Entrevista Renascença

Gouveia e Melo diz que serviço militar obrigatório pode ser "ferramenta importante de dissuasão"

20 mar, 2024 - 07:55 • Liliana Monteiro

O retomar do serviço militar obrigatório na Europa é descrito pelo Chefe do Estado-Maior da Armada como "ferramenta importante de dissuasão". Em entrevista à Renascença, o almirante Gouveia e Melo sublinha que se engana quem argumenta que o serviço militar obrigatório dura pouco tempo e de nada serve e recorda que os meios de guerra mudaram e o longe rapidamente se faz perto.

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Gouveia e Melo diz que serviço militar obrigatório pode ser "ferramenta importante de dissuasão"
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O Chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Gouveia e Melo, diz que o serviço militar obrigatório na Europa pode ser uma “ferramenta importante” para fazer face aos perigos que enfrenta em matéria de Defesa.

Numa altura em que em muitos países da Europa se volta a debater a questão da obrigatoriedade do serviço militar, Gouveia e Melo não assume uma posição definitiva contra ou a favor, mas considera, no mínimo, que o modelo de recrutamento deve ser modernizado.

Gouveia e Melo diz que se engana quem argumenta que o serviço militar obrigatório dura pouco tempo e de nada serve. "Muitas vezes, temos a falsa segurança de estarmos protegidos", adverte o chefe da Marinha, lembrando que "hoje não há grandes distâncias e podemos ser rapidamente envolvidos num conflito europeu se não fizermos as estratégias de dissuasão adequadas".

"O conhecimento residente na sociedade sobre a atividade militar é importante"

Vários países estão a refletir sobre a necessidade de fazer renascer o serviço militar obrigatório. A Dinamarca decidiu, recentemente, incluir já a obrigatoriedade alargando-a às mulheres. Tendo em conta o conflito que existe nesta altura entre a Rússia e a Ucrânia, faz sentido uma preparação da União Europeia? País a país, faz sentido reabilitar esta ideia do serviço militar obrigatório?

É preciso perceber o racional por trás do que está a acontecer. Há três estratégias possíveis: a da cooperação, a da dissuasão e a da confrontação. Uma vez que nós, Europa Ocidental, já não conseguimos fazer a estratégia da cooperação com a Federação Russa governada por Putin, só temos dois caminhos: a estratégia da confrontação total, que é indesejável por ser a mais cara em termos de recursos e ser altamente destruidora, ou a estratégia de dissuasão.

No plano dissuasor, uma das coisas importantes é a perceção que o opositor tem da nossa capacidade para sobreviver a um conflito de média-longa duração. Com forças muito profissionalizadas e de elevado custo, os países ocidentais acabaram por cair num processo em que muito pouca gente na sociedade tem treino militar, ou seja, pouca gente tem capacidade para, em caso de emergência, poder reagir rapidamente e mobilizar-se rapidamente para a defesa do país.

De facto, sem um sistema de treino, regular e periódico, tipo um serviço militar obrigatório ou uma outra variante, a componente humana que está disponível para combater é muito reduzida. É a componente de alguns profissionais que já saíram das forças armadas e dos profissionais existentes, que, por serem muito caros no mundo ocidental, foram sendo reduzidos cada vez mais. No caso português, somos neste momento cerca de 25 mil.

Ora, num combate, por exemplo, na Ucrânia, em que morrem entre a 500 e mil pessoas por dia, significava, numas forças armadas como as da nossa dimensão, ficarem, em menos de um mês, completamente destruídas. Portanto, quando o opositor começa a fazer os seus cálculos, se vale a pena passar a uma estratégia de confrontação direta, uma das coisas queele vai medir é se nós temos capacidade de agir com uma componente humana suficientemente robusta e conseguir regenerá-la.

Não havendo conhecimento militar numa determinada sociedade, porque se profissionalizou, isso cria um grande problema a essas sociedades. Daí, a necessidade que se está a sentir, cada vez mais, na Europa Ocidental de rever o modelo, que é um modelo profissionalizado, que é um modelo que, por ser profissionalizado, é mais caro, mas é um modelo que reduz o conhecimento a um núcleo muito pequeno dessa sociedade.

"O que nós temos que gerar num opositor é a dúvida sistemática"

Há algumas vozes contra esse serviço militar obrigatório. Dizem que é muito curto o período de instrução e que isso não é suficiente para uma resposta militar. Na sua opinião, a solução teria de passar por outro tipo de aposta? Considera que, mesmo assim, faz sentido o regresso do serviço militar obrigatório mais prolongado do que aquilo que já fomos conhecendo?

Esse tipo de afirmações tem algum erro de análise. Há capacidade de especializar determinadas áreas e essas têm que ser muito profissionais, sendo outras menos especializadas. O combate do exército apeado de infantaria é, eventualmente, muito menos especializado que um combate aéreo, em que são necessários pilotos que demoram muitos anos a treinar. Portanto, as forças armadas não são homogéneas nesse sentido. No entanto, onde há uma atrição muito grande, normalmente quando se entra na área da confrontação direta, é precisamente na área dos exércitos e os exércitos podem ter componentes muito profissionais, mas, simultaneamente, têm que ter componentes menos profissionais, mas com mais massa humana, com mais quantidade de pessoas.

