18 abr, 2019
Ainda sou do tempo em que os pais aplicavam a palmada e o tabefe com notável à-vontade. Não se tratava necessariamente de maus-tratos. Bater nos filhos era normal. Também ainda sou do tempo em que os pais cultivam a frieza emocional, a distância, o pai era uma esfinge misteriosa. Nos livros de Alçada (upstairs) e de Rentes de Carvalho (downstairs) percebe-se que ricos e pobres educavam os filhos na mesma aridez sentimental; as crianças tinham de beijar as mãos de granito de pais e padrinhos; se desse um beijo na cara de um avô ou pai, uma criança sentia que estava a violar uma regra não escrita. A palmada e a distância sentimental eram duas formas violentas de criar respeito.
Ora, criar respeito sem o recurso à violência física e emocional é, para mim, o grande desafio como pai. Julgo que não estou sozinho. A minha geração de pais e mães não quer repetir os erros do passado, não quer ser a esfinge longínqua e, acima de tudo, não quer educar com base na humilhação física. Esta sensibilidade paternal é, se quiserem, um eco de uma sensibilidade política mais lata: a autoridade da democracia junto de cidadãos livres é construída de forma diferente da autoridade da ditadura junto de súbditos oprimidos. A cultura política e a cultura, digamos, paternal correm lado a lado.
O problema é que – muitas vezes – os pais de hoje não têm nem o tempo nem o necessário espírito de sacrifício para cumprir este caderno de encargos. Criar respeito nos filhos sem o recurso à força é um trabalho diário gigantesco que consome energia e tempo, é uma tarefa que exige o culto da renúncia por parte dos pais. E aqui encontramos dois problemas. Primeiro, muitos pais estão simplesmente estourados, não têm paciência ou energia para educar crianças irrequietas. No passado, essa inquietude juvenil resolvia-se com a proverbial chapada da mãe exausta. Hoje, sem acesso à palmada e sem tempo ou energia para educar no respeito, muitos pais recorrem ao tablet para manter os filhos quietos e aparentemente bem-educados. Esta é uma deserção indirecta e causada pela própria estrutura da sociedade.
Mais grave é a segunda forma de deserção paternal: mesmo sem cansaço, muitos pais não estão disponíveis para sacrificar o seu tempo de qualidade como adultos, não estão para brincar com os filhos, não estão para fazer trabalhos manuais e fazer jogos, não estão para "descer" ao nível infantil e, por arrasto, "elevam" a vida social das crianças, levando-as para ambientes demasiado adultos, silenciosos e ordenados, o restaurante cool, o hotel chique, etc. E é aqui que entra de novo o tablet e o telemóvel: são formas de sedar a criança, são maneiras de inserir a criança à força num ambiente que não é obviamente para ela.
Ou seja, antigamente mantinha-se a criança no seu longínquo mundo, ela crescia quase sem ser vista pelos adultos; hoje em dia, a criança está entre os adultos mas também está sedada pelo tablet. Da neutralização do mau comportamento através da palmada, saltámos para a neutralização da própria criança, da própria família e da própria conversa através do tablet.