Futebol Feminino

Balneário do Marítimo-Sporting expõe “condições lamentáveis” no futebol feminino: “A profissionalização tem de ser tema”

01 mai, 2024 - 08:45 • Inês Braga Sampaio , Eduardo Soares da Silva

Um vídeo de uma jogadora do Sporting a expor a sujidade e degradação do balneário visitante do Marítimo gerou discussão sobre as condições dadas às jogadoras na 1.ª Divisão. No Dia do Trabalhador e em dia de final da Taça da Liga, no Restelo, a empresária Raquel Sampaio defende que só a profissionalização da liga permitirá "impor algumas condições obrigatórias" que evitem mais e novos casos como este. FPF recusa comentar.

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Cubículo sem porta, paredes e chão dos chuveiros manchados, madeiras degradadas e uma barata morta. O vídeo que Andrea Norheim, jogadora do Sporting, publicou (por pouco tempo) no TikTok correu as redes, pelas pobres condições em que se encontrava o balneário visitante do Estádio da Imaculada Conceição, do Marítimo. As reações de quem está por dentro, no entanto, expuseram uma realidade: o do Marítimo é apenas um balneário de muitos sem condições mínimas na máxima divisão do futebol feminino.

"Há anos e anos que nos equipamos em balneários como este. Não são um nem dois, mas vários", atirou, na rede social X, Fátima Pinto, internacional portuguesa do Sporting. Foi a voz que mais alto se fez ouvir, já depois de Norheim ter eliminado o vídeo, porque "'não fica bem' partilhar nas redes sociais": "O que não fica bem é termos condições destas."

Após a sentença de Fátima Pinto, entre outras figuras, o Marítimo pronunciou-se. Pediu "as mais sinceras desculpas pelo facto do balneário do Estádio da Imaculada Conceição, uma infraestrutura com mais de 40 anos, não apresentar as condições ideais ou aquelas que o clube gostaria que tivesse". Contudo, também referiu que houve vistoria técnica e que, "apesar do estado visível de deterioração", quem a levou a cabo entendeu que o balneário se encontrava em condições de receber o Sporting, "no que concerne ao seu estado de limpeza".

"O Club Sport Marítimo através dos seus valores e ideais não se revê neste tipo de abordagem e não admite que este episódio seja encarado como 'um ato de discriminação'", pode ler-se no comunicado do Marítimo, que pediu também que "não se confunda deterioração com limpeza, pois essa esteve sempre presente".

Questionada pela Renascença sobre o caso, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que organiza a Liga feminina, recusou comentar.

Já a agente FIFA Raquel Sampaio, representante de várias jogadoras do campeonato nacional, e mais uma das vozes que se alçaram sobre o caso, estranha que o balneário tenha sido submetido a vistoria e aprovado: "Se foi aprovado, ainda é mais grave."

"Como é que é possível a nossa federação permitir que se usem balneários com esta falta de tudo? Degradados, sujos e sem as mínimas condições para receber atletas de primeira divisão de futebol feminino. Se houve vistoria, acho que tem de se repensar os padrões de exigência para certas áreas do nosso futebol feminino, sobretudo porque também é uma imagem que passamos para fora que não é bom promover", sublinha.

Profissionalização ajudaria a resolver muitos problemas


O Marítimo salientou, no seu comunicado, que o balneário em questão recebe há vários anos equipas masculinas e femininas, de provas como o Campeonato de Portugal e Liga BPI, e que "nunca se assistiu a um episódio com esta exposição mediática".

Raquel Sampaio critica a "comparação completamente infeliz" entre uma equipa A feminina e equipas masculinas de categorias inferiores e salienta que "uma equipa A feminina que joga na divisão máxima de futebol feminino tem de ser tratada com o mesmo respeito e as mesmas condições que os homens de uma equipa A masculina".

"Continuamos a ter e a dar condições inapropriadas e lamentáveis às jogadoras que jogam numa primeira divisão de futebol feminino, que é a divisão máxima de futebol feminino em Portugal, e continuamos a lutar pela igualdade de condições de trabalho destas jogadoras", lamenta.