Além disso, o conhecimento residente na sociedade sobre a atividade militar é importante. Quando se diz que uma preparação de três ou quatro meses é insuficiente, não é insuficiente porque a preparação de três ou quatro meses dá estrutura, dá treino básico, dá capacidade de sobrevivência e essas coisas são importantes quando temos que ativar rapidamente a componente humana da proteção do próprio país.

Portanto, aqui é uma questão de um jogo que pode não ser simétrico. Uma escalada rápida de um combate assimétrico para um país que tem ainda que preparar os seus recursos humanos (mesmo que eles não sejam muito profissionais) pode criar uma assimetria que prejudica ou compromete gravemente a segurança de outro país.

"Se o opositor perceber que nós temos uma grande fragilidade humana (…) pode ser levado a pensar que poderá ter sucesso se avançar para a confrontação direta"

O serviço militar obrigatório fica muitas vezes associado à guerra que é a última fase. Mas faz sentido nesta fase de dissuasão, pensar nisso? O número de efetivos também é importante?

Claro que sim, a coisa mais importante que nós podemos fazer é dissuadir um opositor de entrar em conflito connosco, porque a fase de confronto é sempre a fase mais negativa e é, normalmente, onde as coisas ocorrem de forma muito violenta. Se o opositor perceber que nós temos uma grande fragilidade humana, que não conseguimos recrutar, que não conseguimos gerar forças a tempo de uma determinada ação, pode ser levado a pensar que poderá ter sucesso se avançar para a confrontação direta e isso só por si é muito perigoso.

Porque o que nós temos que gerar num opositor é a dúvida sistemática. A dúvida de se ganhará qualquer coisa ao passar a uma estratégia de confrontação direta. Se ele pensar que pode ganhar, porque tem mais resiliência, porque tem mais capacidade de recrutar, porque tem mais capacidade de manter esse recrutamento, porque o seu sistema está feito para isso e é um sistema mais capaz de gerar potencial humano do que outro sistema que ele quer enfrentar, isso pode ser um incentivo a esse próprio opositor fazer um avanço na confrontação direta.

Por isso, o recrutamento, o serviço militar obrigatório, não nos moldes anteriores, mas nos moldes mais modernos e inteligentes, pode servir também enquanto ferramenta importante de dissuasão relativamente aos perigos que nós agora todos enfrentamos na Europa.

"Sem um sistema de treino, regular e periódico (…) a componente humana que está disponível para combater é muito reduzida"

Há, notoriamente, uma movimentação maior desta reflexão por parte de quem está mais próximo da Rússia. Há no entanto países mais afastados e poderá ser o nosso caso, Espanha, etc.. que tardam mais a considerar urgente esta reflexão, compreende isso?

Isso é faz parte da natureza das coisas e da distância a que estamos do conflito. No entanto, os conflitos hoje, com as tecnologias atuais, podem desenvolver-se de forma muito abrupta, encurtando as distâncias. Enquanto no séc. XVIII ou no séc. XIX, uma centena de quilómetros de distância era uma distância gigantesca, difícil de transpor, porque era essencialmente apeado ou a cavalo. Hoje, com a utilização do espaço, do ar e de operações multi-domínio, desde mísseis a outro tipo de operações, as distâncias encurtaram-se extraordinariamente. Portanto, muitas vezes, temos a falsa segurança de estarmos protegidos e a uma grande distância, mas hoje não há grandes distâncias e podemos ser rapidamente envolvidos num conflito europeu se não fizermos as estratégias de dissuasão adequadas.

Esta é uma matéria em discussão já a nível europeu. Em Portugal, estamos numa fase de mudança política... Considera que o país não pode ficar alheio a esta reflexão?

Sobre esse assunto, gostaria de não me pronunciar porque é um assunto de caráter eminentemente político e não gostaria de referir neste momento de transição do Governo nada que indicasse qual é o meu sentido de apreciação. O Governo terá a liberdade toda e foi democraticamente eleito para fazer o que achar bem.

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  • José Pena Condesso
    20 mar, 2024 Única 13:29
    O Sr. Almirante traz, e bem, para debate público um assunto deveras sério, que obriga a sociedade portuguesa a refletir, considerando a situação de guerra que se vive na Ucrânia. "Mais vale prevenir que remediar".
  • António dos Santos
    20 mar, 2024 Coimbra 09:34
    O que estes chulos (leia-se oficiais) querem justificar o injustificável!!! As forcinhas armadas portuguesas são uma palhaçada!!! São uma vergonha para Portugal. Temos mais oficias generais e outros que praças!!! Querem que os portugueses continuem a sustentar esta cambada de inúteis!!!

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