08 jun, 2018
Como é que fazes para ter um casamento estável? Quando me fazem esta pergunta, confesso que desato a rir. Lá peço desculpa ao interlocutor, mas a verdade é que a pompa da pergunta encontra a galhofa deste lado. O que é “um casamento estável”? Parece-me um oximoro.
Não conheço casamentos estáveis, ou melhor, conheço: são aqueles que acabam em divórcio. Um casamento estável é uma união rígida que vai quebrar como uma torre de granito mal construída, uma torre sem a flexibilidade para suportar a imprevisibilidade da vidinha.
Este cisne negro, o imprevisto, está lá desde a génese: nós apaixonamo-nos de forma imprevisível; o amor não surge porque nós decidimos apaixonarmo-nos por esta ou aquela pessoa; a paixão é exterior à nossa capacidade de programação e antecipação. Nós depois decidimos se deixamos ou não a paixão entrar, mas a sua ignição está fora do nosso controlo. Quando a paixão adquire a couraça do casamento, a surpresa e a imprevisibilidade não desaparecem. Pelo contrário.
Um casamento que perdura não tem a estabilidade da torre granítica, mas sim a elasticidade das canaviais ao vento. Os casamentos que batem o divórcio são aqueles que aceitam o inescapável caos da vida, procurando uma constante adaptação a cada momento no sentido de se preservar o essencial, o casal, o lar, a família.
Um casamento arrumadinho é um casamento condenado e, infelizmente, a maioria dos casamentos do nosso tempo sofre desta obsessão com a arrumação que se desorienta perante a casa desarrumada que é uma família: ele é a filha que está doente, logo é preciso suspender o trabalhar esta semana; ele é o filho que está de férias, logo é preciso parar de trabalhar duas semanas ou um mês; ele é a sogra que está doente, logo é preciso passar uma semana fora; ele são as mudanças de trabalho dele ou dela, que forçam um permanente reajuste dos ritmos domésticos; ele é a falta de tempo para ler, ver a netflix ou ver o Benfica, porque o mais novo está com febre ou porque é preciso passar tempo com a mãe que está em convalescença; ele é o mais novo que afinal não quer ser advogado mas sim artista; ele é a mais nova que afinal não quer ser artista mas sim engenheira.
Quase nada no casamento obedece a uma lista predefinida de prazeres, projetos ou ambições. E não vale a pena pedir pausas ou fugas. A felicidade não está num fim de semana num hotel em Paris ou numa semana de praia sem os miúdos. Isso não é felicidade, é a negação da realidade. Um casamento que não encontra a felicidade na rotina instável do dia a dia é uma granada pousada na cómoda (já sem cavilha).
Quem não aceita esta desordem criativa da vida não consegue estar casado muito tempo. E a maioria das pessoas do nosso tempo não consegue de facto lidar com esta instabilidade que destrona o controlo absoluto do “eu”. O “eu” pós-moderno herdado do Maio de 68 quer o controlo absoluto. Mas claro que o absoluto controlo acaba na absoluta solidão, numa taxa de divórcios a rondar os 70%, em famílias minúsculas, em filhos únicos, velhos sozinhos ou abandonados.
Mas então qual é o segredo? Não há segredo. Há sacrifício e muito trabalho. As pessoas que se mantêm casadas não nasceram com um feitio casadoiro; estão é disponíveis para a renúncia e para mudar.
Se quiserem, o tal segredo não é ambicionar à quimérica estabilidade que conforta o nosso feitio fechado e intransigente; o truque é ir mudando o feitio, “é mudar junto”, como dizia há tempos Arnaldo Jabor.
O casamento não é uma ilha que se ergue, titânica, acima das águas do oceano. É, isso sim, uma frágil barcaça em constantes reparações em pleno alto mar. O casamento faz até lembrar aquele velho mestre cuja função era tapar os buracos no casco de madeira dos navios antigos. A entrada da água era inevitável, mas o naufrágio era evitável. Os navios mantinham-se à tona da imprevisibilidade devido ao trabalho invisível daquele mestre carpinteiro que selava buracos enquanto bombeava água borda fora.