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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Alimentação não é educação

29 mar, 2019 • Opinião de Henrique Raposo


Hoje em dia, é mais fácil ver um adulto a censurar uma criança que está a comer açúcar do que uma criança que está a ser mal-educada.

Na quarta-feira, no programa da tarde aqui da Renascença, Renato Duarte e Sónia Santos entrevistaram uma série de pessoas ligadas ao teatro. A meio da conversa, alguém disse que há pouco espaço na imprensa para crítica de teatro. É verdade. Aliás, é verdade para qualquer área cultural. Se fizermos uma comparação com o passado ainda recente, as revistas de hoje têm menos espaço dedicado a livros, filmes, quadros, peças.

O espaço dedicado à arte tem sido ocupado pelo espaço dedicado à comida e à bebida. A culinária substituiu a literatura no centro da sofisticação intelectual, o que não me parece um grande avanço civilizacional. As conversas ditas sofisticadas com gente dita sofisticada também se ressentem. É fácil passar um serão a ouvir gente a falar de malte, de leveduras, de baristas, de temperos, de tomate do Paraguai recheado com queijo de uma espécie de cabras rara dos Andes, de um croissant de centeio com fiambre de aves acompanhado por um cappuccino de soja descafeinado. Onde estão os serões ou almoços passados a discutir Camus, Ford, Tolstoi, Hitchcock, Schiele, Freud, Brecht?

Como é que chegámos aqui? Como é que chegámos ao ponto em que ser sofisticado não é saber o número de cantos da "Odisseia" mas o numero de estrelas Michelin de um restaurante de Oslo ou Madrid? Bom, décadas e décadas de pós-modernismo criaram uma geração sem memória e sem interesse pela comparação histórica.

O desprezo pelo passado e pelas narrativas foi ideologicamente preparado. Hoje em dia é possível encontrar um aluno de cinema insensível à história do cinema (já conheci). Sem respeito pela história, não é possível construir um saber erudito. A concentração no presente e na next big thing retirou a uma geração inteira a cultura geral que era a marca da sofisticação. Por outro lado, outro dos efeitos da cultura pós-moderna foi a fixação do interesse pessoal no prazer imediato e corporal; vivemos todos na supremacia do prazer sensorial (comida, bebida, sexo) sobre o pensamento. Neste contexto em que o corpo vence a mente, o barista só pode ser mais relevante do que o crítico. Não é um grande avanço civilizacional, pois não?

Falei até agora de educação artística e cultural. Mas isto também se nota na educação moral das crianças. A comida e a alimentação têm assumido um papel assustador na mente dos pais. Por vezes, até parece que a alimentação é a educação que conta. Por vezes, até parece que as regras e os tabus alimentares são mais importantes do que as regras e tabus morais da educação. Claro que não ponho de parte o conhecimento alimentar gerado pela ciência. Convém porém não exagerar. A alimentação é só a alimentação. A alimentação é apenas um debate técnico, e não moral. E o que espanta é a rápida e absoluta moralização dos hábitos alimentares. Estamos rodeados pelos fariseus da lactose e pelos doutores da lei do açúcar.

Hoje em dia, é mais fácil ver um adulto a censurar uma criança que está a comer açúcar do que uma criança que está a ser mal-educada. Lamento, mas comer uma goma não é pecado, ser mal-criado é que é; comer glúten ou lactose não é pecado, ser agressivo para os outros é. Confesso que estou farto de ver miúdos que não comem açúcar, sim senhor, mas que se comportam como pequenos lordes sem a mínima noção do “outro”. A alimentação é só a alimentação. Não se come empatia.

Comentários
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  • João Lopes
    30 mar, 2019 12:02
    Excelente artigo!
  • Vera Costa
    29 mar, 2019 16:50
    "Neste contexto em que o corpo vence a mente, o barista só pode ser mais relevante do que o crítico. Não é um grande avanço civilizacional, pois não? " "Estamos rodeados pelos fariseus da lactose e pelos doutores da lei do açúcar." "Hoje em dia, é mais fácil ver um adulto a censurar uma criança que está a comer açúcar do que uma criança que está a ser mal-educada. Lamento, mas comer uma goma não é pecado, ser mal-criado é que é; comer glúten ou lactose não é pecado, ser agressivo para os outros é. Confesso que estou farto de ver miúdos que não comem açúcar, sim senhor, mas que se comportam como pequenos lordes sem a mínima noção do “outro”. A alimentação é só a alimentação. Não se come empatia. " Olá Henrique Raposo, pois eu também já me tinha apercebido desta situação! agora eu respondo-lhe ironicamente: sabe o que é? é que as greves ainda não entraram nos Hipermercados, porque os funcionários trabalham dois meses, depois mudam de Hipermercado e ao fim de dois meses voltam para onde estavam antes... É o que eu chamo: andar 'numa roda viva'! Quanto à educação... Talvez se possa avaliar através do Facebook? Quem sabe!!! Bom fim de semana!