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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

​A geração dos nossos filhos poderá ser a mais intolerante

11 jan, 2019 • Opinião de Henrique Raposo


As pessoas nascidas e criadas neste século no ocidente poderão formar a geração mais intolerante de que há memória. Estou a exagerar? Não.

Os indicadores da intolerância crescem de ano para ano. Se pensarem no clima intelectual de 2008 (quando foi possível chegar a consensos sobre a crise), vão descobrir uma atmosfera que parece ser literalmente de outra era. Perdemos liberdade, tolerância e empatia a cada ano que passa. Não acreditam em mim? Então leiam ou oiçam por favor o psicólogo social Jonathan Haidt. Não vão encontrar nada melhor sobre o nosso ar do tempo.

Haidt explica que a actual intolerância das nossas sociedades e até universidades tem como causa algo mais profundo do que a ideologia do politicamente correcto ou a ideologia nacionalista. A questão não é ideológica, é epistemológica, é conceptual, talvez até neurológica. Haidt comprova com estudos e dados algo que muitos de nós já intuíamos: é como se os nossos filhos fossem de outro universo moral. Não estamos a falar do mero choque entre gerações. Estamos a falar de uma ruptura civilizacional, que começa na infância e na própria concepção de "criança".

Falo aqui muitas vezes das brincadeiras de rua, que se perderam. A rua é hoje dos carros, não das crianças. Isto não é nostalgia pelo passado, é nostalgia pelo que está certo. A este respeito, Haidt sublinha uma variação civilizacional de fundo: até à geração dos nossos filhos, todas as gerações de seres humanos aprenderam a arte da socialização na rua, em brincadeiras com outras crianças sem adultos por perto. Durante milénios, os homens aprenderam a discutir, a argumentar, a chegar a consensos e a acordos logo na infância. Antes dos dez anos, todos nós sabíamos que não éramos o centro do mundo, que existiam outras pessoas com outras ideias que tínhamos de ter em conta. O pluralismo estava no próprio ar que respirávamos. A tolerância (isto é, aceitarmos a presença de algo de que não gostamos) fazia parte da educação da rua, do pátio, do descampado, de ringue de jogos.

livro, geração, raposo. Entre meados dos anos 90 e início deste século, algo mudou na psique colectiva dos pais. Uma série de factores (o fantasma da pedofilia e dos abusos, a colonização da rua e dos passeios pelos carros e pelos cães, as fobias médicas e alimentares) construiu um ar do tempo que leva a este ridículo salientado por Haidt: alguns pais são presos porque deixam os filhos sozinhos num parque. Eu ia para a escola sozinho com sete anos. Se deixasse a minha filha fazer o mesmo, eu seria, no mínimo, sinalizado pela proteção de menores. As crianças passaram a brincar apenas e só em ambientes controlados pelos adultos, ou seja, deixaram de aprender a resolver as diferenças de opinião sozinhas. E, se não aprenderam a tolerância na rua, também não a aprenderam em casa, pois são muitas vezes filhos únicos – outra marca do nosso tempo.

Estas crianças cresceram e agora estão nas faculdades e entrar na vida adulta. Problema? A criança que não aprendeu a resolver sozinha as diferenças com outras crianças é agora o jovem adulto que não sabe aceitar opiniões contrárias à sua, é o jovem adulto que não sabe debater ou trocar ideias e cuja reacção instintiva à diferença de opiniões é o boicote, a queima de livros, o insulto, a chamada do pai (autoridade) para mandar calar os outros. A liberdade de pensamento é literalmente ofensiva para o jovem desta geração. A intolerância é onde se sente confortável, porque nunca foi forçado a confrontar-se com a liberdade dos outros. Na infância não teve rua e irmãos. Na adolescência teve direito a um telemóvel e a redes sociais onde criou a sua bolha. A própria ideia de uma discussão de ideias é perturbadora. É como se as ideias só pudessem ser linhas paralelas, correndo lado a lado sem nunca se cruzarem. Perguntar é ofender. Criticar é ofender.

