22 fev, 2019
Custa ouvir membros do clero a estabelecer uma relação causa/efeito entre homossexualidade e pedofilia. Lamento, mas a homossexualidade é aqui uma irrelevância. A maioria dos casos de pedofilia é praticada por homens heterossexuais. São os pais, padrastos, tios, irmãos, primos e vizinhos que abusam das próprias filhas e filhos, sobrinhas e sobrinhos, vizinhas e vizinhos, primas e primos. O problema deles não é a orientação sexual, hetero ou gay, mas a própria condição masculina: gay ou hetero, o homem é o abusador sexual por excelência, cometendo cerca de 98% dos casos de agressão. É por isso que insisto num ponto: o caminho da igreja tem de passar por um papel mais alargado das mulheres; a mulher, seja qual for o seu cargo, tem de estar mais presente na vida das instituições da igreja.
A raiz do mal não é a orientação sexual, mas sim a impunidade do poder. Para pensar o assunto, seria bom que a igreja voltasse à pêra de Santo Agostinho. Em “Confissões”, quando recorda o seu passado de pecado, Agostinho invoca o episódio da pêra: diz que sentiu prazer quando roubou uma pêra de um quintal sem ser visto ou apanhado. A pêra de Agostinho é assim uma variação simbólica da maçã de Adão e Eva. Aqui o mal não tem mistério: Agostinho sentiu o prazer do mal, o prazer que é ficar impune, o prazer que é sentir que a nossa inteligência mecânica e amoral não se confronta com um sistema legal ou moral, o prazer que é dizer, Roubei mas não me apanham! É este o prazer lúdico do mal: o da invisibilidade, o de sermos invisíveis aos olhos da lei e aos olhos de Deus.
Voltamos, portanto, ao pecado original: a ideia de que o homem é tão poderoso e auto-referencial que se torna jogador e árbitro ao mesmo tempo; a ideia de que é o próprio sujeito que cria as regras morais que avaliam a sua conduta. Em "Confissões", é o jovem Agostinho que cria a paleta moral que avalia o jovem Agostinho. Neste circuito fechado, roubar não é um pecado, é um prazer.
A dimensão dos abusos dentro da Igreja só é compreensível à luz desta metáfora da pêra. Dentro da estrutura da igreja, o poder do padre e do bispo é (era?) demasiado grande, é (era?) um véu demasiado espesso que cria demasiados ângulos mortos, demasiados locais e situações onde a sua acção pode ceder à tentação. Não, não estou a dizer que todos os padres e bispos sentiram esta tentação – isso seria uma associação tão abusiva como aquela que tenta ligar homossexualidade e pedofilia. Estou a dizer, isso sim, que o clericalismo cria os cenários onde um determinado padre ou bispo pode de facto ceder à impunidade do poder.
Um padre que cede através da pedofilia é alguém em queda. É por isso que importa discutir o celibato, e não a homossexualidade. Com ou sem o problema da pedofilia, o fim da obrigatoriedade do celibato seria sempre um tema interessante. Com a questão da pedofilia em cima da mesa, é um tema obrigatório. Não acredito que o celibato seja a causa inicial da pedofilia, mas acredito que é um factor que potencia abusos e tentativas de aproximação indevidas. Ou seja, se ocorrer uma ignição do mal a montante, o rastilho é alimentado a jusante pelo celibato. É esta, de resto, a posição do padre Hans Zollner, responsável pela cimeira em curso: “a forma de vida celibatária torna-se num factor de risco quando a vida sacerdotal entra em crise”. Na Alemanha, a igreja percebeu que “a idade média do sacerdote que abusa pela primeira vez é de 39 anos”. Ou seja, a integridade moral dura bastantes anos e depois começa a desmoronar-se devido à solidão e ausência de laços afectivos além dos laços paroquiais. Em resposta, Zollner diz que são necessários mais testes preventivos no seminário. Com o devido respeito, julgo que isso não é resposta. Como é que se avalia aos quinze ou vinte anos a pressão de vinte anos de solidão cujo peso só se torna obviamente visível aos quarenta? Com o devido respeito, julgo que a resposta certa é acabar com o fim da obrigatoriedade do celibato. A igreja precisa de mudar e esse seria um sinal magnífico de mudança e de fidelidade bíblica. O celibato nada deve à Bíblia, nada.
Ironicamente, a igreja neste ponto ganhava em sair da grelha de Agostinho, pilar clássico da abstinência sexual e amorosa. Passar anos e anos sem sentir outro corpo humano é a negação da condição humana, passar uma vida sem uma relação de amor e partilha só pode ser um fardo e suportar esse fardo não é para todos. A obrigatoriedade do celibato não é para quem quer, é para quem pode. Existirão sempre corpos de elite dentro da Igreja que encararão o celibato com sentido de dever e amor por Deus. Mas a Igreja é a maior organização do mundo, será sempre composta por homens normais e não por heróis. E uma igreja feita por simples homens pecadores como Pedro só pode ser uma igreja de homens com o direito de casar, amar, formar família - como os apóstolos. É que até Pedro tinha sogra: "Entrando em casa de Pedro, Jesus viu que a sogra dele jazia no leito com febre" (Mt 8, 14).