09 jan, 2017
Tinha uma alegria que transbordava para fora de si. Para os outros. Fossem eles quem fossem. Tivessem eles as ideias que tivessem. E é pensando precisamente nesse espírito - de um contentamento cheio, completo, honesto - que leio muito do que se escreve com desdém e gáudio nas redes sociais a propósito da sua morte com uma serenidade que, espero, pudesse ser parecida com a sua.
Devo dizer que li coisas inenarráveis neste dias. Vi coisas que julgaria impossíveis (algumas delas ilustradas com imagens de garrafas de espumante). Mas dei por mim a pensar em todo esse emaranhado indigno de revolta e insulto à luz de uma cena magnífica de um filme brilhante dos Monty Python, "A Vida de Brian" (sobre a existência de alguém que nasce no mesmo dia que Jesus Cristo, nas mesmas circunstâncias, e que passa a vida a ser confundido com o Filho de Deus).
Na tal cena - que tem um nome mais ou menos nestes termos: “Antes dos romanos é que as coisas eram boas”- um grupo de rebeldes anti-Roma reúne em segredo e discute formas de contrariar Pilatos. A dado momento alguém diz: “O que é que eles alguma vez nos deram?” e as respostas vão se sucedendo, de forma hilariante: os aquedutos, as estradas, a irrigação, a medicina, a educação, etc., etc., etc.
Muito do que se escreve em tom desrespeitoso sobre Mário Soares por estes dias tem precisamente esta marca - "o que é que ele fez por nós, um filho de gente rica que fugiu para um exílio dourado em França, que se fez político à pressão, que destruiu a vida de milhares de portugueses nas ex-colónias e que sempre fez acordos com tudo e todos para se manter à tona? Sim, o que é que ele fez por nós?"
Eu - que até sou um desses milhares de pessoas a quem o pós-25 de Abril mudou radicalmente a vida - diria que para além de ter evitado uma deriva totalitária, para além de ter ajudado ativamente a criar um sistema multipartidário numa jovem democracia, para além de ter participado (com enorme habilidade política) na resolução de um processo de descolonização monumental para o qual não haveria nunca uma só solução satisfatória, para além de ter conseguido o apoio do PSD para tornar a Constituição da República mais democrática e menos militarizada, para além de ter liderado a entrada do país na Comunidade Europeia, para além de ter inaugurado um exercício da presidência da República com intervenções relevantes em temas sociais, para além de ter, já mais em fim de vida, apontado as falhas graves ao projeto europeu, para além de – num momento em que já mais nada dele se poderia esperar – ter ainda liderado uma campanha cívica em defesa de um Estado mais presente na vida dos cidadãos e para além de ter feito tudo isto sempre e apenas ao serviço de ideias políticas (longe, portanto, das administrações das grandes empresas ou das poderosas instituições bancárias que agora parecem ser, elas sim, o principal objetivo de vida para alguns dos políticos que temos), será verdade, de facto, que Mário Soares não fez grande coisa por nós. Fez pouco, sim. Menos, certamente, do que teria querido.
O filme que usei como referência termina com uma música cujo refrão é o seguinte: “Olhemos sempre para o lado bom da vida”. Se mais nada nos disser, que ao menos a memória de um Mário Soares tolerante, corajoso e divertido nos possa dizer a todos isto.