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Aniversário

100 anos já estão. E agora, PCP?

06 mar, 2021 - 00:20 • Susana Madureira Martins

Os desafios do PCP no ano do seu centenário vistos por três gerações de comunistas: Domingos Abrantes, Armindo Miranda e João Oliveira.

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Resumindo 100 anos a 100 à hora, que é como quem diz num parágrafo, o PCP é o partido que atravessou os últimos anos da primeira República, a ditadura militar, andou na clandestinidade durante o Estado Novo, participou nos primeiros governos após o 25 de abril de 1974, passando depois anos a fio a ser um partido de protesto que chumbou todos os Orçamentos do Estado até integrar a solução política de esquerda a que vulgarmente se chama "geringonça", que, entretanto se dissolveu.

Certo, os primeiros cem anos estão arrumados.

E agora? Agora, desafios há muitos e são assumidos.

O desafio autárquico

É talvez o desafio mais imediato. Depois do desaire nas eleições autárquicas de 2017, em que o PCP perdeu 10 autarquias - caso de bastiões como Almada e Barreiro, no distrito de Setúbal - e a maior parte delas para o PS, os comunistas definiram no congresso de novembro o guião para terem "mais votos e mais mandatos".

Armindo Miranda, membro da comissão política do Comité Central, encarregou-se logo aí de avisar o partido que "a obra não fala por nós, nós é que temos de falar da obra", acrescentando que era preciso ir para o terreno ouvir as pessoas "sem sobranceria ou impaciência, ouvir mesmo que sejam críticas" ao trabalho dos comunistas.

Em conversa agora com a Renascença, Armindo Miranda tira pressão a estas autárquicas, garante que "não são umas eleições críticas, pelo contrário" e recua no tempo para falar das eleições de 2001 em que os comunistas perderam 14 câmaras "e, no entanto, em 2005 recuperámos quase todas".

O dirigente comunista fala em específico do distrito de Setúbal, onde em 2005 recuperaram três câmaras. “Existem nove concelhos, nós tínhamos cinco, o PS quatro e passámos para oito e o PS ficou apenas com uma", conta.

O que é que isto significa para os comunistas? Que "isto não está sempre em queda" e, ora, se o partido perdeu dez “agora terá de ser pior? Não", pergunta e responde Armindo Miranda, que acrescenta que esse cenário até "pode" acontecer, mas que o PCP trabalha "naturalmente para que as coisas sejam melhores", com o foco em recuperar "nomeadamente três câmaras" que o partido perdeu em 2017 na península de Setúbal.

Nestas autárquicas a ordem da cúpula comunista é também namorar os independentes.

Armindo Miranda refere que estas costumam ser as eleições onde "com mais facilidade" o partido se envolve e que em 2017 "houve 12 mil independentes que participaram nas listas da CDU".

No congresso o dirigente do PCP puxou mesmo dos galões ao dizer que "há condições para manter ou mesmo reforçar essa participação".

A expectativa do partido é também aumentar o número de militantes após as autárquicas, sendo que "durante ou depois" destas eleições "é sempre um momento de muitas adesões ao partido e de reforço do partido", mais até do que as que têm "fora das eleições autárquicas".

A explicação de Armindo Miranda é que "muitos dos que conhecem o partido de forma diferente concluem que devem reforçar o seu compromisso".

Mais votos significa mais influência. O PCP está em perda eleitoral?

Para um comunista a questão é sempre vista como provocadora e a resposta, visivelmente, nunca é simples. O PCP passou de 15 deputados nas legislativas de 2015 para 10 deputados em 2019.

Em conversa com a Renascença o líder parlamentar e dirigente nacional do partido, João Oliveira defende que não se deve "avaliar a influência de um partido exclusivamente pelos resultados eleitorais, até porque as opções eleitorais que as pessoas fazem muitas vezes são feitas por critérios que depois não têm nada a ver com a sua intervenção cívica, política e social e não têm nada a ver com os outros 364 dias do ano".

E mais: esse critério da perda de mandatos à Assembleia da República "não deve ser usado para avaliar da influência de qualquer partido muito menos para o PCP, porque isso nos levaria à circunstância de concluir que o PCP não existiu até 1974" e que até aí "nunca participou em atos eleitorais".

João Oliveira defende que o partido "até 1974 existiu e com uma grande influência na vida política nacional", acrescentando que "nesse período não se encontra nenhum grande momento da vida nacional que não tenha a marca do PCP, a intervenção, o posicionamento, as ideias, a iniciativa".

Os últimos anos foram de perda eleitoral, sim, mas o líder parlamentar recua no tempo para referir que "nos últimos 20 anos o partido tem tido um percurso marcado por crescimento eleitoral" registando durante esse período "uma recuperação do número de deputados, um reforço de votos e percentagens consecutivos, com exceção de 2019".

Para João Oliveira "há uma ideia muito óbvia, seja em que eleições seja, quanto maior for a força eleitoral do PCP maiores condições há para que os interesses dos trabalhadores sejam defendidos".