A empresária bate na mesma tecla que Fátima Pinto, avisando que o caso do balneário do Marítimo não é único, mas também alerta para as diferenças de condições entre os grandes e os restantes clubes da Liga feminina: "Não se compete da mesma forma entre clubes grandes e os não grandes. Existe uma desigualdade a nível de condições de trabalho muito grande e, fruto disso, foi esse péssimo exemplo que vimos do balneário do Marítimo. Mas não é só o Marítimo, esse por acaso foi o único que saiu ainda cá para fora e que as jogadoras tiveram a coragem, e bem, de denunciar, mas há muitos outros. Há muitos outros balneários que não são dignos de primeira divisão noutros clubes."

Para Raquel Sampaio, um dos problemas está na lista de prioridades da FPF. À frente de medidas mais superficiais, como o videoárbitro, devia estar a profissionalização da Liga, o que, no entender da agente, seria "o ideal para estas situações deixarem de acontecer".

"A casa constrói-se por baixo e não pelo telhado e acho que neste caso fizemos exatamente o contrário. Mais importante que ter VAR e dizer que somos a primeira liga a ter VAR , devemos sem dúvida olhar a fundo para os problemas que a nossa liga e para as dificuldades que os clubes têm para proporcionar condições dignas às jogadoras. Acho sinceramente que o ideal para estas situações deixarem de acontecer é profissionalizar a liga, porque só aí é que conseguimos impor algumas condições obrigatórias que as equipas desta liga ou cumprem para participar, ou não cumprem e não podem participar. Tão simples quanto isto", atira.

A empresária, que tem "a certeza que estas marcas também não gostam de ver o seu nome associado a uma liga que não dá condições dignas de trabalho às jogadoras", lamenta que em Portugal não haja, ainda, um plano claro para tornar o futebol feminino profissional.

"Devemos ser dos poucos países da Europa onde o futebol tem alguma expressividade em que não se ouve falar da profissionalização. Não há um planeamento, não há uma estratégia para a profissionalização do futebol feminino em Portugal, não se ouve falar disso. Para mim é muito grave ninguém estar a falar disto. Não quer dizer que seja este ano ou para o ano, mas tem de haver um pensamento em conjunto, tem de se debater isto. A profissionalização tem de ser um tema para os organismos que regularizam o futebol em Portugal", vinca.

No Dia do Trabalhador, um apelo às trabalhadoras


Esta terça-feira, precisamente quatro dias depois de o caso do balneário visitante do Marítimo ter rebentado nas redes, celebra-se o Dia do Trabalhador.

Raquel Sampaio destaca que o seu papel, enquanto representante, "não é só o de negociar contratos, é também o de procurar as melhores condições para que as jogadoras possam desempenhar o seu trabalho". Isso implica denunciar quando surgem situações em que a dignidade no trabalho é colocada em causa.

"Quando acontecem situações deste género, temos de denunciar, porque só assim é que podemos melhorar as coisas. As jogadoras têm de estar num sítio onde se sintam bem e onde sejam bem tratadas. Temos de ser proativos e devemos denunciar quando as coisas não estão bem ou não estão certas. Devemos ter esse papel ativo", sublinha.

Ainda assim, adverte, também, que as jogadoras não devem deixar créditos por mãos alheias. As próprias atletas devem perceber a voz que têm e denunciar: "Sem dúvida nenhuma, elas são o principal motor da mudança de paradigma."

O caso das jogadoras espanholas, que exigiram uma reestruturação da sua federação para voltarem à seleção, é recente, mas não o primeiro: as norte-americanas celebrizaram-se pela luta pelo "equal pay" e inspiraram várias outas seleções; as canadianas ameaçaram fazer greve.

"Toda esta revolução no futebol feminino e nas suas condições para existir no mundo tem sido sempre muito pelo querer da mulher, por a jogadora se chegar à frente e exigir melhores condições", lembra Raquel Sampaio.

A agente defende que o futebol feminino devia ter condições dignas logo à origem, no entanto, à falta disso, as jogadoras devem ser a principal força motriz pela mudança.

"É fundamental elas perceberem que são o principal fator de mudança e no paradigma desta falta de condições que elas têm, que não deviam ter. O incentivo é que mais o possam fazer, porque só assim é que, infelizmente, as coisas vão mudar mais rapidamente", assinala.

Foi, precisamente, a denúncia de uma jogadora que puxou o caso do balneário do Marítimo para o fórum público. Resta saber se o tema será explorado pelas entidades que tutelam o futebol português.

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