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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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O tablet é a nova palmada

18 abr, 2019 • Opinião de Henrique Raposo


Antigamente mantinha-se a criança no seu longínquo mundo, ela crescia quase sem ser vista pelos adultos; hoje em dia, a criança está entre os adultos mas também está sedada pelo tablet. Da neutralização do mau comportamento através da palmada, saltámos para a neutralização da própria criança

Ainda sou do tempo em que os pais aplicavam a palmada e o tabefe com notável à-vontade. Não se tratava necessariamente de maus-tratos. Bater nos filhos era normal. Também ainda sou do tempo em que os pais cultivam a frieza emocional, a distância, o pai era uma esfinge misteriosa. Nos livros de Alçada (upstairs) e de Rentes de Carvalho (downstairs) percebe-se que ricos e pobres educavam os filhos na mesma aridez sentimental; as crianças tinham de beijar as mãos de granito de pais e padrinhos; se desse um beijo na cara de um avô ou pai, uma criança sentia que estava a violar uma regra não escrita. A palmada e a distância sentimental eram duas formas violentas de criar respeito.

Ora, criar respeito sem o recurso à violência física e emocional é, para mim, o grande desafio como pai. Julgo que não estou sozinho. A minha geração de pais e mães não quer repetir os erros do passado, não quer ser a esfinge longínqua e, acima de tudo, não quer educar com base na humilhação física. Esta sensibilidade paternal é, se quiserem, um eco de uma sensibilidade política mais lata: a autoridade da democracia junto de cidadãos livres é construída de forma diferente da autoridade da ditadura junto de súbditos oprimidos. A cultura política e a cultura, digamos, paternal correm lado a lado.

O problema é que – muitas vezes – os pais de hoje não têm nem o tempo nem o necessário espírito de sacrifício para cumprir este caderno de encargos. Criar respeito nos filhos sem o recurso à força é um trabalho diário gigantesco que consome energia e tempo, é uma tarefa que exige o culto da renúncia por parte dos pais. E aqui encontramos dois problemas. Primeiro, muitos pais estão simplesmente estourados, não têm paciência ou energia para educar crianças irrequietas. No passado, essa inquietude juvenil resolvia-se com a proverbial chapada da mãe exausta. Hoje, sem acesso à palmada e sem tempo ou energia para educar no respeito, muitos pais recorrem ao tablet para manter os filhos quietos e aparentemente bem-educados. Esta é uma deserção indirecta e causada pela própria estrutura da sociedade.

Mais grave é a segunda forma de deserção paternal: mesmo sem cansaço, muitos pais não estão disponíveis para sacrificar o seu tempo de qualidade como adultos, não estão para brincar com os filhos, não estão para fazer trabalhos manuais e fazer jogos, não estão para "descer" ao nível infantil e, por arrasto, "elevam" a vida social das crianças, levando-as para ambientes demasiado adultos, silenciosos e ordenados, o restaurante cool, o hotel chique, etc. E é aqui que entra de novo o tablet e o telemóvel: são formas de sedar a criança, são maneiras de inserir a criança à força num ambiente que não é obviamente para ela.

Ou seja, antigamente mantinha-se a criança no seu longínquo mundo, ela crescia quase sem ser vista pelos adultos; hoje em dia, a criança está entre os adultos mas também está sedada pelo tablet. Da neutralização do mau comportamento através da palmada, saltámos para a neutralização da própria criança, da própria família e da própria conversa através do tablet.

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  • Carla Dias
    28 abr, 2019 Povoa Sta iria 12:55
    Bom dia Concordo ,alias hoje em dia as crianças são robots, não brincam "não se portam mal " ,não nada!
  • Vera Costa
    21 abr, 2019 16:55
    Olá, hoje para intervalar as preocupações da semana que passou, passámos "da palmada ao Tablet"! muito bem Henrique Raposo! confesso que me deu uma certa vontade, de rir! por exemplo aquele pormenor da "Esfinge longínqua", teve muita piada! mas os pais agora sem se aperceberem, ficam mais distantes dos filhos do que nós! nós falávamos só o que era necessário, mas agora o que é necessário está no Tablet, se este não se enganar no caminho para o 'Far-West'! que, se forem por aí, até as 'esfinges' saltam das pirâmides! Pois saltam! e não é com fulminantes!!! Um Bom Domingo de Páscoa!
  • Domingos Simões
    18 abr, 2019 10:45
    É um agradável privilégio ler Henrique Raposo. Também "ainda sou do tempo em que...". Admito que com tais métodos se gerava mais medo e rebeldia do que o almejado respeito. Há uns tempos ainda recentes dei comigo a acreditar que qualquer recém-nascido traz consigo uma real soberania que poucos adultos terão capacidade de saber respeitar. Amar e educar não será tanto uma tarefa da calculadora mental humana, mas antes de corações dóceis e mentes saudáveis. Todo o agradecimento a HR.
  • João Lopes
    18 abr, 2019 09:22
    Excelente análise!