Ou seja, mais votos dão mais poder de influência, para negociar e pressionar um governo socialista sem maioria no Parlamento. O líder da bancada comunista admite assim que "do ponto de vista institucional não é indiferente o PCP ter mais deputados ou ter menos".

Ultrapassar o "preconceito ideológico"

É uma marca de água na linguagem corrente comunista a queixa ao longo dos anos de que o partido é vítima de um "preconceito ideológico" - supostamente promovido por setores económicos ou mesmo da comunicação social - que mina resultados eleitorais e o trabalho no terreno.

Voltando à conversa com Armindo Miranda, o dirigente nacional exemplifica que "se houver eleições autárquicas agora, em muitos concelhos, nomeadamente nos grandes centros urbanos, o PCP anda numa votação dos 38, 40%, às vezes até mais, mas se daqui a seis meses houver eleições para a Assembleia da República andamos ali pelos 15, 20, 21, 22%".

Para o dirigente comunista isto "significa que há centenas de milhar de portugueses que votam na CDU e no PCP nas eleições autárquicas, mas que o preconceito e o atrofiamento de que são vítimas diariamente, através da comunicação social, comentadores e outros, faz com que não vejam no PCP ainda o partido de projeto nacional".

Ainda assim Armindo Miranda relativiza dizendo que "as eleições autárquicas são uma boa oportunidade para alargar o prestígio do partido, até porque há muita gente que trabalha com o PCP pela primeira vez e fica satisfeito em conhecer melhor", rematando que "o preconceito anticomunista leva aqui um abalo, nalguns casos grande".

Ora, defende o membro do Comité Central, "nas eleições autárquicas contam muitos fatores, até internacionais, que não têm nada a ver com o parque infantil ou com o pavilhão gimnodesportivo com que o partido se compromete a resolver e acabam por condicionar o voto", com Armindo Miranda a deixar um desabafo: "estamos habituados, é assim".

São também detetados problemas de perceção sobre o que o partido faz no Parlamento, as propostas que apresenta, as pressões que faz e que obrigam o governo a tomar esta ou aquela decisão, muitas vezes a contragosto.

Questionado se foi penalizador para o PCP fazer parte de uma solução política que permitiu a formação de um governo do PS, o líder parlamentar responde que o que existe é outro problema.

"Aquilo que as pessoas valorizam nas decisões que foram tomadas e que resultaram desse momento inicial em que o PCP disse 'não senhor, há aqui um caminho alternativo', quando toda a gente deitava a toalha ao chão, tudo aquilo que de lá para cá foi feito e que as pessoas valorizam, eventualmente as pessoas estão a atribuir a quem não deviam", admite João Oliveira.

Ou seja, o PCP pressiona o governo PS a tomar medidas e os socialistas ficaram com os louros, com o dirigente nacional a admitir que "em muitas circunstâncias as pessoas não identificam a acção do PCP que motivou cada um dos avanços que foi conseguido e atribuem isso a outros".

Com o sentido de humor que o caracteriza e puxando de ditados da sua Évora natal, João Oliveira desabafa: "Na política sabemos que nem toda a gente se pauta pelos mesmos critérios e na minha terra há uma expressão popular sobre quem cumprimenta o patrão com o chapéu dos outros, ora nós em muitas circunstâncias temos constatado precisamente isso. "

E fica o exemplo de, "há poucos dias", com o "anúncio da senhora ministra da Saúde a propósito da recuperação dos cuidados primários e quem ouvir há-de achar que é uma proposta do governo quando é do PCP e foi inscrita no Orçamento do Estado nesse sentido e talvez esse seja um dos exemplos de alguém a cumprimentar o patrão com o chapéu dos outros".

O líder da bancada comunista refere que "o último Orçamento tem dezenas de exemplos disso" questionando: "Quantos pais que, neste momento, deixaram de pagar a creche dos seus filhos identificam essa medida com uma proposta que foi feita pelo PCP? E o mesmo acontece com a gratuitidade dos manuais escolares, quantos serão levados ao engano a achar que isso foi uma iniciativa do governo e que o PS é que se lembrou disso?".

A questão fica no ar, com João Oliveira a admitir que "é aí que continua um problema de clarificação daquilo que resulta da iniciativa de cada um e que pode levar a uma valorização política errada".

Os desafios da esquerda

É um pouco como aquele título jornalístico tão recorrente sobre "a encruzilhada da Europa", mas é isto: acabando a chamada geringonça tal como a conhecemos de 2015 a 2019 o que é que fica da esquerda, quais os desafios para a relação do PCP com o PS e onde é que anda o Bloco de Esquerda (BE)?

Da conversa com o líder parlamentar ficam vários remoques ao partido liderado por Catarina Martins sobre o deslaçar da solução política que permitiu a formação do primeiro governo de António Costa, com João Oliveira a referir que "só quem eventualmente tenha acreditado que existia uma maioria de esquerda e tenha alimentado essas ilusões é que pode, eventualmente, andar desiludido e pode eventualmente reagir em consequência dessa ilusão".

