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Ana Sofia Carvalho
Opinião de Ana Sofia Carvalho
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Novela interminável ou a impossibilidade de uma lei

27 mar, 2019 • Opinião de Ana Sofia Carvalho


Após estes exercícios de algum malabarismo legislativo em que, através de diferentes estratégias, já foi tentado tudo para conseguir uma lei eticamente aceitável, considero que chegou a altura de assumir a derrota: não é possível construir uma lei ética sobre um pressuposto não ético.

O carrocel legislativo relativo à gestação de substituição revela contornos inéditos. Após uma sequência interminável de projetos de lei, de pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciência da Vida, do veto do Presidente da República, do acórdão do Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade dos artigos essencialmente relacionados com a gestação de substituição, continuamos a insistir e a tentar esta fantasia de uma lei que nunca terá a possibilidade de proteger todos os intervenientes no processo e portanto nunca terá legitimidade ética.

Todo este frenesim legislativo assenta na convicção, com motivações político-ideológicas, de que é ética e juridicamente possível estabelecer um contrato celebrado na chamada fase de planeamento familiar. Ou seja, antes da concepção de uma criança, entre um casal beneficiário, que tem a intenção, mas não a possibilidade de ter um filho, e uma mulher que aceita, de forma altruísta, engravidar com o único propósito de permitir ao casal beneficiário, ter um filho com material genético de ambos (quando usados gâmetas de ambos os membros do casal) ou apenas de um deles (face à impossibilidade de um dos membros do casal produzir gâmetas viáveis).

Mais importante do que a lei, é cada um fazer este esforço de pensar como e quem se deve priorizar nesta complexa teia de vulnerabilidades. Todos os envolvidos; a criança a nascer, o casal beneficiário, a mulher gestante que aceita, altruisticamente1, transportar um filho que não é dela, são vulneráveis e devem ser protegidos na sua dignidade e integridade.

Nesta situação concreta, não temos, efetivamente, a possibilidade de proteger todos e, não sendo possível, pode uma lei partir do pressuposto que uma pessoa vulnerável não vai ser adequadamente protegida? Recorro à teoria da vinculação de Tim Bayne y Avery Kolers (2001, 2003)2 para melhor apresentar o meu ponto de vista. Para estes autores deveremos considerar três tipos de vinculação que, de forma distinta, poderão permitir definir melhor as prioridades e as questões relacionadas com os diferentes intervenientes no processo. De acordo com os autores, a discussão deverá assentar na escolha de critérios que permitam decidir se algum dos vínculos é forte, necessário e suficiente para de forma eticamente sólida permitir tomar uma decisão prudente e responsável.

As formas de vínculo definidas incluem: o vínculo gestacional, o vínculo genético e o vínculo intencional3. O vínculo gestacional assenta no facto de a gravidez e o parto constituírem, por si só, uma ligação única que obriga a que os interesses e os desejos da mulher gestante sejam priorizados em relação a outros vínculos (vínculo que foi priorizado no último projeto de lei do Bloco de Esquerda sobre este assunto). O segundo tipo de vinculação, numa linha de algum determinismo genético, considera que o material genético tem uma importância fundamental; assim, o facto de existir material genético de pelo menos um dos membros do casal beneficiário, será condição necessária e suficiente para atribuir a paternidade/maternidade.

Este tipo de vinculação, se não estiver intimamente ligado ao vínculo intencional, ou seja, o desejo de ter um filho, constituí uma contradição em relação à possibilidade de recurso a gâmetas de dadores. Assim, quem considera que este tipo de vinculação deverá prevalecer, normalmente, apresenta a vinculação genética e intencional como condições necessárias e suficientes para a atribuição da paternidade/maternidade; porque tem material genético de um dos membros do casal e porque este casal tem o desejo, expresso em forma de contrato, de cuidar e criar a paternidade/maternidade deverá ser inequivocamente, do “casal beneficiário”.

Mesmo a denominação da técnica, “maternidade de substituição” ou “gestação de substituição” enformam, por si, um certo posicionamento relativamente aos vínculos a dar prioridade. Assim, quando em Portugal mudamos o termo de “maternidade” para “gestação” já estávamos, possivelmente de uma forma pouco consciente, a tomar uma posição.

A expressão “maternidade de substituição” sublinha algo que o termo “gestação de substituição” tenta diminuir ou desvalorizar; coloca a condição materna como algo a considerar uma vez que a gravidez não se pode dissociar da maternidade. Assim, quem defende a importância deste vínculo considera que o termo “gestação de substituição” é ambíguo e enviesado pois separa, artificialmente, a gravidez da maternidade, considerando, de forma simplista e desadequada que é possível “transportar um bebé” sem estabelecer com este qualquer espécie de vínculo. Quem, por outro lado, considera que a genética e a intencionalidade devem ter prioridade sobre a gravidez; considera, então, que o termo “gestação de substituição” é adequado.

Após estes exercícios de algum malabarismo legislativo em que, através de diferentes estratégias, já foi tentado tudo para conseguir uma lei eticamente aceitável, considero que chegou a altura de assumir a derrota: não é possível construir uma lei ética sobre um pressuposto não ético… não é possível através de legislação, calibrar as diferentes liberdades em discussão, de forma a garantir a proteção da dignidade dos diferentes intervenientes no processo. Qualquer proposta legislativa terá sempre que fazer prevalecer um dos tipos de vinculação sobre a outra, desprotegendo, de forma eticamente inaceitável, uma das partes envolvidas. Por mais tentativas que hajam, os dilemas morais não desaparecem; de facto, só se muda o foco do problema. No sentido de proteger o casal beneficiário, e mais recentemente, a gestante de substituição, fomos desprotegendo sucessivamente, e de uma forma cada vez menos aceitável, o sentido disto tudo; a criança que vai nascer e que, certamente, queremos todos que veja garantida a sua dignidade e salvaguardado o seu melhor interesse.

1. A questão relacionada com a altruísmo, está, como seria expectável, em discussão em vários países que permitem a gestação de substituição em que a gestante não pode ser paga. De facto, quer no Reino Unido quer no México a situação relacionada com a exigência de dádiva altruísta resultou, na prática, de uma inoperância da lei; ou seja, apesar de permitida por lei os casos de gestação de substituição nestes países são praticamente residuais.

2. Kolers, A., & Bayne, T. (2001). “Are You My Mommy?” On the Genetic Basis of Parenthood. Journal of applied philosophy, 18(3), 273-285. Kolers, A., & Bayne, T. (2003). Toward a pluralist account of parenthood. Bioethics, 17 (3), 221-242.

3. Esta ideia foi inicialmente apresentada no último parecer do CNECV sobre este assunto. Aproveito ainda, para neste texto, apresentar a minha homenagem ao Miguel Ángel Torres Quiroga que através da arguição da sua tese de doutoramento “Libertad, Desigualdad y el contrato de Maternidad subrogada” na Facultad de Fiilosofía y Letras da Universidad Autónoma de Madrid que na leitura das suas 387 páginas me permitiu apreender sobre esta assunto a partir da leitura de outras áreas do saber e de outros enquadramentos políticos.


Ana Sofia Carvalho, Diretora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa

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