venham a repetir o mesmo comportamento, quer junto da vítima quer de outras futuras companheiras.

10. Mas diz também V. Exa que esta sentença (vou traduzir o melhor que sei o seu juridiquês) não acarreta o risco de transmitir à comunidade o sinal errado sobre o que a Justiça pretende quanto à aplicação da pena e à penalização do crime. Aqui é que se engana! Claro que o que o seu acórdão faz é criminalizar a vítima, desculpar os criminosos e passar a velha ideia do código de 1886, que V. Exa cita, num último acto de puro desnorte jurídico, embora já não esteja em vigor que: marido traído que mata a mulher (esquecendo de sublinhar a inerente descoberta em flagrante delito, o que não era evidentemente o caso), devia ser sujeito a pena quase “simbólica”, desculpando-se-lhe o estado de “perturbação”.

11. Pois fique V. Excelência a saber que a Comunidade, além de receber o sinal errado em questão de combate à violência doméstica, não pode fazer mais nada a não ser indignar-se. Venho dizer-lhe expressamente que, de facto, fez muito mal à causa do combate à violência doméstica. Eu faço-me disso apenas porta-voz.

12. Precisa V. Exª. de se atualizar rapidamente em matéria de códigos, designadamente nestas matérias. E, se me permite o conselho, seria muito conveniente que passasse a usar objeção de consciência em casos de violência doméstica. Prezo muito a sua liberdade em decidir como lhe aprouver, mas gostaria que a comunidade ficasse, nesta área, preservada das suas péssimas decisões. Para a próxima, se pudesse evitar citações de religiões que desconhece também prestaria um excelente serviço aos verdadeiros crentes e escusaria de nos levar a reboque do seu marialvismo atávico, provavelmente bem-intencionado e evidentemente subconsciente. Não sendo V. Excelência provavelmente culpado e não tendo a sua conduta carácter doloso, seria muito bom que se preservasse da hipótese de repetição. Pode mesmo vê-la como “ocasião próxima de pecado” de que tem o grave dever de afastar-se. Evite, por isso, julgar casos destes.

Atentamente,

Graça Franco

Nota: Não me dirijo à colega que também subscreve o acórdão, porque, não sendo a relatora, dou-lhe o beneficio da dúvida de não ter lido o acórdão confiando piamente num colega experiente. O que, sendo negligente, não será crime.