Imaginem que só permitíamos que os jovens começassem a aprender a ler aos 15 anos. Isso representaria um óbvio atraso na aprendizagem técnica da linguagem. Ora, o que se passa hoje é um atraso na aprendizagem moral da liberdade, da empatia, da tolerância. A arte da associação ou a civilidade era algo que nós aprendíamos logo com sete ou oito anos. Agora isto é aprendido apenas aos 20 ou 30. E, em muitos casos, não o será mesmo. Esta não é uma questão de lifestyle. Esta não é uma questão de mamãs e papás. É uma catástrofe civilizacional que só agora começa a ter contornos claros.

Comentários
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  • António Costa
    15 jan, 2019 Cacém 16:40
    O mundo tem sido sempre um "mar de tolerância". No século passado a "tolerância" conduziu só a duas guerras mundiais. A tolerância apreende-se na rua? Esta a brincar, não está? Os espartanos mandavam os miúdos para a rua desenrascarem-se...acha a sociedade espartana um "modelo de tolerância"? A tolerância apreende-se e ensina-se. Ao contrário de épocas anteriores em que as crianças eram obrigadas a trabalhar no duro "sem um pio", hoje frequentam escolas onde passam os dias uns com os outros. Hoje, os miúdos crescem sem saber e perceber o que é uma sociedade intolerante. Hoje a tolerância é um dado adquirido. Ninguém lhe dá valor.....
  • Vera
    11 jan, 2019 Palmela 17:09
    Olá, eis o Henrique Raposo, sempre atento às situações que envolvem os jovens! sabendo distinguir um 'oito de um oitenta'! nós os da época anterior sentimos isso! e neste mesmo momento, estou eu a ser criticada por causa do termo 'oito e oitenta'! - Esta mulher é parva! diz coisa K não faz sentido! como é Kela Kumpara 8 com 80?? Pois eles, só, não pensam como nós, como também não falam nem escrevem como nós! mas como nós passámos à reserva, estamos reservados, para nos adaptarmos à 'situation'. E não foi por falta de rua, porque eu fui criada sempre em casa, havia colegas da escola que iam para minha casa, mas se o meu pai achasse que entre aquelas havia uma, que não se enquadrasse nas regras dele, essa só entrava uma vez e não havia 2ª vez! é que os pais dos anos 50 educaram os filhos até finais dos anos 60, nessa altura era preciso escolher as companhias dos filhos/filhas, depois os pais dos anos 70 e 80, seguiram-lhes o exemplo! entretanto nos anos 90 as professoras começaram-se a queixar que haviam alunos insuportáveis, houve até aqueles que bateram nas professoras! e os pais começaram a enfiar computadores na frente dos filhos, para os afastar das brincadeiras de rua, porque não eram nada agradáveis, para ninguém!... Agora certas coisas melhoraram em relação aos últimos anos, outras coisas ainda estão meio enrodilhadas... Mas havemos de lá chegar... Não aos anos 60, mas a 70 e 80, eu acredito que seja possível! De, Leonardo da Vinci: "A impaciência é mãe da estupidez".
  • jc
    11 jan, 2019 Lisboa 11:02
    Boa observacao. Acho que isto ja acontece e o mundo ocidental tem ja cabeca muito intolerante
  • Monia
    11 jan, 2019 lisboa 09:49
    Antes pelo contrário são mais criticas,racionais,interativas entre si e o mundo e não aceitam a ignorância dos analógicos.A velocidade da informação e realidades estão ao alcance dum click e não dum discurso enfadonho e ideológico de atores partidários.Estas skills torna-os- mais intolerantes perante as irracionalidades e açoes negativas ,incoerentes com o desenvolvimento e não compreederao nem perdoarão as bancarrotas ,grilhões,coleiras, garrotes,cadeados,tricas de e entre partidos, etc quando não contentes migrarao para os oásis existentes e há Países q esvaziaram.Portugal é um deles porque a vida é curta e o MUNDO GRANDE E DIVERSO é só escolher.Os atentados em Portugal contra o individuo e propriedade é já um fator migratório.