06 jul, 2019
“A ideia liberal tornou-se obsoleta”, disse Putin ao “Financial Times”. É um facto que, nos últimos anos, a democracia liberal sofreu alguns recuos importantes.
Trump, porque é Presidente dos Estados Unidos, representa um desvio preocupante aos direitos e liberdades próprias de uma democracia liberal. Mas não se deve subestimar a solidez da democracia americana, que tem resistido, com algum sucesso, a algumas prepotências de Trump – desde logo o independente poder judicial dos EUA.
Na Europa, é frustrante assistir à emergência de “democracias iliberais”, na própria definição do primeiro-ministro húngaro, em países que tinham sofrido décadas de opressão totalitária soviética mas que, agora, limitam gravemente a liberdade de expressão e não respeitam a independência do sistema judicial.
Recuos na Europa
Ao mesmo tempo, em países europeus de sólida tradição democrática, crescem partidos populistas, eurocéticos, hostis à imigração. É o caso da Holanda e dos países nórdicos.
Em Itália, quem hoje manda é Salvini, que há poucos anos atrás defendia que o Norte de Itália se tornasse um novo país independente, a Padânia – um estranho caso de nacionalismo anti-nacional. E Salvini criminaliza o resgate de migrantes no Mediterrâneo, salvando-os de morrerem afogados.
Em França, as sondagens colocam na frente o partido xenófobo de Marine Le Pen. E em Espanha o Vox, de extrema-direita e ultra machista, é atualmente um partido com considerável influência.
Estas forças populistas, eurocéticas e de fracas credenciais democráticas são apoiadas pelo antigo chefe de campanha e conselheiro de Trump, Steve Bannon, que veio para a Europa tentar unificar num movimento estes vários partidos. Uma causa os une: a xenofobia contra os refugiados e imigrantes. E a maioria deles aprecia o regime autocrático de Putin.
Autocracias no mundo
Fora da Europa e dos EUA temos Bolsonaro na Brasil, que já está em refluxo nas sondagens mas ainda pode fazer muito mal, Duterte nas Filipinas, conhecido por mandar a polícia matar suspeitos de crimes, sem qualquer julgamento, ou o que se passa em Myanmar (antiga Birmânia) onde a prémio Nobel da Paz Aung Suu Kyi não consegue, ou não quer, travar os massacres contra a minoria “rohingya”.
As “primaveras árabes”, que eclodiram em 2011 com protestos, revoltas e revoluções populares contra governos ditatoriais, acabaram pouco tempo depois, seguindo-se regimes ainda mais autoritários e liberticidas – o Egipto é o exemplo mais claro. A Líbia tornou-se um caos sangrento e na Síria prosseguem os massacres do tirano Bashar al-Assad.
Alternativas falhadas
Quais as alternativas à democracia liberal? Será a autocracia de Putin, numa Rússia onde a economia estagna e o Estado de direito é uma miragem? Putin é muito apreciado pelos extremistas de direita, como Salvini, Le Pen ou Viktor Orbán, porque ele impôs a autoridade do Estado num país, que, após a queda do comunismo, entrou numa desordem caótica. Só que essa autoridade é despótica e corrupta. A Rússia não é – nunca foi – um Estado de direito.
Muito menos será alternativa aceitável por quem preze a liberdade o comunismo totalitário que vigorou naquele país e nos seus satélites até há quarenta anos.
E só por graça de mau gosto se pode apontar o “socialismo bolivariano” da Venezuela como caminho a seguir.
Cuba não goza de liberdades essenciais e o regime perdura, muito graças ao bloqueio mais estúpido do mundo, imposto pelos EUA há quase 60 anos e desde então mantido para os políticos americanos não perderem votos de imigrados cubanos na Flórida. Ou será preferível a ultra totalitária e pobríssima Coreia do Norte, que o partido comunista português não tem a certeza de que seja, ou não, uma democracia?
Na competição com os EUA para se tornar uma superpotência (que a Rússia deixou de ser) a China chama a atenção para o seu extraordinário dinamismo económico e tecnológico e considera-se um modelo para o mundo. A China de Xi Jinping classifica os direitos humanos e as liberdades civis e políticas de embustes ocidentais.
Mas eu apostaria que, se prosseguir a centralização autoritária do poder político do partido comunista chinês (como pretende Xi Jinping), o próprio dinamismo económico chinês abrandará e muito. E mais tarde ou mais cedo alguns milhares de chineses enriquecidos começarão a reclamar direitos civis e políticos, como fizeram os burgueses em França no fim do séc. XVIII.
Uma democracia renovada
A alternativa à democracia liberal é uma democracia liberal renovada. Acontece que este regime tem capacidade de adaptação e de mudança reformista, coisa que não se enxerga nas suas alternativas reais ou imaginadas.
De resto, foi o que se passou no século passado. Há cem anos a democracia liberal era, por muita gente, considerada obsoleta e totalmente ultrapassada pelos regimes “modernos”: nazismo, fascismo e comunismo.
Esses regimes quase desapareceram da face da terra e a democracia representativa regressou em força após a II guerra mundial. Hoje a democracia liberal e o capitalismo estão em declínio – mas podem e devem melhorar. Aliás, esse declínio é, em parte, resultante de uma insensata euforia, quando o Ocidente venceu a guerra fria e alguns julgaram que a vitória da democracia capitalista tudo justificava para ganhar dinheiro.
Como há dias escreveu o principal colunista do “Financial Times”, Martin Wolf, o liberalismo não é uma filosofia bem definida, é uma atitude. Uma atitude de quem preza a liberdade, mas – acrescento eu – se preocupa também com as crescentes desigualdades de riqueza e com a justiça social. Os autocratas que vemos por aí, a começar por Trump e a acabar em Putin, não mostram preocupações destas.