Comentários
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  • João Titta Maurício
    05 dez, 2017 19:18
    Depois da entrevista do magistrado (e dos demais factos adjacentes), terá Graça Franco reflectido sobre a esparrela em que caiu? Retratou-se? Ou, espantosamente, mantém todas as afirmações erradas e eivadas de preconceitosinhos que aqui expendeu? É importante saber... para se aferir da verdadeira dimensão e qualidade da coragem.
  • Ana Corte Real
    28 out, 2017 Lisboa 12:11
    Excelente artigo. Única ressalva: em Portugal, adultério não é crime (desde os anos de 1970...).
  • António
    27 out, 2017 Lisboa 19:13
    O Sr. Dr. Juiz julgou, está julgado, para isso é que ele é Sr. Dr. Juiz, todas as decisões dos juízes são favoráveis a alguém e desaforareis a alguém, alguém é condenado e alguém é absolvido, em direito não é possível agradar a todos... “é a justiça”, senão não precisamos de Tribunais nem de justiça, nem de Srs. Drs. Juízes. CIVILIZAÇÃO, EDUCAÇÃO, ÉTICA, MORAL, RESPEITO, CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES, CUMPRIMENTO DE CONTRATOS, BOA CONDUTA, etc., são palavras e termos que não fazem parte de muitos seres actualmente, e as consequências estão à vista. No julgamento, Sr. Dr. Juiz analisou, avaliou, julgou e absolveu, segundo a sua formação e a sua educação e exerceu o seu direito de crítica, mais nada! É ESSA A SUA FUNÇÃO, O SEU DEVER! Segundo o actual "conceito" de violência doméstica, a senhora com o seu comportamento é que cometeu "violência doméstica" em primeiro lugar e não o seu marido. Nem se tratam de agressões com lesões graves, mas sim uma resposta legitima e actual. "ORDEM NA BARRACA!", RESPEITO! EDUCAÇÃO! Há pessoas que não têm respeito por elas próprias, não respeitam os outros e depois querem ser “respeitadas” pelos outros! Preocupem-se com Srs. Drs. Juízes, que tomam medidas desajustadas e absolvem, pedófilos, homicidas, violadores, burlistas, ladrões, incendiários e bandidos de colarinho branco, curruptos e alguns políticos, etc., é com esses que devem preocupar-se e não com uma decisão destas, que na sua origem está um comportamento que socialmente e culturalmente, é reprovável e não é digno da condição humana civilizada, nem abona na dignidade e hora, nem sequer da própria visada. POVO, ABRAM OS OLHOS!!!
  • Isabel Maria
    27 out, 2017 Lisboa 16:07
    Bem haja pelo saber e pela coragem. Aplaudo e assino por baixo. IM
  • Filomena
    27 out, 2017 Centeno 12:43
    Texto fantástico! Muito muito bom! Muitos Parabéns!
  • António Fernandes
    27 out, 2017 Macedo 03:31
    Parece-me que alguém pretende o linchamento público de um senhor juiz, profissional competente, pelo que li, e bom conhecedor da sociedade portuguesa. Valores, por onde andais?
  • Fernando
    27 out, 2017 Boston, USA 02:37
    Muito bem escrito, mas existe uma falha, em nenhuma sociedade desenvolvida juridicamente, adultério não é um crime. Religião não é um poder, justiça faz parte dos três poderes executivos.Nunca comcordei com a justiça no meu país de nascença devido a casos como estes, cada um de nós somos donos do nosso corpo para fazer o que entendermos, ninguém tem o direito de nos julgar moralmente.
  • Graça Amiguinho
    27 out, 2017 Pedroso.V.N.Gaia 00:22
    Congratulo-me que , mulheres como Graça Franco , partilhem também de uma opinião que me orgulho de defender sem tibiezas. O melhor artigo que li sobre o assunto . Muito bom !
  • António Ferreira
    26 out, 2017 Fafe 22:07
    Boa noite. Estou em total consonância com a opinião da Graça Franco. Enquanto ser humano, pai de duas filhas, marido, e na minha condição de católico, acho esta decisão judicial... LAMENTÁVEL! Porém... Há duas semanas,aqui em Fafe uma jovem matou o seu companheiro (de 21 anos de idade),esfaqueando-o no pescoço. Ouvida em tribunal na cidade de Guimarães, a agressora foi posta em liberdade, sendo-lhe aplicada como medida de coacção, termo de identidade e residência. Alegadamente, teriam pesado na decisão o facto de a mulher se mostrar arrependida e, ter sido ela a pedir auxilio e a chamar o INEM. Considerando, embora, o facto de se tratar de uma decisão revogável a qualquer momento, a verdade é que esta deliberação gerou revolta e indignação junto de amigos e familiares do jovem morto. Estes afirmam que era ele a vítima de maus tratos, que se tratava de um rapaz calmo e de boa educação. Por ser polémica, tal decisão poderá (esperamos que não),ser indutora de atitudes violentas, ou... quem sabe estimular mulheres, mais vulneráveis, a terem reacções iguais. Pergunto, será que a vida de um jovem é menos valiosa do que a integridade física, (que, sublinho respeito) de uma mulher? Acredito na justiça, certamente haverá no fim condenação para esta mulher, por muitas que sejam as suas razões; NINGUÉM TEM O DIREITO DE TIRAR A VIDA DE ALGUÉM! Gostaria que os responsáveis pela APAV também abordassem estes casos, talvez sejam atípicos mas merecem de todos uma reflexão.
  • Artur Albarran
    26 out, 2017 Bengalore 21:05
    Bom texto como é seu timbre. Apenas discordância em relação à nota final na medida em que a norma jurídica que indica a necessidade de um acórdão ser assinado por mais do que um juiz exige uma decisão proferida por mais de um julgador. Assinar de cruz (se é que o foi) é uma leviandade tão grave como o conteúdo proferido pelo relator ao mesmo tempo que se trata de outra negação de justiça.