Ora, o líder da bancada comunista garante que o PCP "nunca" alimentou essa ilusão e que a geringonça "criou um quadro que permite que algumas coisas sejam alcançadas, mas que não dá garantias em relação a outras e, portanto, têm de ser arrancadas a ferros", sendo "um dos exemplos mais flagrantes o aumento das pensões, em que já vamos com cinco aumentos consecutivos de pensões e o primeiro o PS não queria fazer, mas foi obrigado a considerar essa necessidade".

Sendo assim, para João Oliveira "é importante ter presente esse quadro para perceber as perspetivas de futuro que se colocam", dando como outro exemplo "o acumular de situações como a que se vive na TAP pode em alguns casos, para quem alimentou a ilusão de que o PS e as suas políticas podiam ser uma coisa completamente diferentes, pode eventualmente ter gerado alguma desilusão e a partir dessa desilusão haver algum desnorte".

É outro remoque ao Bloco de Esquerda com a garantia do líder parlamentar que o PCP sabe "exatamente com o que se conta e o que não se conta com o Partido Socialista e que, em muitas circunstâncias, ou há de facto uma dinâmica de luta social, laboral e política que crie condições para que o PS aceite algumas medidas que se recusa a aceitar ou então dificilmente essas medidas são concretizáveis".

O fantasma da extrema direita

Os resultados eleitorais do Chega nas legislativas de 2019 e, já este ano, o resultado de André Ventura nas presidenciais preocupam visivelmente a geração mais antiga do PCP, que viveu os tempos da clandestinidade no Estado Novo e a nova geração dirigente do partido.

João Oliveira refere que o crescimento do Chega "não é a primeira preocupação ao virar da esquina, não estamos propriamente ainda nesse patamar, mas essa é uma preocupação que não podemos descansar".

Mas o líder parlamentar comunista não deixa de avisar que "o quadro hoje é particularmente preocupante", avisando os partidos à esquerda e sobretudo o PS que "projetos, soluções e concepções anti-democráticas terão tanto mais campo para ganhar fôlego quanto menor for a correspondência da política que é executada em relação às necessidades dos trabalhadores e populações".

João Oliveira basicamente pede ao governo do PS que abra os olhos e faça alguma coisa, defendendo que o país "está a atravessar uma situação de desemprego e falência de empresas, aumento de pobreza, se tudo isto não for considerado devidamente e se a política que for feita não tiver como primeira prioridade a resposta a estas dificuldades cria-se um campo fértil para que concepções e projectos anti-democráticos ganhem outro tipo de balanço".

Fica também a bordoada ao PSD, com o líder parlamentar comunista a frisar que "há vários partidos à direita do PSD que querem servir de calçadeira para fazer o PSD pôr os pés no governo outra vez”, avisando que "as ambições não têm limites e poderá haver quem queira substituir-se aos partidos mais votados para outro tipo de projetos anti-democráticos".

A geração mais antiga de comunistas carrega ainda mais nas tintas. Domingos Abrantes, preso e torturado durante o Estado Novo, defende que "há muita gente preocupada com o PCP, mas devia estar mais preocupada com o ascenso do fascismo, que são os inimigos da liberdade".

O antigo dirigente do PCP, que durante anos fez correr tinta sobre a possibilidade de vir a liderar o partido, considera que "todos os democratas têm razões para estarem preocupados com a situação atual" e "com as tendências que estão, de novo, a surgir".

Domingos Abrantes alerta que "o enfraquecimento do PCP não serve a liberdade e a defesa do regime democrático" e regista que Portugal ainda não viveu "em democracia o tempo que viveu de fascismo, o tempo da liberdade ainda é menos do que o tempo do fascismo e não é sem apreensão" que vê "à escala mundial o fascismo a crescer, fascismo puro, real, que cresce à velocidade do som".

Nunca falando de André Ventura ou do Chega, Domingos Abrantes faz um aviso semelhante ao de João Oliveira, o de que "a experiência histórica mostra que quando há milhões de pessoas sem horizontes, desesperadas, que vivem em condições de extrema miséria é fácil aparecer um salvador com as falsas soluções, até com os seus algozes conseguem enganar as suas vítimas", e que se não se der "resposta às pessoas, naturalmente, encontra-se um caldo de cultura para o crescimento do fascismo e dos novos salvadores".

Neste 'pingue-pongue' geracional fica a garantia do militante mais novo ao militante mais velho, com João Oliveira a especular que, se o partido e o país "eventualmente" fossem "confrontados novamente com a instauração do fascismo", então, "naturalmente" os comunistas teriam "muito mais argumentos e muito mais elementos para dar a resposta necessária em função da aprendizagem que se pode fazer hoje a partir da história" de um partido que tem cem anos em cima.

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