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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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O anti tribalismo de Amanda Gorman

31 mar, 2021 • Opinião de José Miguel Sardica


O que a jovem poetisa recitada na tomada de posse de Biden mais queria era curar feridas, mas os guardiões da tradução parecem querer o contrário e brandir o poema como arma de antirracismo. É que a cartilha em voga diz que só os brancos são racistas.

De acordo com as patrulhas intolerantes do politicamente correto, o texto-poema “The Hill We Climb”, recitado pela jovem poetisa norte-americana Amanda Gorman na cerimónia de tomada de posse de Joe Biden como Presidente dos EUA, só pode ser traduzido por uma outra mulher, negra e jovem. A holandesa Marieke Rijneveld, vencedora do Booker Prize, é mulher, mas é branca, e por isso viu-se vetada; o mesmo, e por maioria de razões (é branco e homem), aconteceu ao catalão Víctor Obiols. Resumindo: não interessa a competência técnico-literária do tradutor; desde que a escrita de Gorman passou a ser culturalmente apropriada para bandeira de causas de género ou de combate à racialização, adeus Gorman, adeus poema, adeus tradução!

Dizem alguns que se trata apenas de oferecer oportunidade de visibilidade a tradutoras negras, a que as editoras conspirativamente parece que recusam trabalho. Duvido. Se os tradutores negros são em menor número, talvez seja porque há mais estudantes brancos nos cursos de tradução. Além disso, que diria a comunidade negra, ou a do ativismo feminista, se uma qualquer editora ou um qualquer guru das redes sociais viesse defender que um autor branco só pode ser traduzido por brancos? Ah, já me esquecia da atual cartilha em voga: só os brancos são racistas!

De acordo com as patrulhas intolerantes do politicamente correto, cometi uma heresia. Sendo homem, branco, europeu (características que Amanda Gorman não possui), e além disso heterossexual e católico (características que não sei se a poetisa americana partilha comigo), li com toda a atenção o poema em causa e sou perfeitamente capaz de oferecer uma tradução, não literal, mas daquilo que, tenho a certeza, a autora mais quereria que os seus leitores fixassem – a mensagem central do poema, o seu ‘leitmotiv’, a sua intenção. E o mais relevante é que a mensagem central é uma profunda denúncia anti tribalista, um grito contra todos os tribalismos que segmentam a sociedade americana e o mundo, entre eles os tribalismos da cor, do género ou da posição cultural, geradores das atuais e diversas guerrilhas identitárias.

Perante uma nação que “não está quebrada”, mas “inacabada”, Gorman apelou à composição “de um país comprometido com todas as culturas, cores, características e condições humanas”, que levantasse os seus olhos e aspirações “não para o que nos divide, mas para o que todos temos diante de nós”, num futuro para cuja construção “precisamos de colocar de parte as nossas diferenças”. Quando assim for, e só se assim for, os EUA serão uma verdadeira união, cimentada por “pontes”, e não cortada por “lâminas”, uma união que decerto conhecerá “derrotas”, mas que não mais “semeará divisões” – se, sobretudo (termina Gorman), “formos bravos o suficiente para ver e ser” tudo isso. Ao jornal “New York Times”, a jovem poetisa confessou que o que mais queria, com o seu poema, era “usar as palavras para projetar uma forma pela qual o nosso país possa reconciliar-se (“came together”) e curar as feridas (“heal”)”. Os guardiões da tradução parece que querem o contrário, ou seja, brandir o poema como arma de antirracismo, de uns contra outros.

Sim, é verdade que Trump representava uma certa América dita branca e masculina. Mas não consta que isso tenha constituído uma ditadura, nem sequer um regresso aos tempos da segregação racial que Luther King denunciou no seu “I Have a Dream” de 1963. Por isso, fazer do poema reconciliador, aberto, humanista e coletivamente mobilizador de Amanda Gorman uma bandeira para sectarismos de agenda é um péssimo serviço cívico, e uma tradução muito errónea da sua letra e do seu espírito.

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