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Artesão de Coimbra preserva a pintura tradicional do prato "ratinho"

13 nov, 2023 - 02:02 • Lusa

Carlos Tomás dirige há décadas, no largo da Sé Velha, uma loja onde expõe e vende milhares de peças de cerâmica artística, com destaque para a chamada louça de Coimbra e para os pratos "ratinhos".

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Um artesão de Coimbra reclama aos 69 anos o lugar de último pintor de louça "ratinha", ligada aos antigos movimentos migratórios dos camponeses do Centro e do Norte para os trabalhos agrícolas sazonais do Sul.

Carlos Tomás dirige há décadas, no largo da Sé Velha, uma loja onde expõe e vende milhares de peças de cerâmica artística, com destaque para a chamada louça de Coimbra e para os pratos "ratinhos".

O louceiro disse à agência Lusa que esta faiança popular, também designada "troca-trapos", inclui pratos, alguidares e tigelas, decorados com peixes, aves, elementos vegetais, lavradores, músicos, pescadores e pastores, entre outros motivos.

"Era feita na região das Beiras, especialmente no inverno", referiu, para explicar que, nos séculos XIX e XX, tais utensílios eram produzidos no início por famílias pobres que se deslocavam para o Ribatejo, a Beira Baixa, o Alentejo e mesmo a Extremadura espanhola.

Segundo Carlos Tomás, estes trabalhadores, conhecidos como "ratinhos", "pica-milhos" ou gaibéus, levavam consigo os pratos e "os senhores dos campos, no final, ficavam com as cerâmicas, trocando-as por roupas e agasalhos", o que deu origem à expressão "troca-trapos".

Em 1939, "Gaibéus" foi o título dado por Alves Redol (1911-1969) ao seu primeiro romance, inaugurando o movimento do neorrealismo, com relatos sobre a vida de "um povo resignado que luta afincadamente" de sol a sol, nos arrozais alagadiços do Ribatejo.

Também Manuel da Fonseca (1911-1993) contou a vida dura nos campos onde os "ratinhos" -- beirões, minhotos e até gente da Galiza -- procuravam ganhar algum dinheiro, o que não conseguiam nas magras leiras do interior montanhoso.

No poema "Maria Campaniça", o neorrealista evoca uma mulher de olhos lindos, "rosto macerado de andar na ceifa e na monda desde manhã ao sol-posto".

Natural de Condeixa-a-Nova, Carlos Tomás ainda era criança quando aprendeu a pintar o prato "ratinho", numa oficina daquela vila do distrito de Coimbra.

"Não conheço mais ninguém a pintar cerâmica "ratinha" à mão", afirmou, realçando que se trata de "uma louça das Beiras e uma das mais bonitas do mundo".

Tudo começou quando, com apenas 11 anos, tinha de fugir quando lá iam os fiscais. Mais tarde, resolveu que a cerâmica era a sua vida.

Coimbra chegou a acolher dezenas de olarias de onde saíam faianças várias, sobretudo na Baixa, onde a importância da atividade ao longo dos séculos ficou gravada em topónimos como largo das Olarias e rua da Louça.

Ali bem perto, o Hotel Oslo ornamenta paredes com vários pratos "ratinhos". Na Alta, o Museu Nacional Machado de Castro possui um acervo de cerca de 170 destas peças com desenhos ingénuos e cores vivas.

"Houve uma cerâmica no Alentejo que as fazia muito bem, como em Coimbra e Alcobaça", contou Carlos Tomás.

Em Castelo Branco, no Museu Cargaleiro, pode ser visitada uma mostra de cerâmica popular que integra um conjunto de pratos "ratinhos".

Também o investigador Aires Henriques reúne no Solar do Povo Ratinho, em Pedrógão Grande, quase 100 destes pratos e algumas planganas ou alguidares, outrora usados pelos "pica-milhos".

"O que distingue mais a cerâmica "ratinha" são as cercaduras de palmas e as cores, como o verde-cobre e o morado", disse Carlos Tomás.

Segundo Aires Henriques, a expressão "pica-milhos" provém, possivelmente, do facto de multidões de migrantes que rumavam ao Sul serem oriundas do Minho e da Galiza, onde os campos de milho dominavam a paisagem rural.

Pelo contrário, para o artesão de Coimbra, "não há dúvida nenhuma" de que a designação está associada à imagem coletiva dos "ratinhos" a "picarem todos da mesma taça".

"Levariam alguma louça, mas não seria "ratinha". A cerâmica "ratinha" eram os agrários que a compravam. Atrás dos "ratinhos" iam os almocreves vender louças nas feiras locais", justificou Aires Henriques.

Na sua opinião, "o grosso desses "ratinhos" eram serranos" que viviam nas montanhas da Lousã e do Caramulo, por exemplo, onde cultivavam "faixas muito estreitas" de terra.

Era "gente com grandes dificuldades que migrava" com o objetivo de "angariar algum dinheiro para pagar na mercearia, nalgumas situações para casar a filha...".

"Ratinhos" foi "o nome que se vulgarizou mais, talvez pelo aspeto de pequenino da maior parte deles, pelo tipo de roupas acastanhadas e acinzentadas" que usavam.

"Com grande denodo na execução das tarefas", sobretudo na ceifa, bem como na monda, vindima e apanha da azeitona, "como se fossem "ratinhos"", sugeriu ainda Aires Henriques, de 76 anos.

"Gente pobre, humilde e inculta que ia concorrer com os trabalhadores locais, cujas condições não eram melhores", enfatizou.

Em 2022, o dono do Solar do Povo Ratinho, nos Troviscais, lançou a antologia "Os "ratinhos": o povo serrano por terras do Alentejo e Borda d"Água", tendo igualmente publicado o livro "O canto popular e as migrações internas", editado pelo município de Lousada.

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